As memórias da Constituição de 1988

As memórias da Constituição de 1988

Parlamentares revelam bastidores e relembram histórias da Assembleia Nacional Constituinte, há 35 anos

Por
Mauren Xavier, Flávia Simões* e Carlos Corrêa

Tecnicamente, 10 minutos têm sempre a mesma duração. Mas há algumas ocasiões, muito raras, é verdade, em que a matemática e a ciência não dão conta da dimensão do tempo. Naquele 5 de outubro de 1988, os 10 minutos do discurso de Ulysses Guimarães não duraram seus habituais 600 segundos. Aquele intervalo levou 24 anos. Mais precisamente, 24 anos, cinco meses e cinco dias. Quando as últimas frases proferidas começaram a alcançar as caixas de som do Congresso Nacional, a realidade já era outra.

“Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito. Mudar para vencer. Muda, Brasil!”. O país, enfim, promulgava a sua nova Constituição Federal, a sétima da sua história. Aquela que seria responsável por deixar para trás mais de duas décadas de autoritarismo e de uma carta instituída em 1967 que tinha como grande objetivo legalizar e institucionalizar o governo dos generais. Nenhum outro texto havia sido aguardado com tanta ansiedade no país havia anos. Esse era o tamanho do peso que carregaram nos ombros por quase dois anos os 559 constituintes  responsáveis por definir quais seriam as leis que norteariam o país dali em diante.

Para celebrar os 35 anos da promulgação da Constituição de 1988, o Correio do Povo conversou com uma série de personagens envolvidos na elaboração da carta para resgatar suas histórias e esmiuçar um tanto de outras, com o desprendimento que só o distanciamento do tempo permite. Essas são as suas memórias.

• O nascimento do Centrão

• Bastidores das negociações para o texto final

• A ameaça de morte em votação polêmica da Reforma Agrária 

• A relação entre direita e esquerda

• O voto de protesto do PT contra a Constituição

Os remanescentes de 1982

    Uma eleição nunca é um processo trivial. No entanto, o pleito de 15 de novembro de 1986 era diferente por uma série de motivos. Na teoria, o principal deles era que os eleitores estariam definindo naquele dia quem seriam os (muitos) homens e (poucas) mulheres que teriam a maior responsabilidade da classe política em mais de duas décadas. Nada poderia ser mais importante do que a escolha dos parlamentares. Pelo menos em tese. “Se pressupõe que na eleição de 1986 houve uma grande discussão, quando na verdade o grande objetivo dos partidos era conquistar os governos estaduais”, recorda Nelson Jobim, eleito deputado constituinte e que posteriormente ocupou os cargos de ministro da Justiça, da Defesa e do Supremo Tribunal Federal (STF). “Não houve uma discussão popular sobre a Constituinte, mas sim debates geralmente organizados pela faculdades de Direito para discutir problemas constitucionais”, completa ele, afirmando que o clamor popular tão apregoado desde então nunca passou de um “clamor da elite”.

    Ademais, nem todos os parlamentares que integrariam a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) foram escolhidos nas eleições de 1986. Isso porque havia 23 senadores, todos eleitos em 1982, que ainda teriam um terço do mandato a cumprir. Não que esse não tenha sido um processo sem discussões. Logo na segunda sessão, os deputados Plínio de Arruda Sampaio (PT) e Roberto Freire (PCB) levantaram uma questão de ordem alegando que os senadores eleitos em 1982 não tinham o direito de participar da ANC. “Chegou a se discutir no começo dos trabalhos que esses senadores até teriam direito a participar dos debates, mas não a voto”, conta José Fogaça, senador constituinte, eleito em 1986 e posteriormente prefeito de Porto Alegre. Realizada votação no plenário, por 394 votos a 126, foi definido que todos teriam direito a voto.

Corredores movimentados

O movimento incessante nos corredores do Congresso Nacional a partir de fevereiro de 1987 evidenciava que as demandas no processo de criação da Constituinte viriam de todos os lados. E assim foi. “Quase todo dia era uma multidão, gente querendo entregar um papel com alguma sugestão. Nunca mais se experienciou algo parecido”, conta Vicente Bogo, deputado à época e vice-governador do Rio Grande do Sul anos depois, entre 1995 e 1999. A participação não se resumia ao lobby junto aos deputados e senadores, mas também se fazia por meio de uma série de audiências públicas, nas quais os mais variados grupos definiam qual seria o foco de suas lutas. “Os prédios nunca foram tão movimentados. Desde aquela época, nunca vi nada igual. Aqui se encontrava a população brasileira”, afirma o senador Paulo Paim, eleito deputado constituinte em 1986.

'Não podia ser uma Constituição passageira, eventual, que tratasse de questões do momento. Ela tinha que ter uma visão de longevidade'

Se fora do Congresso a expectativa era grande, dentro a realidade não era muito diferente. “Tínhamos que superar uma etapa histórica. Aquele bloco histórico do Governo Militar e da Ditadura tinha que ser apagado da história brasileira. Não como fato, realidade, mas como conceito, como definição política”, relembra Fogaça. Para isso, conta o então senador, a ideia desde o início era construir um texto que quebrasse uma triste sequência de constantes mudanças. Afinal de contas, a partir de 1934, nenhuma Constituição no país havia durado 25 anos. “Não podia ser uma Constituição passageira, eventual, que tratasse de questões do momento. Ela tinha que ter uma visão de longevidade”, completa ele.

