Cenário instável para o ano

Cenário instável para o ano

Com a saúde enfrentando seu pior momento desde o início da pandemia, outros setores sentem o impacto, a maioria somando perdas, econômicas ou de convívio e qualidade de vida

Por
Taís Teixeira

Dia 31 de dezembro de 2020, último dia de um ano que passou devagar, deixando marcas em muitos e cicatrizes profundas em tantos outros. A chegada de um novo ano carrega um simbolismo de esperança. Todavia, havia tempos não se aguardava pela virada com todos movidos pelo mesmo desejo de mudança: o fim da pandemia da Covid-19. Prestes a fechar o primeiro trimestre de 2021, e com um ano de pandemia, especialistas sinalizam que boa parte das dificuldades de 2020 pegaram carona com 2021 e devem se prorrogar até o término do período. Mesmo com o início da vacinação, o cenário é de instabilidade.

No dia 3 de março, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou o PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro, que caiu 4,1% frente a 2019, a menor taxa da série histórica, iniciada em 1996. Houve alta, de 2%, somente na agropecuária e quedas, de 3,5%, na indústria e, de 4,5%, nos serviços. O economista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV/IBRE) André Braz afirma que, “definitivamente, o primeiro trimestre de 2021 será bem diferente do de 2020”. O especialista relembra que esse ciclo não foi muito afetado pelo coronavírus no ano passado, pois o isolamento começou na segunda quinzena de março. Ainda recorda que a inflação era baixa e havia indicação de um crescimento mais robusto na economia, inclusive com o cumprimento da meta de inflação. Na comparação com o ano vigente, o cenário é de contraste, uma vez que se está “ensaiando” para sair da Covid-19 por meio de uma política de vacinação no mundo, ainda que no Brasil se apresente com problemas. “A expectativa era de recuperação de pelo menos 3,5%, mas existem alguns desafios grandes e todos pairam em torno da Covid-19 e da dívida pública.”

Braz afirma que o endividamento público segue crescente, já que foi necessário investir mais no auxílio emergencial. Ele ressalta que é fundamental controlar a Covid-19 no Brasil, avançar na vacinação e reduzir o déficit público e oferecer mais estabilidade ao câmbio, uma vez que o dólar chegou a encostar os R$ 6,00 porque o ambiente doméstico ainda é incerto. “Com um juro muito baixo, na casa de 2%, uma taxa de câmbio tão desvalorizada, a Covid-19 em expansão e problemas de orçamento público, o ano 2021 vai ser um grande desafio”, prevê.

O levantamento do IBGE indicou que 2020 terminou com 86.179 milhões de pessoas trabalhando, uma queda de 8,86% se comparado a 2019, que tinha 94.552 milhões de vagas ocupadas, ou seja, o ano passado findou com 8.373 milhões de pessoas fora dos postos de trabalho, maior taxa de desemprego desde 2012, ano em que começou a pesquisa sobre essa categoria. O economista da FGV/IBRE Rodolpho Tobler explica que esse número faz com que 2021 comece com um número maior de pessoas procurando uma recolocação no mercado, movimento acentuado pelo fim do auxílio emergencial. “A recuperação dessas vagas deve ocorrer diante da efetivação de uma vacinação ampla para que as empresas voltem a contratar com um cenário de menos incerteza”, explica.

Tobler observa que na pré-pandemia o cenário não era o melhor, mas se via uma recuperação maior desde 2016, puxada pelo trabalho informal. “Com a chegada da pandemia, pelas características da doença, a informalidade caiu, mas não porque houve migração para vagas formais.”

No cenário industrial gaúcho, o economista-chefe da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), André Nunes de Nunes, afirma que a perspectiva é de continuidade do avanço da inflação, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), até a metade do ano, mas deve recuar a partir do segundo semestre e fechar o ano em 4,0%. Da mesma forma, o Índice Geral de Preços (IGP-M), que respondeu mais intensamente ao aumento dos preços das matérias-primas e desvalorização cambial, deve desacelerar dos 23% de avanço observado em 2020 para 4,4% no final de 2021. “Já vemos um movimento de normalização nas cadeias produtivas que deve ser benéfico para a estabilização dos preços”, adianta.

