Caros e escassos

Caros e escassos

Problemas globais e desorganização da economia causados pela pandemia de Covid-19 sinalizam momento de crise no abastecimento de insumos para a agricultura, dos quais o Brasil ainda é dependente em grande parte de importações

Por
Nereida Vergara

Os produtores de grãos do Rio Grande do Sul enfrentaram neste ano um desafio sem precedentes no que diz respeito aos custos de insumos como fertilizantes e defensivos, em alguns casos, como o da ureia e o do glifosato, por exemplo, com altas acima de 300%. A disparada dos preços veio impulsionada pela desorganização das cadeias da indústria global em decorrência da pandemia de Covid-19, carência de matérias-primas, problemas logísticos mundiais e questões políticas e ambientais que atingiram grandes exportadores, como China, Rússia e Bielorrússia. Essa conjunção de fatores, mais a dependência do Brasil das exportações – o país importa 80% destes insumos, tendo abastecimento de apenas 20% da necessidade no mercado interno – criou a chamada “tempestade perfeita”, tão rara quanto prejudicial.

O economista-chefe da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Antônio da Luz, diz que as eventuais dores de cabeça que os produtores rurais enfrentaram ou estão enfrentando em relação ao atraso na entrega de insumos para o plantio da safra de verão 2021/2022 são só a ponta de um problema que deve se apresentar de forma muito mais impactante na safra 2022/2023. A crise no fornecimento de insumos para a agricultura, segundo Da Luz, é resultado de um somatório de problemas. “A safra 2021/2022 está praticamente plantada e o produtor que estiver sofrendo algum impacto será na entrega dos insumos que comprou. Já as culturas de segunda safra e a safra de inverno devem ter dificuldades maiores, no ano que vem”, confirma.

O economista cita, além da pandemia, as questões energéticas, que implicaram na diminuição do uso de combustíveis fósseis por países europeus e asiáticos e o impacto político das sanções à Bielorrússia, que produz cerca de 20% do cloreto de potássio utilizado no mundo. “Com a redução do uso dos combustíveis fósseis se extraiu menos petróleo, e o nitrogênio, fundamental para a agricultura, é um componente dos adubos”, comenta. Da Luz ressalta que a retomada econômica após o período mais crítico da pandemia gerou uma demanda reprimida entre os países, o que acabou exaurindo a estrutura de transporte e de equipamentos necessários para a exportação/importação portuária, como navios e contêineres.

Tarcísio Minetto, economista da Federação das Cooperativas Agropecuárias do Rio Grande do Sul (Fecoagro/RS), concorda com a análise de Antônio da Luz e acredita que os efeitos da crise nos insumos vão atingir a cultura do trigo no Rio Grande do Sul já no plantio de 2022. “Ainda é cedo para dizer se haverá redução de área e produtividade, mas é um risco que está no radar se for consolidada a dificuldade de acesso aos defensivos e adubos”, alerta.

Para o assessor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Thiago Francisco Rodrigues, que atua no projeto Campo Futuro (que coleta dados de custos de produção da agropecuária brasileira), é prematuro dizer que haverá desabastecimento de insumos na safra 2022/2023. De acordo com Rodrigues, os dados concretos com que a confederação trabalha até o momento são os que indicam uma severa alta nos preços de fertilizantes e defensivos e um possível atraso na entrega dessas compras ao produtor em função dos problemas logísticos ocasionados pela pandemia. “Se um pedido de navio levava 30 dias para chegar, passou a levar o dobro, em razão das dificuldades que os portos têm tido de atender a demanda, pela falta de contêineres e valores de fretes”, frisa. “Acreditamos sim que a próxima safra vai ser plantada com custos também muito altos, mas há a tendência de as cadeias irem se reorganizando com o fim da pandemia”, diz. O assessor projeta que podem haver “faltas pontuais”, mas acha difícil afirmar que isto trará prejuízos à produção.

Dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) indicam que até o mês de outubro o Brasil importou 33,8 milhões de toneladas de fertilizantes, volume que poderá chegar a 35 milhões de toneladas até o final do ano. Na safra 2021/2022, as dificuldades maiores foram eventuais atrasos de entrega, mas a maioria dos produtores conseguiu adquirir o que precisava. Para a safra 2022/2023, as preocupações são maiores, com preços que não devem ceder e dificuldades de obtenção já para os plantios dos grãos de segunda safra e para a safra de inverno.

Há especulação, dizem entidades

Farsul, Federarroz e Fetag afirmam que está havendo oportunismo dos revendedores na majoração dos preços dos insumos

A área plantada com trigo no Rio Grande do Sul vem crescendo nos últimos anos graças ao empenho das entidades do setor e dos investimentos em tecnologia feitos pelo produtor. Neste ano, a área cultivada com o cereal no Estado chegou a 1,14 milhão de hectares, a primeira vez acima da marca de 1 milhão desde 2014.

Todo este esforço, na avaliação do presidente da Câmara Setorial do Trigo do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e coordenador da Comissão de Trigo da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Hamilton Jardim, pode cair por terra. Jardim admite que o cenário é bastante preocupante e teme que haja não apenas desabastecimento de fertilizantes e defensivos, mas também uma explosão ainda maior dos custos, com os revendedores que tiverem estoque de insumos aumentando seus preços pela lógica da oferta e da procura.

“Esta situação pode inviabilizar, no caso do Rio Grande do Sul, o trabalho que viemos fazendo, há anos, em busca do aumento de área, de maior produtividade e rentabilidade do produtor”, comenta. Jardim não descarta o aumento de preço dos alimentos derivados do trigo, mas entende que, se a questão dos insumos não for levada a sério pelo governo, no sentido de buscar alternativas, o impacto no custo dos alimentos deverá ser geral.

Outro dirigente que esboça preocupação com o cenário é o presidente da Federação das Associações de Arrozeiros do Rio Grande do Sul (Federarroz), Alexandre Velho. Ele lembra que a maioria dos orizicultores acatou o conselho da entidade para a safra 2021/2022 e antecipou suas compras para desviar do aumento de preços. “É uma situação muito preocupante, mas para a próxima safra que já apresenta tendência de redução de área e aumento na rotação de culturas com a soja e a pecuária. A recomendação para a safra 2022/2023, ao contrário, é não antecipar compras e esperar que o mercado se acomode”, pontua.

Velho entende que o problema tem componentes do desajuste do mercado em razão da pandemia, mas aponta o caráter especulatório da escassez, que elevou o preço dos insumos a patamares nunca antes atingidos. Ele ressalta que, mesmo tendo escapado da maior onda de alta, os arrozeiros já plantaram com custos acima da safra 2019/2020, entre 20% e 50% mais. “No ano que vem, a persistir essa escalada de custos, só o orizicultor de alta produtividade vai conseguir bancar a lavoura e, até este, com alguma dificuldade”, pondera.

O presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (Fetag), Carlos Joel da Silva, reporta que em suas saídas a campo nas 23 regionais da entidade os agricultores têm reclamado muito do abuso das revendas nos preços. “Para se ter uma ideia, um galão de 20 litros de glifosato, que se comprava por R$ 400,00, hoje, se o produtor quiser comprar vai pagar mais de R$ 1.000”, denuncia Joel.

Governo prepara política nacional

Ainda em dezembro, o governo federal deve lançar – por lei, decreto ou medida provisória – o Plano Nacional de Fertilizantes. O grupo de trabalho formado em março deste ano para formatar o conjunto de políticas públicas destinado a tirar o Brasil da condição de dependência internacional deste tipo de insumo entregou no dia 4 de novembro a versão final do plano. O documento está nas mãos do ministro da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, almirante Flávio Rocha. A informação é do pesquisador José Carlos Polidoro, da Embrapa Solos, que representou a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária do grupo interministerial.