Tábula rasa

A história brasileira mostrou, ao longo dos anos, que o país teve dois tipos de modelo quando se viu frente à tarefa de criar uma nova Constituição. O primeiro era o projeto nascer nos braços do Executivo e então ser encaminhado para uma avaliação e posterior votação. Há, contudo, um pré-requisito quando adotada essa alternativa: um governo forte. A outra possibilidade é encarregar uma comissão de desenvolver o texto, aos moldes de como havia sido a carta de 1946. A realidade dos anos 1980 no país, no entanto, não se mostrava muito receptiva a nenhuma dessas opções.

Não que o governo do então presidente José Sarney não tivesse tentado emplacar a sua versão do texto. Um anteprojeto, tendo à frente o jurista e historiador Afonso Arinos, foi elaborado e entregue à presidência ainda em setembro de 1986. Só que os primeiros dias da ANC deixaram claro que a intenção era partir do zero. “Era preciso começar como uma tábula rasa, um livro em branco”, revela Fogaça. Entre os militares, a decisão não foi necessariamente mal vista, mas encarada com um viés bem particular. “A sugestão da Comissão dos Notáveis não foi aceita. Ela (Constitução) foi construída flertando, no bom sentido, com conceitos recém-chegados e que acho que os constituintes não tinham percebido, também porque a gente não tinha muita tradição nisso. Pouca gente tinha percebido que nós estávamos às vésperas de grandes mudanças no mundo”, avalia Sérgio Etchegoyen, general da reserva e ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência durante do governo de Michel Temer.

Definido que se partiria do nada, o passo seguinte era  começar os trabalhos. Foi quando o deputado Nelson Jobim tomou uma iniciativa, no mínimo, inusitada: “Quando começamos a elaborar o regimento interno, tínhamos que resolver quais os títulos que a Constituição teria, para criar comissões específicas. Não tínhamos referência nenhuma. Eu peguei as constituições ocidentais democráticas que haviam sido publicadas pelo Senado e também aquelas sob a égide da União Soviética e comecei a recortar, literalmente, com a tesoura, os títulos dos capítulos. Botei no chão um em cima do outro. Terminado esse trabalho empírico, encontrei um primeiro conjunto de títulos que se repetiam em todas as constituições. Aí concluí que eram matérias necessariamente constitucionais”. 

'Eu peguei as constituições ocidentais e comecei a recortar, literalmente, com a tesoura, os títulos dos capítulos'

O passo seguinte envolveu mais matemática e menos empirismo. Agora que se sabia as áreas a serem discutidas, a questão passava a ser quem fica onde. Eram 559 parlamentares. Em um primeiro momento, foram excluídos os líderes e outros considerados formadores de opinião - para os padrões da época. Cálculo aqui, cálculo ali, sobraram 504. Com oito temas distintos, os números estabeleceram comissões distintas com 63 integrantes cada, que seriam, todas, subdivididas em mais três subcomissões. “No geral, a forma como foi feito tudo foi boa, ajudou a acomodar várias situações, ninguém se sentiu excluído”, analisa, 35 anos depois, Vicente Bogo.

E assim, com direito a tesoura, livros recortados e calculadora, foram desenhadas as primeiras divisões nas áreas do texto de 1988. “Todas as Constituições brasileiras foram, na verdade, precedidas por comissões que criaram um projeto, um anteprojeto, que foram  aprovados pelos constituintes da época. Nós fomos a única que não aconteceu isso. Ou seja, o processo constituinte de 1988 foi muito inovador”, diz o então deputado Fábio Feldmann.

Dia e noite

    Hoje em dia, chega a ser trivial a imagem de parlamentares filmando ou transmitindo ao vivo eles mesmos, direto do Congresso Nacional. A cena, como várias outras que envolvem tecnologia, seria impensável em 1987 e 1988. Há 35 anos, o máximo que havia à disposição eram telefones fixos nos gabinetes. Mas há uma diferença ainda maior: os encontros eram muito menos virtuais e mais reais. E eles não estavam restritos ao período em que os deputados e deputadas estavam no plenário. “Não tinha final de semana, não tinha dia e noite. A gente se reunia com os grupos e ficava discutindo. Depois havia a discussão dos que pensavam igual. Ia para o apartamento de um, apartamento de outro discutir o que iria se fazer na semana, onde iria se retocar o texto. E depois, nas reuniões formais de grupo, se tentava convencer”, revela o então deputado Luís Roberto Ponte, que mais tarde viria a ser ministro chefe do Gabinete Civil da Presidência, entre 1989 e 1990.

    Fogaça elenca um outro aspecto característico daqueles dias. Era, em maior ou menor grau, um recomeço em termos de negociação para todos, afinal de contas, a última Constituinte democrática já tinha mais de 40 anos. “Não havia descanso. Estávamos aprendendo a negociar, a ceder, fazer acordos. E nesse ponto, o comando do doutor Ulysses Guimarães era muito importante. Ele passava esse espírito de não radicalizar, não chegar a um impasse, a pontos de não retorno, que poderia nunca mais resolver o problema”, conta. O então senador pontua que a oportunidade era preciosa demais para não ser disputada em sua plenitude: “De noite nos reuníamos nas casas e apartamentos dos senadores, porque realmente, se não tivesse um grupo muito forte para sustentar uma ideia, defender uma emenda, arriscava não passar. Era uma responsabilidade enorme. Cada momento era muito difícil”.