Agronegócio deve crescer

A agropecuária, único setor que teve alta no PIB de 2020, foi alavancado pelos volumes expressivos de exportação de carnes e produtos à base de proteína animal. Todavia, à medida que o Brasil embarca carnes in natura e processada para outros países, desabastece os brasileiros. “Por isso, temos pressões inflacionárias crescentes e a principal acontece em torno dos alimentos, que é onde afeta o maior número de famílias de baixa renda, que têm orçamento concentrado na compra de alimentos”, ressalta Braz.
O economista explica que se os alimentos foram os “vilões” da inflação dos últimos 12 meses, subindo quase 20% nesse período, o pobre é o mais atingido. “A inflação das famílias está associada aos alimentos que ela consome”, sintetiza, reforçando que esse é um dos desafios impostos pela pandemia. Por outro lado, vender para outro país e receber em dólar é uma forma de tentar recuperar parte do aumento de custos. “O agronegócio tem formas de remunerar bem o produtor rural exatamente pela capacidade de atender a outros mercados que pagam melhor a estrutura produtiva”, diz Braz.

O economista-chefe da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul), Antônio da Luz, sinaliza que há preocupação com a oferta de milho para a ração animal. “Vamos depender mais ainda do milho do Centro-Oeste e teremos dificuldades orçamentárias para programas de escoamento”, pondera.

A avicultura está em situação difícil diante do alto custo de produção. Segundo a Associação Gaúcha de Avicultura (Asgav), o preço do farelo de soja e do milho, subsídios que compõem a ração animal, está elevado e ocasionou uma queda de cerca de 15% no volume de criação nas granjas comerciais, ação que terá efeitos impactantes para o setor e para outros segmentos envolvidos na cadeia. Conforme o presidente executivo da Asgav, Eduardo Santos, 2021 começa com as dificuldades de 2020 acentuadas e explica que a redução de 15% representa, em um mês, a diminuição de aproximadamente 10,3 milhões de aves a serem abatidas, o que ficaria em torno de 21,2 milhões de quilos de aves que deixarão de estar disponíveis para o consumidor. Com menos aves para alimentar, a venda dos grãos que compõem a base da ração também será comprometida e deve cair cerca de 25,7 mil toneladas de milho e 6,4 mil toneladas de farelo de soja.

Esse movimento acaba refletindo direto no bolso do consumidor. “A partir do fim de março, esse ajuste será feito sobre o produto, já que o avicultor está desesperado e precisa ter margem de lucro, caso contrário, pode abandonar a atividade”, avalia.

Para os grãos, Da Luz acredita que 2021 será um ano de bons preços, já que os valores estão subindo em dólares e a tendência da taxa de câmbio é se manter em patamares elevados. “O grande desafio desse ano será colher, pois estamos vindo de duas estiagens seguidas.”

O economista-chefe da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), André Nunes de Nunes, projeta um ano mais positivo para o agronegócio gaúcho do que em 2020. De acordo com ele, mesmo com prognóstico que não indica produção recorde, o resultado da colheita deve ser muito melhor que no ano anterior. “Assim, tanto os produtores mais capitalizados, quanto a maior oferta de insumos para as indústrias devem fornecer um novo impulso para o setor no Estado”, sinaliza.

