Após ciclone, a força para seguir adiante

Após ciclone, a força para seguir adiante

Moradores de Caraá e Maquiné, pequenos municípios do litoral norte do Rio Grande do Sul, reconstroem suas vidas após serem atingidos pelos ventos devastadores e pela enchente de junho de 2023

Por
Cristiano Abreu

As marcas ainda estão por muitos dos lugares atingidos pelo devastador ciclone de junho, mas a passagem do tempo transforma a perda em força para seguir em frente. Mês a mês, dia a dia, os moradores de Caraá e Maquiné, pequenas cidades do litoral norte gaúcho, reconstroem suas vidas. Foram dias difíceis e que ainda perduram além das lembranças para a comerciante Sandra de Ávila, 51 anos, e a filha Isadora Benedetto, 21. Antes de viverem a noite de 15 de junho, que classificam como a pior de suas vidas, as duas estavam felizes porque retomariam o tradicional comércio da família de Caraá no dia 17. “Meu pai inaugurou o primeiro mercado desta região, há 50 anos. Sou professora, estava exercendo a profissão e decidi reabrir neste ano. Foi desolador o que aconteceu”, recorda Sandra, sem esconder a inquietação.

O estabelecimento fica na rua Salvador de Ávila, a aproximadamente 500 metros da margem do Rio dos Sinos, na localidade chamada de Alto Caraá. Naquele ponto, o manancial tem por volta de dois metros de profundidade. A rua onde fica o prédio, que além do ponto comercial abriga o lar das comerciantes, está pelo menos três metros acima do leito. “Era umas 22 horas quando começou a subir. Acabou a luz e tudo ficou debaixo da água em menos de meia hora”, descreve. Equipamentos, prateleiras e o estoque de mercadorias ficaram sob 1,2 metro de água e lodo. “Foi desolador, havia feito um empréstimo para pagar em 20 anos”, revela a proprietária que já no dia seguinte tratou de recomeçar. Uma semana depois da pior enchente da história, Sandra e a filha, orgulhosas, estavam de portas abertas. “Não desisti, fiz mais um empréstimo. Abri, endividada, mas estou aqui, firme no propósito”, exalta Sandra, sorridente ao abraçar a filha parceira nesta luta. “Passamos por isto e estamos juntas, mais unidas”, completa Isadora.

Prédios, estradas e vidas que recomeçam

Pontes, vegetação, estradas e até casas inteiras foram arrastadas pela correnteza e, passados seis meses, o rastro de destruição ainda é visível em muitos locais. Na localidade chamada Caraá Central, onde mora Leci Gomes Ferreira, 70 anos, a antes pacata região onde viveu as últimas quatro décadas agora é vista pela aposentada de forma diferente. “Não entrou água na minha casa porque é alto, mas aqui embaixo ficou tudo alagado, foi de dar medo”, explica dona Leci, enquanto esperava um ônibus na beira da Estrada Benno Buehler, a poucos metros dos escombros de onde ficava a casa de um casal de vizinhos. “A gente vai seguindo a vida”, sentencia a idosa. A casa em questão pertencia desde 2011 a Ângela Quaresma, 61, e o marido, Celso Quaresma, 63. Mesmo sendo de alvenaria e bem estruturada, a construção de dois pavimentos não resistiu à violência da água. “Não dá para explicar a dor do que aconteceu.” Felizmente, os dois não estavam em casa naquele 15 de junho. “Passamos o dia em Santo Antônio e, quando estávamos voltando, uma ponte caiu bem diante da gente. Passamos aquela noite no carro, em um posto de gasolina. Foi só no outro dia que eu soube que tinha perdido tudo”, revela Ângela.