José Fogaça lembra que os parlamentares estavam reaprendendo a negociar na ANC / Crédito: Mauro Schaefer

 

Uma colcha chamada PMDB

A Assembleia Nacional Constituinte era formada por 559 parlamentares. Em toda votação, vencia quem alcançasse a maioria simples, portanto, 280 votos. Quando se iniciaram os trabalhos para a construção de uma nova carta, o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) contabilizava 303 representantes. Era mais do que suficiente para aprovar com folga qualquer tema. Desde que não houvesse divisões internas dos matizes mais variados. “Quando o partido cresceu, ele não cresceu de forma homogênea. E uma parte nova que se incorporou não tinha a mesma identidade”, observa Vicente Bogo, confidenciando um certo constrangimento quando a sigla recebeu em seus quadros José Sarney em 1984, vindo diretamente do PDS (Partido Democrático Social), o partido ligado aos militares.

'O PMDB sozinho poderia ter escrito a Constituição, dando uma banana para tudo que é partido'

Para além de uma maioria numérica, o protagonismo político na época era todo do PMDB, afinal de contas em seus quadros havia tanto figuras ligadas à esquerda como à direita, inclusive o então presidente da República, José Sarney. “O PMDB é que pontificou essa unidade para a reconstituição da democracia. Foi quando vieram as eleições diretas. O compromisso do PMDB perante o povo, entre outras coisas, estava, de fazer uma constituinte para elaborar uma nova Constituição, limpando as legislações anteriores”, afirma Luís Roberto Ponte, que prossegue: “O PMDB sozinho poderia ter escrito a Constituição, dando uma banana para tudo que é partido. Mas não. O partido era uma colcha de todos os pensamentos políticos”. 

Tantas diferenças cobrariam seu preço em algum momento. Menos de dois meses depois de iniciados os trabalhos na ANC, os sinais eram inequívocos. No final de março, as lideranças do PMDB costuraram um acordo que cedia a vice-presidência da Constituinte ao PFL (Partido da Frente Liberal). Faltou combinar com a bancada do partido, que não só recusou o acerto como ainda elegeu o senador Mário Covas como novo líder, em vez da esperada reeleição de Luiz Henrique. O golpe mais forte, contudo, viria no ano seguinte, quando, em abril, nomes de peso do PMDB, como o próprio Covas e Fernando Henrique Cardoso formalizaram o rompimento com o governo de Sarney, do mesmo partido, e formaram um bloco independente. Dois meses depois, era fundado o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), com dezenas de quadros vindos do PMDB.

O nascimento do Centrão 

O termo voltou à cena nos últimos anos na política brasileira e não dá sinais de que vá embora tão cedo. Mas sua origem remonta aos trabalhos na Assembleia Nacional Constituinte. Ele mesmo, o Centrão. Formado pela união informal e/ou pontual do PFL, PDS, PL (Partido Liberal), PDC (Partido Democrata Cristão) e PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), o grupo, de viés de direita e centro-direita, surgiu quando viu a necessidade de votar de forma homogênea para alterar o regimento interno da ANC, e assim impedir o que considerava um texto muito progressista. O apoio mais pesado, no entanto, vinha de José Sarney, do PMDB, que diga-se de passagem, também teve vários dos seus quadros apoiando a nova união partidária. Não por acaso, uma das vitórias do Centrão foi aprovar um mandato de cinco anos para o então presidente - o primeiro texto da Constituição previa quatro.

“O Centrão se reunia com empresários fortes, grandes. Devia ter gente que recebia dinheiro desses empresários. Era possível, eu digo mais, era provável. Mas isso se generalizou muito, ainda mais com as narrativas que a esquerda criava. ‘Ali é um antro de corrupção’, ‘Tudo que eles defenderem é anti-popular’. E era o contrário. O Centrão salvou o Brasil. E fez mais evitando do que colocando coisa, em que pese tenha colocado o essencial: a livre concorrência. A Constituição brasileira exclui qualquer sinal de implantação do comunismo na ordem econômica, zero”, aponta Luís Roberto Ponte.

"A hora de votar é quando os velhos estão com fome e os novos querem ver as namoradas"

A hora certa de votar

    Apesar das incansáveis reuniões entre lideranças e encontros internos de cada partido, havia muitas votações que demandavam estratégias diferentes para serem aprovadas, visto que todo e qualquer voto poderia fazer a diferença. E em alguns casos, a tática passava pelo menor espaço possível para o debate e as discussões. O deputado Nelson Jobim revela que certa feita, em uma destas disputas acirradas, percebeu que já havia quórum suficiente para que a decisão fosse tomada pelo plenário. Informou então ao presidente da ANC, Ulysses Guimarães. Ouviu de imediato: “Ô jobim, tu sabes que hoje a pauta é complicada. Quando é complicada e o plenário é esse,  a hora de votar é quando os velhos estão com fome e os novos querem ver as namoradas.”

Barrado na porta 

Na dinâmica da Assembleia Nacional Constituinte, nenhum tema estava definido até que houvesse a votação. Isso em teoria. Na prática, a maioria das questões era definida fora do plenário, em salas fechadas do Congresso Nacional ou mesmo longe de lá, no apartamento de algum parlamentar. As reuniões de lideranças, onde aconteciam o debate de fato e cada lado cedia sua parte até chegar ao denominador comum mais próximo, foram rotineiras ao longo dos 19 meses de trabalhos da ANC. “Houve a criação da reunião dos líderes partidários, presidido pela liderança do PMDB, que era o Mário Covas. Essa reunião se dava de manhã para ver as votações da tarde. Como ali os líderes tinham autoridade política com as suas bancadas, se negociava todos os textos. O resultado era o seguinte: havia textos em que a gente combinava a redação. E outros que não acertamos o mérito, tinha brigas. Então acertávamos o procedimento, como iríamos debater aquela matéria”, conta Nelson Jobim, que ainda revela: “Ia para o plenário tudo acordado, o Ulysses lia e os líderes confirmavam e as bancadas votavam junto.” Para muito além das formalidades, é bastante provável que algumas das leis mais importantes do país tenham sido resolvidas em encontros informais por grupos reduzidos. “A gente vivia em reunião. Quem passava pelo Lago Paranoá e via aqueles casarões todos iluminados à noite, nem imaginava. Mas ali se decidia muito mais coisa da Constituição do que lá no plenário”, observa Olívio Dutra, deputado à época e que posteriormente foi prefeito de Porto Alegre e governador do Rio Grande do Sul.