Varejo em queda

Rose Ingrid Müller e Paula Cristina Müller usaram as redes sociais para tentar alavancar o negócio de moda feminina. Foto: Ricardo Giusti

Acompanha-se o anúncio de decretos com protocolos sanitários, ora mais flexíveis, ora mais rigorosos, como medida de unir viabilidade econômica e proteção da saúde. Neste movimento de “abre e fecha” dos estabelecimentos, o volume de vendas desce. O presidente do Sindicato dos Lojistas de Porto Alegre (Sindilojas), Paulo Kruse, afirma que nos meses de janeiro e fevereiro de 2021 as vendas ficaram de 20 a 30% abaixo do que no mesmo período de 2020. “Tínhamos uma perspectiva otimista, mas, agora, com o fechamento atual, vamos ficar abaixo de março do ano passado. Ainda não podemos estimar porque não sabemos quando vai reabrir”, argumenta. O dirigente da entidade que representa 19.502 mil empreendimentos de 129 segmentos em Porto Alegre comenta que o comércio essencial está aberto e vendendo mais nestes dois meses, em torno de 5% e 6% na comparação com o ano passado. “Mesmo estando abertas, essas lojas devem ter queda em março na comparação com 2020”, explica.

Apesar da baixa registrada, algumas lojas conseguiram fechar 2020 sem queda. É o caso da loja de Rose Ingrid Müller e Paula Cristina Müller, irmãs que gerenciam o negócio focado no segmento de roupas femininas. O empreendimento começou com os pais e está há 35 anos no mercado. As duas cresceram acompanhando o início do projeto familiar.

Com uma clientela fixa e consolidada, as irmãs fecharam a loja na segunda quinzena de março de 2020 devido à pandemia e tiveram que se reinventar. “Começamos a usar as redes sociais da loja, principalmente o Instagram, para postar as peças, sem saber direito como funcionava, mas tínhamos que criar um jeito de acessar às clientes”, relata Rose. Para surpresa, o uso da ferramenta deu certo e impediu que as vendas de 2020 caíssem. “Fechamos 2020 com a mesma taxa de crescimento de 2019, o que é satisfatório diante da pandemia”, descreve.

Janeiro de 2021 seguiu o fluxo e também registrou aumento de 5% sobre janeiro do ano passado, o que não aconteceu com fevereiro. “As vendas estavam altas e íamos terminar com crescimento, mas no dia 18 o comércio fechou de novo e as vendas despencaram, representando uma baixa em torno de 10% em relação ao mesmo mês em 2020”, ressalta Paula. Março não deve recuperar os meses passados. Ambas concordam que o aprendizado da pandemia é depender cada vez menos do ambiente físico e aderir de vez ao digital.

Pedro Sasso, que com o irmão Eduardo possui quatro lojas de vestuário feminino, relatou dificuldades em 2020. Foto: Ricardo Giusti

Já para os irmãos Pedro Sasso e Eduardo Sasso, também sócios de uma loja focada em moda feminina e com quatro unidades em Porto Alegre, 2020 foi de queda. “Considerando as quatro lojas, em comparação com 2019, o ano passado teve, em média, 20% de retração”, diz Pedro. Com as portas fechadas, tiveram que apostar na mudança de foco e passaram a confeccionar máscaras à base de algodão. “Fizemos um atacado e de março a junho direcionamos nossa produção para esse produto, o que nos ajudou a passar esse período”, relata. Depois de julho do ano passado entrou muita concorrência e os irmãos entenderam que não recompensava mais colocar energia neste trabalho, já que a margem de lucro tinha caído bastante e as lojas tinham sido reabertas. “Hoje, a venda de máscaras ocorre no varejo, não mais no atacado”, atualiza Eduardo.

O investimento nas redes sociais também foi um reforço. “Ajuda, mas ainda não há como depender só das redes para movimentar quatro lojas”, admite Eduardo. Dos 17 colaboradores, sete precisaram ser demitidos. Se a crise do coronavírus continuar na mesma intensidade, está em cogitação fechar duas unidades. “Essa decisão não está descartada”, reflete Pedro. O negócio começou com os pais de Pedro e Eduardo em 1993, com foco em artigos esportivos, mas, nos últimos cinco anos, passou por uma transição e hoje tem confecção feminina. Os irmãos afirmam que a pandemia está sendo o maior desafio da história da loja.
Com o isolamento social e a consolidação do home office, muitas pessoas investiram na reforma dos seus lares, o que impulsionou o crescimento do ramo da construção civil. Dados da Associação dos Comerciantes de Materiais de Construção de Porto Alegre (Acomac) revelam que na comparação de janeiro de 2021 com dezembro de 2020, houve queda de 8,95% no volume de vendas do setor. Já na relação entre janeiro de 2020 e o mesmo mês deste ano, houve aumento de 8,3%.