Polidoro recorda que a Embrapa há duas décadas reúne conhecimento na área de alternativas aos fertilizantes tradicionais dentro da Rede FertBrasil, que agrupa os pesquisadores responsáveis pelo desenvolvimento de tecnologias nesta área. Segundo ele, o plano governamental tem validade por 28 anos e visa a colocar o Brasil numa condição de independência das importações de fertilizantes de forma sustentável, com o uso de recursos naturais e investimento na saúde do solo.

​Agrominerais como o pó de rocha estão entre as alternativas em avançado estágio de confirmação dos seus benefício. Foto: Álvaro Vilella de Resende / Divulgação / Embrapa

O pesquisador destaca como alternativas já em estágio avançado de confirmação de benefícios agronômicos os agrominerais, entre eles os remineralizadores obtidos a partir da moagem de diversos tipos de pedras da biodiversidade brasileira, conhecido pelo agricultor como pó de rocha. “Nós trabalhamos outras cadeias emergentes além dos agrominerais, que são os organominerais (resíduos orgânicos e subprodutos minerais da indústria), os resíduos da mineração e a possível utilização de lodos para a produção de fertilizantes com segurança ambiental”, pontua. José Carlos Polidoro desmistifica a ideia de que o Brasil não tem como se tornar autossuficiente em determinados tipos de fertilizantes. “O país tem reservas de fosfato e potássio que podem colocá-lo na liderança da produção de fertilizantes no mundo. O que falta é investimentos em pesquisa”, encerra.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) também vem articulando outras formas para amenizar o problema. Em 18 de novembro, a ministra Tereza Cristina anunciou acordo com empresas e autoridades da Rússia para garantir a entrega dos insumos comprados pelo Brasil para a safra 2021/2022. No dia 29 do mês passado, criou um grupo para reunir os entes da cadeia produtiva e discutir a possível escassez de insumos. Organizado no âmbito de trabalho da Câmara Temática de Insumos Agropecuários, terá a tarefa de buscar propostas para mitigar os efeitos de uma eventual crise. 

Malabarismos para obter e pagar

Agricultores do interior do Rio Grande do Sul têm feito malabarismos para conseguir implantar suas lavouras e garantir boas produtividades diante dos problemas que têm enfrentado com a escassez ou atraso na entrega de insumos. Quem adquiriu adubos e defensivos no primeiro semestre conseguiu receber suas compras para os tratos culturais iniciais, mas no segundo semestre a situação se agravou. O próprio presidente da Associação dos Produtores de Soja do Rio Grande do Sul (Aprosoja/RS), Décio Teixeira, reclama que comprou 50 toneladas de potássio para sua lavoura de soja ainda no mês de agosto de 2021 e até metade de novembro não havia recebido.

Produtor de soja há 38 anos, Julio Foster de Freitas Lima, comprou seus insumos em maio e recebeu o que era necessário a tempo para plantar os 520 hectares da oleaginosa que pretende. Segundo ele, até 25 de novembro apenas 25% da área havia sido semeada, por não ter chovido na região de Santiago, onde se localiza sua propriedade.

Lima reclama que há muitos produtos que são usados ao longo do desenvolvimento das plantas que estão faltando, principalmente herbicidas e fungicidas. “Mas é verdade também que está ocorrendo um oportunismo dos fornecedores de insumos em aumentar os preços de uma forma nunca vista”, critica. Conforme o agricultor, produtos como a ureia, fundamental para a produtividade, que no ano passado custava R$ 1,5 mil a tonelada, neste ano está sendo vendida por até R$ 5.000. “Entre os defensivos, só para citar um, o glifosato, que se pagava R$ 15,00 pelo litro em 2020, hoje está R$ 62,00”, comenta o produtor.

Produtores gaúchos anteciparam compras de insumos em 2021 e passaram a adotar adubos alternativos, mas reclamam da alta dos preços de produtos convencionais. Foto: Pixabay

Para Lima, os dissabores com o custo alto e a falta de alguns itens podem comprometer a colheita, que em 2020 foi de 4 toneladas por hectare na propriedade. “Isso, associado ao atraso no plantio por causa da falta de chuva, vai causar impacto”, pondera. O produtor não arrisca projeções para a safra 2022/2023 e garante que será preciso fazer as contas quando encerrar a safra atual para ver o que será possível plantar com custos que não dão indícios de queda.