    Quem ficava de fora dos debates, no entanto, nem sempre via com bons olhos os acertos no andar de cima. O termo não era utilizado na época, mas 35 anos depois, Vicente Bogo acredita que fosse hoje em dia e muito provavelmente faria parte do “baixo clero” do Congresso, sem tanto peso político. Não demorou para perceber que muitas decisões eram tomadas fora do plenário. Queria ao menos tentar participar, mas sequer sabia onde aconteciam os encontros. Teve então a ideia de prestar atenção para onde iam os jornalistas que cobriam o dia a dia da ANC. Dito e feito. O problema é que descobrir o local não significava ter acesso. Tentou uma, duas, três vezes e nada. Adotou uma tática mais arriscada: “Não me deixavam entrar na reunião. Até que comecei a fazer protestos na frente dos jornalistas. Aí deixaram, mas não me deixavam falar. Levantava a mão e nada. Um dia perguntaram: ‘Você é líder do que?’. Parei e pensei: ‘Dos trabalhadores rurais’. Bom, me deixaram continuar lá, mas com pouca participação”, recorda.

Vicente Bogo traçou estratégias para deixar de ser barrado na porta de reuniões de liderança / Crédito: Mauro Schaefer

 

Ameaça de morte 

Em uma das votações, ainda nas comissões, relativas à Reforma Agrária, todo e qualquer voto era disputado até o fim. As contas precisavam fechar e para isso era imprescindível que aqueles votos considerados certos estivessem presentes no dia da decisão. Pelos cálculos de Vicente Bogo, a decisão seria apertada, mas o grupo a favor da Reforma sairia vitorioso. Só que três dias antes, um dos parlamentares que votaria a favor desapareceu. Demorou até que se descobrisse que ele havia voltado para o seu estado, em Pernambuco. Em um ato quase desesperado, o grupo resolveu bancar um voo particular para trazê-lo a tempo de votar. “Dava um mês de salário de cada um. Pagamos e mandamos buscar”, conta Bogo. Só que chegou o dia e a missão virou uma corrida contra o relógio. Nesse meio tempo, era preciso garantir que a sessão não acontecesse. “Fizemos obstrução de votação durante umas oito, dez horas. Não sei como a gente conseguiu fazer obstrução até quase 1h da manhã”, lembra o parlamentar.

"Ele disse que estava sob ameaça: ‘Os caras vão me matar. Se eu sair daqui, estou acabado’, revelou"

O voo enfim pousou em Brasília, mas não em tempo hábil. Depois de muita demora, a pauta foi a debate e o grupo de Bogo derrotado. Quando o deputado pernambucano enfim chegou, os demais foram ao encontro dele, que revelou não estar muito bem, com palpitação. “Ele disse que não poderia ir para casa, senão ia morrer. ‘Os caras vão me matar. Se eu sair daqui, estou acabado’. Ele deixou claro que estava sob ameaça, por isso havia ido embora”, conta Bogo, sem revelar o colega ameaçado, que teve de ficar três dias escondido no apartamento do deputado gaúcho.

Direita, esquerda e civilidade 

    Era um mundo pré-Internet e, principalmente, pré-redes sociais e todas as suas bolhas raivosas, o que ajudava muito. Mas fato é que a relação entre os lados opostos durante a Assembleia Nacional Constituinte é motivo de elogios por parte de todos os envolvidos, ainda mais quando analisado com olhos de 35 anos depois. “Queria eu estar negociando com aquele Centrão agora. Claro, o Ulysses (Guimarães), o (Márcio) Covas, o Lula ajudavam muito. E o outro lado também. Eu falava até com o Amaral Netto, que defendia a pena de morte, com o Delfim Netto”, lembra o senador Paulo Paim. Os debates podiam ser acalorados e as disputas ferrenhas, mas havia sempre uma linha da civilidade que nunca era cruzada.

    O ponto de partida para uma relação de respeito era a consciência mútua de que o verbo ceder faria parte de qualquer negociação e que ninguém sairia 100% satisfeito. “Hoje é muito difícil, não existe mais esse diálogo de construção. Há vezes em que a redação pode não ser a ideal, mas é a possível. E naquele momento era fundamental, por isso que avançamos muito. Tudo foi negociado dentro do possível. Claro que queríamos a jornada de trabalho de 40 horas, mas conseguimos 44 horas. Claro que queríamos um adicional de férias em dobro, mas pelo menos passou um terço”, exemplifica novamente Paim, do PT. Olívio Dutra, do mesmo partido, lembra que a fala calma muitas vezes servia para acomodar forças e definir o peso de cada sigla. “O Ulysses conversava com a esquerda, mas sempre trabalhou para que não ficássemos com a presidência de nenhuma comissão, ao mesmo tempo que estávamos sempre participando”, diz ele. É a relação com o presidente da época, no entanto, que ganha uma definição incomum: “O Sarney era uma raposa bem peluda, mas muito civilizada".

