Após uma década, Jornadas de Junho ainda geram discussões e questionamentos

Após uma década, Jornadas de Junho ainda geram discussões e questionamentos

Movimento começou centrado no valor da passagem de ônibus, em 2013, e impactou a política nacional

Por
Felipe Nabinger

Há dez anos, no mês de junho, o Brasil presenciava uma série de manifestações populares que, embora inicialmente estivessem focadas na reivindicação do não aumento das tarifas do transporte público, externaram uma insatisfação da população com a política em caráter institucional, com a atenção à educação e à saúde e contra a corrupção. Passada uma década, os reflexos do período que ficou conhecido como Jornadas de Junho são perceptíveis até hoje e ainda levantam questionamentos junto a cientistas políticos. Nuances diferentes entre uma cidade e outra, ineditismo de protestos de campos mais à esquerda contra um governo também de esquerda e a apropriação dos protestos pela direita, por meio de mobilização popular, são pontos que instigam essas questões.

“A minha interpretação é que a gente tem vários 2013. Primeiro porque temos vários períodos. Em geral, a literatura hoje tem um certo consenso em pensar que a gente tem três períodos importantes. Um até maio, outro em junho e o depois de junho. Há uma diversidade do que aconteceu nas cidades. Porto Alegre é uma cidade que tem um pioneirismo naquele período, as mobilizações em torno da passagem de ônibus, que foi o deflagrador, mas não foi efetivamente o motivador de junho de 2013”, analisa o professor Marcelo Kunrath da Silva, titular do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e coordenador do Grupo de Pesquisa Associativismo, Contestação e Engajamento (Gpace).

O pioneirismo frisado por Kunrath para a capital gaúcha se dá em face de que manifestações contra aumento das passagens, organizados pelo Bloco de Luta pelo Transporte Público, já ocorriam desde os primeiros meses daquele ano. “Eram mobilizações sobre a questão da passagem, pequenas ainda, sem grande impacto, que já haviam ocorrido em anos anteriores. Não era novidade. Mas foram ganhando um certo crescimento e Porto Alegre, na verdade, consegue retroceder o aumento da passagem em abril. Inclusive nas primeiras manifestações em São Paulo havia um cartaz com ‘Vamos repetir Porto Alegre’”, lembra o professor. Na capital paulista e outras cidades, como Brasília, o movimento era encabeçado pelo Movimento Passe Livre (MPL).

Após essa primeira fase dos protestos, marcada por forte repressão policial, uma segunda tem início, conforme o pesquisador, em meados de junho, nacionalizando as manifestações. É nesse período que há uma ampliação de pautas, com a entrada em cena de novos atores, do campo mais à direita. “Nas ruas se encontrava de tudo. Foi um momento que se colocou a democracia em debate, como ampliar, renovar mecanismos constitucionais e aproximar as pessoas das decisões políticas”, entende o deputado estadual Matheus Gomes (PSol), na época uma das lideranças do Bloco de Luta.

A própria condução dos protestos passa a ser disputada pela esquerda e pela direita, que dividem as ruas, tendo, apesar de diferenças ideológicas, um ponto de convergência que era a crítica ao governo de Dilma Rousseff (PT), mesmo que por motivos diversos. “Um elemento importante daquele processo é que tínhamos um ‘sinal invertido’ do ponto de vista político. O PT estava no poderhavia dez anos e é o partido da mobilização popular no Brasil. Mesmo que houvesse pessoas do PT que participassem do processo, havia muitas críticas a um governo de esquerda. E pessoas de direita que criticavam um governo de esquerda. Eram três polos, governo, oposição de esquerda e de direita”, lembra Matheus Gomes. 

“Houve uma mudança muito importante na cobertura da mídia que, em parte, passa a legitimar o protesto. Ou, pelo menos, a aceitar a legitimidade da manifestação de uma parte dos manifestantes. Houve várias mudanças que produziram essa convergência em junho. O que a gente tem, na verdade, não é uma mobilização em torno de uma pauta. Mas são várias pautas mobilizadas simultaneamente nas ruas. Isso é algo muito surpreendente. Não é comum isso acontecer nem no Brasil, nem em qualquer lugar”, enfatiza Kunrath.

Entre essas pautas, estão o combate à corrupção e a aplicação de recursos públicos em obra da Copa do Mundo, realizada no Brasil, em 2014, em detrimento de investimentos na saúde e educação. Essa última pauta, tomando corpo no que o professor considera um terceiro ciclo, já em julho, quando movimentos conservadores deixaram as manifestações, levou a que o campo progressista apresentasse novas demandas. 

Repressão e criminalização

Para o doutor em Sociologia e professor do mestrado em Direitos Humanos da UniRitter Marcos Rolim, a repressão policial, principalmente nas manifestações de 2013 em São Paulo, são fator preponderante para que os protestos ganhassem força. “O tema da repressão policial está na origem da nacionalização dos movimentos. Talvez, se a Polícia Militar de São Paulo não tivesse agido dessa forma, movimentos ficariam mais localizados e tenderiam a se esvair. Mas, com a repressão, eles ganharam muita força.”