Conquistas, documentos, memórias reunidas ao longo de uma vida desapareceram em segundos. A esperança do casal neste recomeço vem do trabalho em uma pequena marcenaria e de uma foto de casamento feita há 43 anos, o único pertence que conseguiram recuperar. “Começamos a andar pela beira do rio e achamos o quadro entre as árvores. O fato de ele ter resistido representa muito para nós, é como se nosso casamento tivesse ficado ainda mais forte”, explica Ângela, sem esconder a emoção na voz. A dona de casa Marisa Abruzzi, 40 anos, também admite ter mudado a relação com o Rio dos Sinos. Antes refúgio, a água que corre pelo leito rochoso do manancial agora lhe cobra um respeito maior. “Minha irmã (Elenir Nunes) estava tentando salvar os móveis quando viu o assoalho da casa balançando, em minutos ela ficou ilhada e só conseguiu escapar por uma janela. Este tipo de coisa muda a gente, acho que o próprio rio mudou”, relata.

| Foto: Mauro Schaefer

Luís Felipe Barbosa Rodrigues, 22, e a esposa, Ana Júlia Rocha da Silva, 20, cruzam todos os dias uma das poucas pontes da região que resistiram à correnteza. É um caminho obrigatório aos dois, que saem diariamente de Caraá para o trabalho em uma fábrica de calçados em Santo Antônio da Patrulha. “Agora vendo a água assim, tranquila, nem dá para dizer tudo que aconteceu”, diz Ana, timidamente. Da mesma forma que o rio, o casal segue o curso de suas vidas. “Não sei se tem a ver com a poluição do meio ambiente, mas torço para que nunca mais aconteça”, afirmou Luís, enquanto segurava no colo o sobrinho Bernardo, de apenas três anos. Independentemente do motivo, a esperança do operário é que algum ensinamento para o futuro possa ser retirado da tragédia. “O Bernardo não vai lembrar, mas quem viveu, espero que tenha mudado para melhor”, deseja.

Moradores unidos para apoiar vítimas

Cinco pessoas morreram em decorrência do ciclone extratropical que devastou Caraá. Somadas, mais de 3 mil pessoas foram atingidas. Diante da preocupação com os traumas psicológicos deixados pela tragédia, Ângela Quaresma e outros moradores da cidade criaram uma rede de apoio. “Seja com uma palavra de apoio ou com alguma demanda, estamos prontos para ajudar”, garante Ângela. A pior enchente registrada no município distante 90 quilômetros de Porto Alegre, conforme dados da prefeitura, ainda impacta a vida dos cerca de 8 mil habitantes. Conforme o prefeito de Caraá, Magdiel dos Santos Silva, 60% das pontes avariadas ainda precisam ser reconstruídas e as duas principais atividades econômicas da região, agricultura e turismo, sofreram impactos que persistirão por mais tempo.

| Foto: Mauro Schaefer

“As lavouras estão em processo de recuperação do solo, mas demora. E nossas trilhas para turismo foram destruídas e necessitam de reparos”, aponta o gestor, que destaca ainda a necessidade de reconstrução de uma unidade de saúde na localidade de Rio dos Sinos e a recuperação de 700 quilômetros de estradas. Sobre as famílias que perderam suas casas na enchente de junho, a administração municipal afirmou que está em andamento um plano de reconstrução de 49 moradias. O processo, de acordo com o prefeito, está em análise pela Defesa Civil nacional. “O que mais nos preocupa neste momento é devolver um lar para quem ficou desabrigado”, assegura.

Maquiné viveu duas semanas caóticas após a passagem do ciclone. De acordo com a prefeitura, 80% da cidade ficou ilhada e o total de desalojados ultrapassou a marca de mil pessoas. Três pessoas da mesma família perderam a vida. A coordenadora do Núcleo de Arte e Cultura do Campus Osório do Instituto Federal (IFRS), Agnes Schmeling, de 57 anos, faleceu após ter a casa atingida por um deslizamento de terra. No local estavam a mãe, também chamada de Agnes Schmeling, de 91 anos, e o marido, Almir Marques Portela Lopes, de 69 anos, que também morreram. Em declarações à época do ocorrido, o irmão Christoph Schmeling exaltou a dedicação de Agnes pelos alunos. Cerca de 50 casas ficaram destruídas e o prefeito João Marcos Bassani destaca a ajuda que reergueu a cidade em pouco tempo.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895