Olívio Dutra lembra que decisões eram tomadas nas mansões na região do Lago Paranoá / Crédito: Mauro Schaefer

A divisão, fisicamente falando, era explícita. Tomando como referência a cadeira do presidente da Câmara, os grupos de direita ficavam à direita e os de esquerda, por óbvio, à esquerda. Há aqui, evidentemente, uma diferença entre respeito e camaradagem. Políticos de grupos opostos não conviviam como se fossem melhores amigos. Vicente Bogo conta que em mais de uma ocasião teve dúvidas sobre determinados projetos oriundos de representantes da direita. Ao contrário de muitos colegas, contudo, não pensava duas vezes antes de ir até o lado oposto para esclarecer os pontos. Só que nem sempre era bem recebido. Não havia grosseria nem nada, mas o deputado conta - e isso valia para a direita e a esquerda - que ninguém queria correr o risco de aparecer em uma foto ao lado de um adversário. Ou, em casos mais extremos, de estar conversando com um possível infiltrado atrás de informações.

'O Sarney era uma raposa bem peluda, mas muito civilizada'

    Fato é que as rotineiras reuniões entre lideranças azeitavam a relação e preparavam todos para o passo adiante. Mesmo em casos de debates mais sanguíneos, todos sabiam de antemão. “Se estabeleciam as  regras da disputa em assuntos nos quais não havia acordo. Se era uma briga abaixo da cintura, se seria mais calma ou não. Era tudo combinado. Não tinha ódio, éramos adversários, não inimigos”, conta Nelson Jobim. A visão é corroborada por outro parlamentar da época. “Era um ambiente de muita conversa. Para mim política é conversa. Não é diálogo, diálogo é uma palavra pedante. Você conversava, havia muita conversa. A direita que estava lá, estou te falando tipo Jarbas Passarinho, etc e tal, era uma direita muito civilizada”, recorda Fábio Feldmann.

    Outro diferencial na relação entre direita e esquerda é que o final dos anos 1980 ainda estava livre do conceito de fake news e sua busca incessante em ridicularizar e/ou desacreditar o adversário, não importa os meios e as consequências. “Os momentos de atrito eram raros, só quando tinha alguma futrica. Como regra, você tem pensamento diferente, voto diferente. Lá no microfone você defende a sua tese, mas não tanto como agora. Porque agora se mente, se ofende as pessoas, dizendo mentiras, versões. São as narrativas que destroem as pessoas. Eu estou respondendo um processo do Xandão porque disse que o Lula é ladrão”, afirma Luís Roberto Ponte, referindo-se ao ministro Alexandre Moraes, do STF.

O teco teco e a greve

Até hoje, o senador Paulo Paim orgulha-se da sua capacidade de diálogo e negociação. Afirma que um “bom sindicalista se mede não pelo número de greves que comandou, mas pelos acordos que firmou”. Naquele biênio entre 1987 e 1988, havia um tema que se avizinhava complicado: o direito à greve. As conversas entre campos opostos iam bem, mas em dado momento um dos representantes da direita estava longe do Congresso Nacional. Ronan Tito, senador por Minas Gerais, havia ficado em sua fazenda, no interior do Estado. Paim tinha pressa e buscou o contato. Obteve como resposta que então viajassem até a fazenda para seguir a conversa. O político gaúcho disse que não havia condições, mas Tito colocou um avião à disposição. “Foi um sufoco aquele teco-teco”, diverte-se hoje Paim.

As tratativas com o senador mineiro foram positivas, mas eram apenas o começo. De volta a Brasília foi informado de que teria que passar por outras duas figuras icônicas daquela legislatura: Mário Covas e Jarbas Passarinho. O primeiro era um caso, em tese, mais simples. E, de fato, assim foi. O senador paulista concordou com o texto quase de imediato, mas lembrou: “Por mim está bom, mas tem que ver com o Passarinho”. Paim partiu ciente de que precisaria de muito mais habilidade de negociação para ter sucesso. Veio a surpresa: “Fui lá. Ele era um homem muito culto, independentemente da posição política, liderava o Centrão. Em cinco minutos ele leu o texto e me disse: ‘Vou defender na tribuna que o texto está bom’”. 

O texto foi lido e aprovado, com 288 votos. E fez valer a viagem no teco-teco.

Temores

Em 21 de julho de 1988, o Correio do Povo trazia a seguinte manchete: “PFL quer adiar a Constituinte”. O texto indicava que o partido queria o adiamento das votações para depois das eleições daquele ano, e que se não fosse atendido, poderia ir além, “ou até mesmo a dissolução da Assembleia Nacional Constituinte, com a convocação de novas eleições para deputados federais e senadores”. O blefe não deu certo, tanto que as votações aconteceram e a Constituição foi promulgada mais de um mês antes dos pleitos municipais. Contudo, a simples menção pública de dissolver a ANC evidenciava os temores de que ventos golpistas soprassem novamente.

    “Havia o temor de que pudesse se criar um clima parecido com outros períodos da história, de ‘ameaça do comunismo’ ou algo assim. Havia o temor de que a direita tentasse algo e por parte da esquerda, o temor de que não se incluísse temas pretendidos por causa desse receio”, revela Vicente Bogo. O deputado conta ainda que por mais que o tema fosse discutido à meia voz nos corredores, nunca tomou uma proporção pública para que não se corresse o risco de passar uma imagem de medo. Pelo contrário, era preciso seguir em frente. “Nossa missão era empurrar e tirar o máximo daquele texto. Havia muitos constituintes com receio, diziam que poderíamos perder tudo ao tentar colocar mais coisas. Que perdêssemos. Se fosse o preço, que perdêssemos”, lembra Jair Krischke, fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), presença frequente nos corredores e gabinetes do Congresso Nacional na época.