Rolim enfatiza que também neste aspecto existiram diferenças de cidade para cidade. Em São Paulo, por exemplo, houve uma repressão maior, incluindo ataques policiais contra a imprensa. Em um destes casos, no dia 13 de junho daquele ano, o repórter fotográfico Sérgio Silva perdeu a visão do olho esquerdo ao ser alvejado por uma bala de borracha. No mês passado, a Justiça de São Paulo negou indenização ao profissional alegando falta de provas de que o ferimento tenha sido causado pela bala de borracha. 

Nos municípios do RS, ele lembra que o governo do Estado orientou as forças policiais para, na medida do possível, evitar a postura repressiva. “Sem dúvida alguma isso teve alguma repercussão. Não estou dizendo que essa orientação foi eficiente, que ela resolveu o problema. Não resolveu. Nós tivemos cenas de violência e pessoas machucadas. Mas acho que aqui não houve, em comparação com outros lugares, um recrudescimento dessa violência ao longo das manifestações.”

O recrudescimento, conforme Rolim, dá-se no âmbito da legislação e, consequentemente, da investigação. Ele lembra da lei de 2 de agosto daquele ano, sancionada pela então presidente Dilma Rousseff, a Lei das Organizações Criminosas. “Há uma renovação do instrumental repressivo, especialmente a partir das investigações feitas pela Polícia Civil, que acabaram produzindo arbitrariedades muito mais sérias. Hoje temos a possibilidade de qualquer manifestação no Brasil ser considerado um ato terrorista ou uma associação criminosa. A tendência desde então é de criminalização dos movimentos. E isso surge dentro de governos do PT.”

Direita vê como oportunidade

É comum creditar aos movimentos das Jornadas de Junho de 2013 o surgimento de movimentos de direita, que viriam a encabeçar manifestações em apoio à Operação Lava Jato e pelo impeachment de Dilma Rousseff, entre 2015 e 2016, e até mesmo a eleição de Jair Bolsonaro em 2018. “É um equívoco. É ler a história de trás para frente. De fato é um processo ‘cataclísmico’, que estabelece um corte entre o que vinha e o que aconteceu depois. Mas não dá pra dizer que em 2013 estava o impeachment, que estava Bolsonaro”, diz o professor Marcelo Kunrath da Silva.

“A direita viu nas mobilizações a oportunidade de usar um novo método, que é a mobilização social”, entende Matheus Gomes, que além de deputado estadual é mestre em História pela Ufrgs. Ele lembra, no entanto, que o mecanismo foi usado no período que antecedeu o golpe militar de 1964. Ele entende que o campo à direita seguiu utilizando a mobilização de rua, mas com transformações, inclusive nas manifestações após as últimas eleições. “Só que não se pode reduzir 2013 a isso. Foi uma confluência de protestos à esquerda, à direita, de impulsos transformadores e outros que são reacionários”, analisa, lembrando que movimentos antidemocráticos pedindo intervenção militar já existiam em Porto Alegre, por exemplo, desde 2007.

Cientista político e ex-deputado estadual pelo partido Novo, Fábio Ostermann, um dos fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL), justamente naquela época, refuta que as bandeiras levadas às manifestações de 2013 e nas de anos seguintes tenham sido responsáveis pela eleição de Bolsonaro, para ele um “estratagema um pouco canalha” usado por muitas pessoas à esquerda. “Querem dizer que as pessoas que foram críticas ao projeto de poder do PT gestaram o Bolsonaro. Na verdade os erros do PT e os exageros do PT que criaram a possibilidade para o Bolsonaro.” Para Ostermann, o ex-presidente é fruto do militarismo, não respeitando ideais conservadores, como a ideia de prudência e ceticismo em relação Eo estado, nem liberais da direita, enquadrando-se, na visão de Ostermann, como um reacionário. 

No entanto, o “despertar da direita brasileira” foi, em certo ponto, compreendido pelo ex-presidente. “O próprio Bolsonaro entendeu que havia um segmento liberal que merecia ser levado em consideração quando ele, por exemplo, se aproximou do Paulo Guedes. Viu que era importante pelo trânsito que as ideias liberais tinham em grandes grupos empresariais, em segmentos da sociedade civil e influenciadores. E viu ali uma oportunidade de se tornar, também, um porta-voz desses grupos.”

Embora crítico a Bolsonaro, ele entende que haja uma “sobreposição” entre liberais e bolsonaristas contra governos do PT, que para Ostermann atentam contra liberdade de expressão, liberdade econômica, privatizações e reformas. “Acho que natural que haja uma convergência entre esses grupos, mesmo que eles busquem defender projetos políticos distintos. A gente tem lideranças maduras o suficiente pra entender que, contra esse inimigo comum, a gente precisa se unir naturalmente, assim como é na política. Tu não precisas querer se casar com uma pessoa para entender que precisa caminhar junto.

