Antigo espaço cultural em estado de abandono

Antigo espaço cultural em estado de abandono

Sede do Grêmio Esportivo Ferrinho, no bairro Humaitá, em Porto Alegre, vive situação de abandono e de indefinição quanto a seu destino. Até 2020, recebia atividades culturais por meio de ações promovidas pelo Ponto de Cultura

Por
Felipe Samuel

Espaço cultural e de memória coletiva da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), a sede do Grêmio Esportivo Ferrinho, localizada na rua Dona Teodora, bairro Humaitá em Porto Alegre, vive situação de abandono. Como parte da privatização da estatal em 1997, a área ficou nas mãos da América Latina Logística do Brasil S.A (ALL), que venceu o leilão para administrar a Malha Sul até 2027. Em 2015, a ALL foi absorvida pela Rumo Logística durante processo de fusão entre as duas empresas. Mesmo com a concessão, poucos investimentos foram realizados no Rio Grande do Sul. 

Até o início de 2020, o prédio recebia atividades artísticas e culturais por meio de ações promovidas pelo Ponto de Cultura. Por conta da pandemia, os projetos foram suspensos. O descaso com o espólio da RFFSA pode ser observado a partir da péssima conservação da área, onde o mato cresce desproporcionalmente e o lixo toma conta. Preocupado com a situação, o presidente do Ferrinho, Hélio Bueno Silveira, trava uma disputa na Justiça para retomar as atividades no local. Ferroviário aposentado, Silveira trabalhou por 32 anos na RFFSA. 

Considerado o “guardião” do imóvel, Silveira, 80, ingressou com ação requerendo a concessão de uso de imóvel junto ao Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). No pedido, alega que o prédio consta como imóvel de “estruturação, a preservar, pelo inventário do Patrimônio Cultural de Porto Alegre - Bens Imóveis”. E reforça que o trabalho desenvolvido pelo Ponto de Cultura, iniciado em outubro de 2019, é reconhecido pelo Ministério da Cultura. De acordo com a ação, o local tem a finalidade “de manter a memória, o bairro e o imaginário social da comunidade e suas manifestações simbólicas, continuando e aprimorando o serviço que já realiza”.

Fundado em 31 de outubro de 1963, o Ferrinho sempre foi referência para os ferroviários. “Minha ideia é continuar a resgatar a história da ferrovia e os projetos culturais. O Ponto de Cultura ocorreu até o início da pandemia, mas depois o prédio ficou fechado. E famílias foram morar no local. Agora é complicado tirar, tem que ter o papel na mão”, observa. Conforme Silveira, outras áreas também foram invadidas. “Nosso clube é devidamente registrado, tem toda a documentação em dia. Então essa é a formalidade. Isso aqui é um patrimônio, esses tijolos foram colocados pelos funcionários da Viação Férrea. Está marcado no tijolo o local que era da viação Férrea”, destaca. 

“Existe a possibilidade de a gente fazer alguma coisa. Com o poder público reconhecendo esse processo que estamos fazendo, vamos conseguir alguma coisa. O DNIT diz que tem dois vagões que eram de passageiros e que estão lá. A gente quer trazer e botar aqui para fazer um museu a céu aberto”, completa. Para tentar manter o local seguro e livre de invasores, o ex-ferroviário conta com ajuda de dezenas de cães, que ficam abrigados em um canil improvisado ao lado da sede do Ferrinho. Sem recursos para pagar segurança privada, Silveira tira do próprio bolso para garantir os 10 quilos de ração diária. “O Ferrinho não tem condições de pagar um segurança. Os cachorros é que estão fazendo esse trabalho. Alguns a gente larga à noite, que são os mais fortes”, destaca. A possibilidade de voltar a contar com a sede para realização de atividades culturais deixa Silveira esperançoso. “Representaria muito, porque trabalhei na ferrovia na parte que fazia a sustentação da linha. Trabalhei muito”, recorda, ao lado da esposa, Margarida Margarethe Nascimento da Silveira. “Quando casei com ela disse que a minha ambição era manter isso aqui. Vivo para esse projeto.”

Ex-chefe do escritório regional da RFFSA, Roberto de Albuquerque Guedes da Luz avalia que a melhor solução, prevista no contrato de concessão, seria a desvinculação do imóvel do terreno como bens patrimoniais da Rumo Logística. O DNIT não tem como intervir ali, porque está concedido, não tem autoridade. Se houver mau uso, esculhambação, pode exigir providência à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Guedes da Luz explica que o processo pode avançar à medida que o debate envolvendo a renovação antecipada das concessões ganhar força junto ao governo federal. 

“Enquanto não avançarem as discussões da prorrogação antecipada do contrato ninguém vai mexer com nada”, destaca, acrescentando que a transferência do patrimônio para a União poderia garantir instrumentos para resolver o impasse. “Nenhuma das soluções é fácil. Acho que não vai acontecer no curto prazo”, frisa. Ele participou do processo de inventário da RFFSA e afirmou que à época a empresa decidiu inventariar bens não operacionais. Toda aquela edificação incluindo o prédio onde está o clube fazia parte de um grande conjunto que incluía armazéns que foram desmanchados pela concessionária.” 

Conforme Guedes da Luz, o prédio do Ferrinho funcionou por um bom tempo como escola profissional da rede Senai, onde recebia oficinas e treinamentos de especialização. “Com a privatização da rede, houve a separação de imóveis. Alguns que não tinham utilização para o transporte ferroviário foram classificados como não operacionais, considerados desnecessários para o futuro da operação ferroviária. Outros ficaram em poder da rede ferroviária, que teve sobrevida mesmo depois da privatização”, reforça. 
Diretora do Museu do Trem de São Leopoldo e membro do Grêmio Esportivo Ferrinho, Alice Bemvenuti destaca que as atividades desenvolvidas no prédio estão assentadas nas relações sociais e na memória da classe ferroviária. Alice lembra do local como espaço para oficinas de fotografia e outras atividades culturais. E reforça que a garantia do local serve como ponto de encontro para lembrança de memórias. É importante valorizar a história de homens e mulheres que trabalharam na rede e que ainda está presente. O espaço do Ferrinho está relacionado a essa memória, que pode ser visualizada, e a como a comunidade se apropria disso. 

Segundo a prefeitura de Porto Alegre, o imóvel consta do inventário da Vila dos Ferroviários. O DNIT não respondeu aos questionamentos da reportagem até o fechamento da edição. A Rumo Logística não informou quais são os imóveis que pertencem à empresa na Capital.

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895