    Do lado dos militares, a questão não passava despercebida. “Havia preocupações. Muito da perspectiva militar, eu me lembro bastante dos alertas que o presidente Sarney fazia à época de que iria tornar o país ingovernável. Havia uma discussão muito grande  e a discussão sobre o papel das Forças Armadas, que era uma coisa mais setorizada e que a gente prestava mais atenção”, conta o general da reserva Sérgio Etchegoyen.

José Sarney (E) e Ulysses Guimarães elevaram a tensão do país no fim de julho de 1988 / Crédito: CP Memória

    O ápice deste ambiente de desconfiança foi em 26 de julho de 1988, quando o presidente José Sarney convocou rede nacional de rádio e televisão para um pronunciamento de 28 minutos. Não falou em dissolução, mas criticou o texto da carta, afirmando que, se aprovado, deixaria o país “ingovernável”. No dia seguinte, Ulysses Guimarães utilizou o mesmo meio para dar a resposta. E não poupou palavras: “Esta Constituição terá cheiro de amanhã, não de mofo. A Constituição que faremos será a guardiã da governabilidade”.

    “Era um momento de enfrentamento, tanto que o Ulysses tinha uma preocupação que o processo constituinte fosse interrompido. Ele tinha pressa, tanto que sua marca era dizer: ‘Vamos votar, vamos votar’”, conta Hermes Zanetti, deputado constituinte. “Nós sabíamos que tinha uma coisa inconclusa nessa transição (da ditadura para a democracia) e que se a Constituição avançasse como deveria avançar, isso gerava inquietação. E o Sarney jogava com essas coisas, puxava aqui um freio de um lado, dava uma coisa ali para não deixar o campo progressista muito solto para avançar as coisas”, avalia Olívio Dutra. Com ou sem enfrentamentos e freios, fato é que o ex-presidente colecionou importantes vitórias ao longo do processo, afinal não apenas o modelo presidencialista foi mantido como o seu mandato acabou definido em cinco anos. “A Constituinte é um ente que tem mais poder que o presidente. E o Sarney manteve a Constituinte sabendo que estavam propondo um poder que poderia destituí-lo”, pondera Luís Roberto Ponte.

A relação com os militares

    Se havia uma relação que despertava expectativa em todos os setores era como os militares se comportariam durante a Assembleia Nacional Constituinte. O processo de abertura após décadas de autoritarismo havia começado alguns anos antes, mas era durante a ANC que os caminhos para o futuro seriam pavimentados. E os militares, como todas as demais classes, também tinham seus interesses e suas campanhas. “Havia um lobby presente até mesmo de forma física”, conta Vicente Bogo, lembrando que havia um espaço para o grupo em um dos anexos do Congresso Nacional.

    O poder político pode ter sido exercido com maior ou menor força nos bastidores, mas, pelo menos explicitamente, não houve maiores altercações com os parlamentares no decorrer de todo o processo. E um personagem é tomado como o grande responsável por isso. “O papel político que o Sarney teve foi fundamental para o país ser pacificado. Fundamental. Fundamental para a pacificação, para a compreensão geral, enfim, era um momento importante. A Constituinte era uma coisa necessária. Se pode fazer outras críticas ao presidente Sarney em outras áreas, como economia, por exemplo, que efetivamente foi um desastre, mas na pacificação ele foi essencial”, avalia Sérgio Etchegoyen. Além do ex-presidente, o general da reserva credita também ao general Leônidas Pires Gonçalves a relativa calmaria durante a ANC. “O general Leônidas conseguiu enfrentar todas as provocações que aconteceram, que são normais, que são do jogo político. E acho que o presidente Sarney conseguiu, com sua experiência política e talento político, fazer manter o barco bem aprumado no meio daquela confusão toda”, diz.

Ascensão e queda do parlamentarismo

    “A partir de agora, tenho inteira convicção de que o neoparlamentarismo será o sistema que vigorará no Brasil nos próximos anos”. A frase, de confiança inequívoca, é do senador José Fogaça e foi publicada em uma matéria de capa do Correio do Povo em 16 de junho de 1987. O jogo ainda estava no primeiro tempo, mas os apoiadores do parlamentarismo não tinham qualquer dúvida de que o presidencialismo vivia seus últimos anos no Brasil. Dois meses depois, o relator Bernardo Cabral entregava a segunda versão do anteprojeto e, apesar da pressão do presidente José Sarney, o parlamentarismo seguia lá, firme e forte. Como que um projeto que lidava com tanto favoritismo - e que poderia mudar por completo os rumos do país - saiu então derrotado da Constituição de 1988? Bem, a questão é muito mais complexa do que isso, mas a grosso modo, é possível enumerar alguns fatores: doses similares de ingenuidade e autoconfiança, desconexão com andares mais baixos, a briga pela próxima presidência do país e, não poderia faltar, o Centrão.

    Durante os dois anos da Assembleia Nacional Constituinte, ninguém simbolizava mais o projeto parlamentarista do que José Fogaça. Tanto que o senador foi escolhido como relator da Subcomissão do Poder Executivo, uma das mais importantes, já que definiria o modelo de governo a partir da promulgação do texto. “Fui levado pelo (Mário) Covas. Havia outros políticos do PMDB que também poderiam ser indicados. Era uma questão política e ele sabia que eu poderia indicar um projeto de parlamentarismo bem estruturado”, relembra o político gaúcho. Por meses, ele dedicou-se com afã à causa, ajudando na criação de regras e estabelecendo um molde constitucional que prepararia as estruturas gerais da legislação para o novo regime - a ferramenta da medida provisória, por exemplo, foi copiada do modelo parlamentarista italiano. Havia vontade política, havia apoio dos partidos, era só uma questão de tempo. Ou pelo menos era o que imaginavam os parlamentaristas.