Precisamos nos apoiar mutuamente nessas pautas e naquilo que a gente tiver divergências, a gente diverge respeitosamente e não se tratam como inimigo. A esquerda historicamente sempre fez isso no Brasil, buscando construir consensos internos.”

MBL, Vem pra Rua e outros movimentos

Embora especialistas e envolvidos nas manifestações ouvidos pela reportagem convirjam em afirmar que o fenômeno de 2013 não gerou o que hoje se entende como a nova direita brasileira, ele foi cenário para experiências que deram origem a movimentos. “As manifestações de 2013 foram um grande ensaio geral para as manifestações de 2015 e 2016 pra gente”, afirma Fábio Ostermann, que deixou o MBL em 2015. Ele recorda ter ido a um dos protestos em meados de junho. “Fui àquela manifestação e achei interessante porque eu vi muita gente que estava indignada com o que estava acontecendo no país. Era um sentimento que nós tínhamos também, mas que tinha pautas muito vagas.”

Ostermann lembra que, em manifestações ocorridas em 24 de junho, a marca do MBL já apareceu em Porto Alegre, nas ruas de Belo Horizonte, de São Paulo, de Recife e de Fortaleza. “No final de semana anterior àquela manifestação, aqui em Porto Alegre, por exemplo, nós nos reunimos na casa de um amigo e fizemos cartazes bem artesanais”, diz, recordando que levava consigo um cartaz com a frase “livre concorrência já”. Inicialmente, garante, a ideia foi levar a visão liberal para o tema do transporte público, oferecendo alternativa ao pleito dos movimentos mais à esquerda, que pediam pelo passe livre.

Oficialmente, o movimento considera 1º de novembro de 2014 como data de fundação.

O empresário Douglas Sandri, na época um dos organizadores do movimento Vem pra Rua em Lageado e Porto Alegre, além de um dos idealizadores da Banda Loka Liberal, entende que 2013 serviu para que as pessoas externalizassem a sua também indignação e que uma mobilização bem estruturada e com pautas mais claras poderia “mostrar um caminho”. “Era o problema de 2013 (a falta de pautas claras). Era simplesmente uma convulsão social e talvez por isso não se encontrou uma solução. Muitos discordavam muito dos meios. Havia uma discordância. Queria-se sempre que fossem manifestações pacíficas”, explica. Sandri diz que muitos dos que estiveram nas ruas voltaram nos anos seguintes, mas agora em manifestações com “sua visão de mundo” e dando “representatividade política para um setor enorme da sociedade”.

Segundo Ostermann, as orientações eram para recuar em caso de confrontos com as forças policiais e denunciar pessoas com o rosto coberto, pela discordância com táticas black blocs. “A convergência observada na segunda fase do ciclo de protestos de 2013 foi sustentável por um período muito curto de tempo. A partir de então, observa-se uma clara demarcação e confrontação dos campos progressista e conservador”, observa o professor Marcelo Kunrath da Silva. Ele diz que havia confrontos internos nos protestos, justamente por diferenças entre promotores dos diversos campos ali envolvidos.

“O MBL é uma organização pequena, profissionalizada, de quadros, que não quer virar o ‘MST da Direita’. Quer difundir suas ideias e, de fato, com enorme capacidade e êxito nessa tática. O alcance do MBL e do Vem pra Rua neste período não tem comparação. Eles conseguem quase monopolizar a luta anticorrupção com capacidade de alcance e reprodução incomparável”, cita Kunrath.

A força das redes

Um fator importante para a velocidade de mobilização das manifestações deu-se pela tecnologia, principalmente por meio do Facebook. Neste aspecto tecnológico, houve um aproveitamento maior do campo mais à direita. “Uma parte do campo mais à esquerda, pelo seu próprio formato organizativo, tem uma dinâmica mais lenta de atuação. Em geral prestigia a presencialidade, a reunião, em uma cultura política militante. Os grupos (de direita) que surgem têm estrutura, habilidade e recursos para potencializar e difundir suas posições”, entende o professor Marcelo Kunrath da Silva, citando também a utilização do impulsionamento.

Marcos Rolim frisa que o processo de radicalização no país é anterior às mobilizações, em um processo silencioso, iniciado há, pelo menos, 20 anos, utilizando redes já extintas como o Orkut para a propagação de ideias. Ele recorda que as primeiras aulas de Olavo de Carvalho eram organizadas por essa rede. “Seria uma ilusão imaginar que durante algumas semanas (em 2013) teríamos movimentos de extrema-direita surgindo. Ela aproveitou esse momento de maneira mais ativa por ter mais presença nas redes e, como não era governo, tinha mais legitimidade para fazer isso.” 

“Alguns segmentos do campo progressista também foram hábeis em difundir suas pautas. Em parte, pela capacidade desses grupos de usar a tecnologia”, pontua, no entanto, Kunrath. São os casos de movimentos negros e de gênero, como as causas feministas e LGBTQIA+, mais próximas do campo da esquerda. 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895