Presidente de uma rede de 12 lojas de material de construção no Estado, Irio Piva relata que 2020 foi de bons resultados para a empresa. Piva diz que tradicionalmente as vendas melhoram a partir de agosto, tendência que se manteve. “O segundo semestre do ano passado fechou em 25% acima do primeiro, indicando um movimento de recuperação das perdas contabilizadas nos seis meses anteriores”, destaca, lembrando que houve uma queda neste ciclo em virtude do começo da pandemia, que pode ter afastado o consumidor em um primeiro momento. Na relação com o segundo semestre de 2019, o mesmo ciclo de 2020 também indicou alta. “O aumento foi de 20% de 2020 sobre 2019”, relaciona. Piva acredita que a tendência de crescimento deve acompanhar 2021. “Com a mudança de comportamento do cliente que fica mais em casa tem investido em melhorias, como a adaptação de um escritório na sala”, comenta. Outro fator apontado é que o formato de reuniões virtuais deve favorecer o trabalho em casa, uma vez que o modelo mostrou-se eficiente para os negócios, o que seria mais um motivo para adequar a estrutura interna dos lares.

Bares e restaurantes

Para um encontro de amigos, uma reunião de negócios ou um aniversário, bares e restaurantes costumam ser opções. A pandemia esvaziou esses espaços, impondo redução de público e até fechamento completo em alguns períodos. Tudo para evitar aglomerações e o aumento da taxa de contaminação.

A presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes no Rio Grande do Sul (Abrasel-RS), Maria Fernanda Tartoni, afirma que o setor teve dificuldades em 2020, mas em julho retomou a confiança. “Com a flexibilização, chegamos a 50% do faturamento alcançado no mesmo período do ano passado.” A dirigente conta que não há um cálculo exato, mas estima que 30% dos postos de trabalho do segmento foram fechados. Sobre os primeiros meses de 2021, devido ao período de férias, diz que a queda do movimento é normal, mas que a pandemia potencializa “a agonia de não faturar”. Ela cita que o setor aguarda o fim da bandeira preta. “Vamos retomar a estabilidade, mas não a recuperação.”

Diante desse cenário, 2021 começa com sensação de tristeza e medo. “E incerteza, porque precisamos trabalhar para viver e estamos sofrendo demais as consequências da pandemia”, declara.

Dono de um restaurante e um bar no bairro Cidade Baixa, Moacir Biasibetti soma perdas financeiras e demissões nos dois estabelecimentos. “Dos quase 60 colaboradores que eu empregava, hoje trabalho com menos da metade”, conta. Ele salienta que, se permanecerem em vigor as medidas que exigem o fechamento dos estabelecimentos, ele precisará dispensar mais funcionários. O empresário destaca que janeiro foi um mês bom de recuperação, que deu “para pagar as contas”, ao contrário de 2020, que foi um ano muito apertado.

Educação

Com o Estado em bandeira preta e alerta de risco máximo de contaminação por Covid-19, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) decidiu pelo retorno às aulas remotas da Rede Estadual de Ensino disponibilizadas pela plataforma Google Sala de Aula, já usada em 2020. A perspectiva era do retorno híbrido (presencial e virtual), mas foi ajustado em função das mudanças ocorridas no Modelo de Distanciamento Controlado. Um dos pleitos do governo do Estado e do poder Legislativo é antecipar a vacinação de professores e funcionários da rede pública estadual, categoria que está no grupo prioritário para a imunização, mas ainda não há previsão de quando o governo federal disponibilizará doses suficientes para imunizar todos os professores.

Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e professor do Instituto Federal do RS (IFRS), Gregório Durlo Grisa avalia que, em geral, a ideia do modelo híbrido trata de revezamento de alunos, mas o professor tem que estar presente sempre (e disponível on-line quando em casa), o que implica mais riscos quando o contágio está elevado. “Conceitualmente, o ensino híbrido não é revezamento e pressupõe uso integrado e coerente de atividades presenciais e remotas, além de metodologias ativas específicas.” O especialista enfatiza que, onde for possível alguma atividade em revezamento, devem ser ouvidos os docentes e os gestores escolares, que têm clareza sobre as condições de trabalho e adoção de protocolos.

O professor não acredita que o retorno presencial seja tarefa simples, uma vez que é preciso pensar em um conjunto de condições, como bons equipamentos de proteção individual corretamente utilizados, higienização rigorosa e constante, distanciamento de, no mínimo, 2 metros, rastreamento e testagem combinada com isolamento e quarentena quando houver casos identificados. “Temos condições de garantir isso?”, questiona. Grisa comenta que em um momento de bandeira preta e com índice de contágio alarmante, o isolamento social deve ser ainda maior, o que inclui o fechamento das escolas. Ele entende que, ao sair da bandeira preta, a escola deve ser prioridade para se tentar o retorno presencial e parcial das crianças.

Saúde

No setor da saúde, 2021 começou com um aumento significativo de casos, que levou ao maior surto de Covid-19 no Rio Grande do Sul e no Brasil em quase um ano de incidência da doença. O infectologista do Hospital Cristo Redentor, do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), Luciano Werle Lunardi reitera que há aumento expressivo no número de casos. Além dos pacientes idosos e com comorbidades, o especialista destaca que neste ano houve uma mudança de perfil dos infectados pela Covid-19. “Notamos que os doentes são pessoas cada vez mais jovens e com sintomas mais graves.” O profissional acredita que a vacinação é a “pedra fundamental” para mudar esse cenário. “Começamos atrasados na compra de vacinas e não temos um programa sólido com doses para toda a população”, avalia. O infectologista cita Israel como exemplo de país que pôs em prática um planejamento antecipado de aquisição das doses e hoje tem a maior taxa de vacinação do mundo.

Na saúde, médicos relatam uma rotina de hospitais lotados e profissionais exaustos. Foto: Ricardo Giusti

Sobre as medidas anunciadas pelo governo estadual na bandeira preta, que decretou o fechamento do varejo, comércio, bares e restaurantes, atitude que provocou questionamento das categorias, o infectologista acredita que é uma medida “desesperada”, mas que, no atual contexto de escalada da doença, se faz necessária. “É preciso reduzir ao máximo a circulação do vírus.” Ele acredita que 2021 será um ano de momentos difíceis em que esse cenário de falta de leitos de UTI e clínico para adultos deve continuar.

A infectologista e professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo, e integrante da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) Raquel Stucchi destaca que há uma “explosão” de casos, o que impede os trabalhadores da saúde de colocarem em prática o aprendizado do ano passado devido à pressão causada pelo grande volume de pessoas que precisam de internação e de UTI. Assim como Lunardi, ela destaca que as pessoas, cansadas de um ano de isolamento, resolveram “não usar máscaras, fazer festas, promover encontros e aglomerações, e isso fez com que o vírus, que não se cansou, seguisse com forte transmissão entre as pessoas, ocasionando o surgimento das variantes, que se propagam com mais facilidade”. A especialista enfatiza que, apesar de as vacinas serem eficazes e seguras, o governo federal não providenciou em tempo adequado. “Aliado a esse contexto, ainda temos os trabalhadores da saúde, desgastados física e emocionalmente”, ressalta. Segundo ela, a situação ainda deve se agravar. “Fim de março e abril teremos momentos ainda mais difíceis”, projeta.