'No parlamentarismo, não haveria nenhuma chance de o Collor vencer a eleição para presidente'

    Em setembro, já havia manchetes apontando suspeitas por parte do PMDB das intenções do PFL em abrir caminho para um bloco de centro-direita, o que de fato ocorreu com a criação do Centrão, ligado ao governo federal. De quebra, nos bastidores o presidente José Sarney, favorável ao presidencialismo, mostrava força amealhando apoios públicos - e outros nem tanto. Quando Fogaça e seus colegas começaram a perceber esses movimentos, já era tarde demais. Para o senador, há outro fator que deve ser levado em conta para a mudança de postura de muitas siglas: a perspectiva de eleger um presidente em breve. “Muitos constituintes e partidos mudaram de posição sobre o parlamentarismo porque acreditavam ter chance de eleger um presidente. Lula, Ulysses, Covas, Freire, (Leonel) Brizola, Afif (Domingos)”, avalia o então senador. De fato, todos os citados concorreram ao cargo em 1989, mas acabaram derrotados por Fernando Collor de Mello. “No parlamentarismo, não haveria nenhuma chance de o Collor vencer a eleição para presidente”, aponta ele, para em seguida analisar: “Os partidos pensaram mais em si mesmos naquele jogo multipartidário, acharam que era o momento para ter uma definição mais clara do que precisava acontecer”.

De favorito, o projeto do parlamentarismo acabou derrotado no plenário da Assembleia Nacional Constituinte / Crédito: CP Memória

    Para quem estava menos envolvido diretamente na questão, contudo, a conclusão é um tanto mais simples. De acordo com Olívio Dutra, nunca houve clamor pelo parlamentarismo imaginado pelos seus apoiadores. Se as notícias davam conta de tamanho favoritismo, é porque talvez as fontes ouvidas estivessem otimistas demais: “Essa era uma visão de cima para baixo. Embaixo nunca se teve essa aceitação. Eu achava que não passaria, como não passou. Não era um absurdo propor, mas as experiências no Brasil mostram que ele sempre foi utilizado como um atalho para as classes dominantes manterem o poder”.

    Quase cinco anos após a promulgação da Constituição, em 21 de abril de 1993, os brasileiros foram às urnas para definir, por meio de um plebiscito, a forma e o sistema de governo do país. Em uma eleição em que a República bateu a Monarquia por 86,6% a 13,4%, o presidencialismo venceu com acachapantes 69,2% dos votos, ante 30,8% do parlamentarismo. “Minha grande derrota na Constituição foi não ter passado a questão do parlamentarismo. Porque foi muito tempo envolvido, achávamos no começo que haveria maioria. Foi uma grande decepção”, revela Fogaça.

O voto de protesto do PT 

    Mais do que qualquer artigo da Constituição, nenhum tema foi tão recorrente nesses anos recentes de acirramento político no país quanto a posição do Partido dos Trabalhadores em relação à votação e assinatura do texto final. Muito circulou a informação de que o PT não havia assinado a carta, quando na verdade a sigla, em protesto contra um texto que acreditava ter ficado aquém do imaginado, votou contra, mas depois assinou junto com os demais. “Ainda não foi desta vez que a classe trabalhadora pôde ter uma Constituição efetivamente voltada para os seus interesses. Ainda não foi desta vez que a sociedade brasileira, a maioria dos marginalizados, vai ter uma Constituição em seu benefício. (...) Patrão, neste país, vai continuar ganhando tanto dinheiro quanto ganhava antes, e vai continuar distribuindo tão pouco quanto distribui hoje. É por isto que o Partido dos Trabalhadores vota contra o texto e, amanhã, por decisão do nosso diretório – decisão majoritária – o Partido dos Trabalhadores assinará a Constituição, porque entende que é o cumprimento formal da sua participação nesta Constituinte”, disse o então deputado e hoje presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em seu discurso na Câmara dos Deputados no dia 22 de setembro de 1988.

A decisão, contudo, não foi tomada sem uma série de reuniões internas da sigla e de seus representantes na Assembleia Nacional Constituinte. “Houve debate e uns diziam que não era tudo que queríamos e que uma forma de protestar seria não assinar”, revela o senador Paulo Paim, um dos 16 parlamentares da sigla na ANC. De acordo com ele, apesar das discussões, a votação interna não foi sequer equilibrada: “Pelo que me lembro, apenas dois ou três ficaram na posição contrária”.

No plenário, Lula afirmou que o PT votaria contra a Constituição, mas assinaria o texto / Crédito: Ricardo Chaves / Estadão Conteúdo

De acordo com Olívio Dutra, o então deputado Florestan Fernandes, de São Paulo, teve um papel decisivo nas conversas no sentido de convencer os demais da importância de assinar o documento, mesmo com ressalvas. “Participamos de todo o processo, perdemos muitas vezes e mostramos nossa insatisfação com muitas coisas que achávamos que deveria ter acontecido, como a Reforma Agrária, a Reforma Tributária, a Reforma Urbana. O texto final ficou aquém”, afirma o ex-governador. Mesmo insatisfeitos com vários pontos do texto final, a decisão dos parlamentares foi a de validar a Constituição. “O PT participou do processo, ganhou, perdeu alguns pontos. Reconhecíamos que foi um avanço, mas queríamos mais. Só que o debate continua, então não podíamos deixar de reconhecer”, diz Paim.