Alceo Bandera, produtor de soja em Cruz Alta e Júlio de Castilhos, reconhece as dificuldades desta safra, mas diz estar numa posição mais confortável por ter adotado alternativas aos fertilizantes químicos em suas propriedades. O agricultor, que encerrou a colheita do trigo no final de novembro para iniciar o plantio da soja, usa adubação orgânica e a remineralização do solo com pó de rocha. Se necessário, faz correções com fósforo e potássio, mas como pratica a agricultura de precisão seu sistema é de adubação anual do solo. Bandera também vê na alta dos preços e na escassez de produtos um componente de especulação.

O produtor de Cruz Alta, que pretendia plantar 600 hectares de soja, não sabe se vai conseguir alcançar o objetivo. No entanto, com a adoção de manejo alternativo ele diz que vem obtendo excelentes resultados com a soja desde o ano passado – quando colheu em média 50 sacos por hectare – e com o trigo recém colhido, segundo ele, de qualidade superior. Usando o pó de rocha, na média de R$ 145,00 a tonelada, o gasto com adubação mineral por hectare (são necessárias cinco toneladas) fica em R$ 600,00, contra cerca de R$ 5 mil se aplicasse ureia, por exemplo. Quando o assunto é safra do ano que vem, tanto do trigo quanto da soja, Bandera afirma que a área que plantará vai depender da rentabilidade da safra 2021/2022, a qual acredita pode ser prejudicada, no caso da oleaginosa, em razão do atraso no plantio provocado pela falta de chuva.

Dificuldade reconhecida

Yara Brasil, com unidade em Rio Grande, investe na produção de matéria-prima para diminuir a dependência de importações

Com unidade remodelada em Rio Grande, na Região Sul do Estado, a Yara, líder mundial em fertilizantes, define como desafiador o cenário da safra 2020/2021 e esboça preocupação em relação ao abastecimento para o ano de 2022. Maicon Cossa, vice-presidente Comercial da Yara Brasil, assim como produtores e economistas, atribui as dificuldades à forte demanda global por insumos associada a restrições na oferta de alguns nutrientes, o que, segundo ele, acabou sendo ainda potencializado por restrições logísticas.

Cossa explica que a empresa, de matriz norueguesa, importa insumos para abastecer o mercado brasileiro de países como Rússia, Marrocos e a própria Noruega. “A empresa possui como diferencial uma robusta rede global de suprimentos, assim como uma considerável produção doméstica, tanto em matérias-primas como em fertilizantes”, diz o gestor.

Além das ações desenvolvidas pela Yara para aumentar a produção doméstica, com o intuito de diminuir a dependência de importação de matérias-primas e de fertilizantes, Maicon Cossa diz que a empresa mantém um diálogo contínuo com o segmento, “na busca de soluções em prol da agricultura brasileira”.

Planta conta com capacidade para produzir 1,2 milhão de toneladas por ano. Foto: Yara Brasil / Divulgação / CP

O Complexo Yara de Rio Grande, com obras concluídas, deve chegar à capacidade plena em 2023, conforme o planejado. O vice-presidente garante que, no momento, a unidade se encontra no estágio denominado “curva de crescimento operacional”, quando as plantas que compõem o complexo vão aumentando a sua capacidade de maneira gradativa até chegar à plenitude. A capacidade da Yara Rio Grande é de 1,2 milhão de toneladas de fertilizante por ano, mais 2,5 milhões de toneladas ao ano de mistura e ensaque.

“O fato de termos o complexo de Rio Grande produzindo em sua capacidade máxima em 2022 dá à Yara a plena condição de atender a crescente demanda”, observa Cossa. O complexo é formado por duas fábricas para produção de adubos fosfatados e NPK, uma planta de acidulação, uma planta de granulação e uma unidade misturadora, pier próprio e modal rodoviário para carga e descarga.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895