Infectologista do Hospital Femina, do GHC, Vicente Sperb Antonello relata que, em 14 anos em Porto Alegre, nunca viu o sistema de saúde tão sobrecarregado. “Começamos 2021 com um momento caótico da saúde, com aumento altíssimo do número de casos diários e distante de uma solução próxima.” Ele destaca o cansaço, o esgotamento e a frustração dos trabalhadores da saúde diante de toda essa situação potencializada pela dificuldades das pessoas em cumprir os três itens básicos que ajudam a conter a propagação viral: máscara, uso de álcool em gel 70º e distanciamento social. Ele entende que a questão comportamental é um dos principais problemas e não a restrição excessiva de serviços. O especialista atenta para o aumento do número de gestantes infectadas e recomenda cuidados redobrados, pois a manifestação da doença pode causar o óbito do bebê.

Transtornos psíquicos

As sequelas da Covid-19 não ficam apenas em quem contraiu a doença. Transtornos psíquicos aumentaram muito na população durante a pandemia e uma das causas é a rotina de distanciamento social. O psiquiatra e coordenador do núcleo de psiquiatria do Sindicato Médico do RS (Simers), Fernando Uberti, relata que o aumento do número de pessoas que buscaram ajuda foi maior do que a expectativa. “O distanciamento e a alteração da rotina familiar associados ao estresse contribuíram para esse cenário.” O especialista esclarece que pessoas com predisposição a desenvolver quadro psíquico se tornaram mais suscetíveis aos fatores externos, o que possibilitou a manifestação de doenças como ansiedade e depressão, além do aumento do uso de álcool e drogas. “Sentimentos de medo, abandono, solidão favorecem o surgimento desses quadros.”

No entanto, Uberti chama a atenção para alguns hábitos que favorecem o aparecimento dessas fobias. “Falta de atividade física e o consumo exagerado de informações podem desencadear esses processos”, destaca. O medo de contrair a doença também é um motivo de procura pela ajuda médica. “Muitas pessoas têm um medo exagerado de ter a doença, o que gera ansiedade e prejudica o indivíduo”, salienta. O psiquiatra identifica um número maior de pacientes mulheres e mais jovens. “Ainda não há um estudo que justifique esse perfil, mas pesquisas já estão em andamento para ter respostas”, adianta.

O especialista alerta para a responsabilidade aos cuidados sanitários com a pandemia, mas entende que “isolamento total é danoso”. Ele diz que encontrar algumas pessoas pode ser importante para manter a saúde mental. “Ajuda ver um amigo que também esteja isolado e cumprindo as medidas sanitárias, pois não é uma exposição como se reunir com 20 pessoas em um evento, o que não é indicado.” Para ocupar a mente e tentar evitar problemas de natureza psíquica, ele aconselha momentos para fazer atividades que antes não eram desempenhadas por falta de tempo, como pintura e escrita. Também diz que é fundamental manter contato com as pessoas. “Pelas redes, por telefone e por videochamada, principalmente, porque ouvir e ver a pessoa é um conforto neste momento”, reitera.

Vacinas

Com o recrudescimento do coronavírus em desalinho com o ritmo lento de vacinação, o presidente da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), Maneco Hassen, entende que o ano começa com uma situação mais grave, o que mobilizou ações por parte da entidade para defender os 497 municípios gaúchos. O dirigente relata que participou de reunião virtual no dia 3 com o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, para cobrar a compra e distribuição de vacinas por meio do Programa Nacional de Imunização (PNI). Ele sinalizou que os municípios têm interesse em comprar os imunizantes de forma autônoma. Segundo Hassen e também em declaração à imprensa, Pazuello diz que municípios ou estados podem adquirir o material, mas ele deve ser incluído no plano nacional.

Hassen destaca que esteve ainda em uma reunião on-line no dia 10 com a secretaria Estadual da Saúde, Arita Bergmann, para enfocar que a entidade, junto com o Consórcio dos Municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre (Granpal) e a Associação Gaúcha de Consórcios Públicos (Ageconp), criou uma comissão de trabalho para a aquisição de vacinas. Hoje são mais de 20 consórcios públicos no Estado, que dispõem de verba que pode ser utilizada para essa finalidade.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895