A revisão polêmica

    Em 2003, já ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim concedeu uma entrevista ao jornal O Globo na qual revelou que durante a Comissão de Redação da ANC, trechos foram adicionados ao texto, que não teriam passado por votação anterior. A polêmica se estabeleceu, com acusações de fraude e de alterações sem a ciência dos demais parlamentares. A questão tem acompanhado o ex-deputado desde então. “Ficou a pecha que eu tivesse falsificado. Não falsifiquei nada, foi algo que decorreu das circunstâncias de o regimento começar do zero”, explica.

'Não falsifiquei nada, foi algo que decorreu das circunstâncias de o regimento começar do zero'

De acordo com Jobim, no início dos trabalhos da Comissão de Revisão foram verificadas algumas omissões em pontos já aprovados. A solução encontrada foi adaptar o texto, desde que houvesse concordância dos líderes dos partidos. No entanto, como houve reação de alguns parlamentares, a saída foi uma espécie de terceiro turno, comandada pelo presidente da ANC, Ulysses Guimarães, com votação nominal, onde houve a aprovação.

Ainda sobre o texto, Jobim observa outra curiosidade. As primeiras versões da Constituição receberam críticas por terem artigos demais. A carta final, no entanto, parecia bem mais enxuta. De acordo com o ex-ministro, porém, poucos foram os artigos suprimidos. O que houve na prática foi apenas uma mudança de perspectiva. “Quando houve a crítica de que havia muitos artigos, o (relator Bernardo) Cabral transformou muitos artigos em parágrafos. O Artigo 5º tem lá 40 e tantos incisos. Eram artigos. Com isso, ele achou que estava diminuindo o tamanho da Constituição”, aponta.

Festa e democracia

    Vencidos os obstáculos e negociados todos os artigos, restou para o dia 5 de outubro a formalidade e a comemoração. A partir do discurso de Ulysses Guimarães, o Brasil promulgava a sua nova Constituição e asfaltava o caminho da democracia para os anos que se seguiriam. “A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. (...) A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia.”

"A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia", discursou Ulysses Guimarães no promulgação / Crédito: CP Memória

    A garantia da democracia é, ainda hoje, o aspecto mais comemorado daquele texto de 1988. “Precisava acontecer a reconstrução do Estado de direito democrático. Trabalhamos muito com essa preocupação, sem isso não seria nada. Isso foi a nossa principal conquista”, celebra Vicente Bogo, que completa: “Hoje se faz uma crítica de que ficou muito detalhista. Mas a sensação era de que se não fosse feito naquela hora, nunca mais”. Apesar das ressalvas, o texto da carta é celebrado e visto com orgulho até hoje por quem participou de todo o processo ao longo daqueles dois anos. “É a melhor Constituição de todos os tempos porque houve uma grande mobilização popular. Foi algo rico e pujante, foi um coroamento”, classifica Hermes Zanetti.

Dado o contexto político das duas décadas anteriores, a promulgação da Constituição de 1988 ganhou contornos de uma façanha épica para muitos dos envolvidos. Era a chegada ao cume de uma montanha que se apresentava ameaçadora a quem ousasse escalá-la. “Conseguimos algo que parecia impossível para a minha geração. Vi colegas na faculdade de Direito sendo tirados de aula para nunca mais voltarem, nunca mais ouvimos falar deles. Eu tinha 16 anos em 1964. Poder caminhar em cima da solidez de uma Constituição sólida, estável, democrática e duradoura e dizer 'Vamos em frente' foi um grande orgulho, uma grande realização da minha geração”, comenta Fogaça. “O grande legado que fica é a democracia. Cada um pode discordar de determinados pontos, mas a Assembleia Nacional Constituinte  foi um momento nobre que consolidou o processo democrático e avançou no campo social”, corrobora Paulo Paim.

Mas...

É inegável que houve muitas conquistas a partir da Constituição de 1988 em várias áreas. O que não significa, nem de longe, que todos tenham saído completamente satisfeitos daquele processo. Até porque sabia-se, desde o início, que as negociações tendiam a buscar um meio termo prioritariamente. “Nunca vendemos a ilusão de que seria uma revolução”, adianta o ex-governador Olívio Dutra. Parlamentar à época, ele não se esquiva de criticar o texto da carta em vários aspectos. “Houve enormes avanços na democracia e na conquista de direitos sociais, mas não aprofundamos em várias áreas, como arrecadação e sua distribuição. Não houve mais avanços porque alguns setores não gostaram”, aponta.

Luís Roberto Ponte lamenta que o texto final garantiu o que chama de super poderes do Judiciário / Crédito: Mauro Schaefer

Se o campo de esquerda tem suas ressalvas, na direita não é diferente. “Poluímos a Constituição de direitos. Todo mundo tem direito a tudo”, critica Luís Roberto Ponte, para quem o acúmulo de força do Poder Judiciário é consequência direta do texto de 1988. “O que foi catastrófico foi ver esse super poder do Judiciário. Porque é um poder que não tem povo. E o poder é o povo. Por definição, o povo é o detentor exclusivo do poder. Está lá no artigo: ‘Tudo emana do povo’”, afirma, citando o parágrafo único do Artigo 1º.

Seja como for, há quase um consenso de que o ambiente menos bélico nas negociações à época proporcionou senão a melhor Constituição de todas, a melhor possível. Também porque nenhum dos seus envolvidos queria perder a oportunidade de fazer parte da história. “Existia um sentimento na Constituinte de que haveria um legado importante. Isso fez com que praticamente todos os parlamentares quisessem dar uma contribuição positiva e generosa para o Brasil”, diz Fábio Feldmann.

 

* Sob supervisão de Mauren Xavier e Carlos Corrêa

 

 

 

 

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