Classificação polêmica

Classificação polêmica

Especialistas em saúde temem que, ao definir velhice como doença, as verdadeiras causas do óbito possam ficar imprecisas

Por
André Malinoski

A Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu incluir, a partir de 1º de janeiro de 2022, o termo “velhice” na 11ª versão da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID). Elaborada pela agência especializada em saúde, a relação serve como referência para a identificação de tendências e estatísticas do tema em todo o mundo. O documento contém cerca de 55 mil códigos para doenças e causas de mortes, além de diversas orientações.

Os profissionais da saúde usam a sinalização presente no material para definir os atestados de óbito e também para qualquer intervenção na área clínica. É uma espécie de bússola com indicações para que lado seguir. A inclusão do código “old age” MG2A (velhice), que pretende substituir o R-54 (senilidade), no capítulo 21, está no centro de um intenso debate. O receio de especialistas em saúde é que, ao definir a velhice como doença, as verdadeiras causas do óbito possam ser transformadas em algo impreciso e distante de uma investigação mais aprofundada. As enfermidades causadoras das mortes seriam em inúmeras oportunidades mascaradas como consequência. Além disso, existe o temor de que se perca a verdadeira dimensão das mazelas para que sejam adotadas políticas públicas em resposta ao acelerado envelhecimento global. Ao rotular o tempo de vida como diagnóstico de doença, o aumento do preconceito contra os idosos também seria potencializado, enquanto, por outro lado, a indústria antienvelhecimento seria ainda mais requisitada, especialmente em países com forte apelo hedonista.

“Não me sinto velha, nem cansada e não sou doente. Se tiver que pintar uma parede, eu pinto”, garante a diarista Maria de Lurdes Soares de Almeida, de 73 anos. Ela é uma das milhares de pessoas atingidas pela decisão da OMS, pois é considerada idosa por lei. “Trabalhei como cozinheira de restaurantes por 30 anos. Fazia 600 almoços por dia. Adoro trabalhar e gosto de fazer bolos artísticos e salgadinhos”, cita Maria de Lurdes, que vive no bairro Navegantes, em Porto Alegre, é separada, têm um casal de filhos e três netos. Ela também conta uma curiosa experiência que passou há poucos dias. “Estava voltando do trabalho de ônibus e era noite. O cobrador me perguntou o que uma senhora idosa fazia na rua àquela hora. Não tive dúvidas e respondi: o mesmo que tu fazes. Estou trabalhando”, relata. Questionada sobre o que pensa acerca da velhice ser considerada doença em uma classificação internacional, ela acredita ser um erro. “Acordo todos os dias às 6h, estou sempre trabalhando e não posso ser tida como doente pela minha idade. Comecei a trabalhar com apenas 7 anos, em Palmeira das Missões, onde eu passava e engomava roupas para um casal de idosos. Precisava subir em um banquinho para conseguir fazer essas atividades”, explica.

Maria de Lurdes Soares de Almeida, de 73 anos, garante estar cheia de energia e considera um erro classificar velhice como doença. Foto: Mauro Schaefer

Esse sentimento de dona Maria de Lurdes não é novidade. No livro “Saber Envelhecer”, o orador, escritor e filósofo Cícero, que viveu do ano 106 ao 43 antes de Cristo, deixou registrado como testemunho a mesma produtividade e força de viver que tantos idosos ainda exibem séculos mais tarde. “Organizo, nesse exato momento, todos os discursos que pronunciei a favor de causas célebres. Ocupo-me do direito augural, pontifical e civil. Estudo assiduamente a literatura grega e, para exercitar minha memória, aplico o método caro aos pitagóricos: toda noite, procuro lembrar-me de tudo o que fiz, disse e ouvi na jornada. Eis como mantenho meu espírito, eis a ginástica a que submeto minha inteligência. Suando e me esfalfando dessa maneira, não me ocorreria pensar em me lamentar sobre o declínio de minhas forças físicas. Meus amigos podem sempre contar comigo. Vou ao Senado regularmente e sem que me forcem. Faço ali proposições maduramente refletidas e as defendo com todas as minhas forças intelectuais – não físicas. E se eu não fosse mais capaz de fazer isso, restar-me-ia o lazer de distrair-me em meu divã pensando em tudo o que doravante me é interdito. Graças ao que foi minha vida, não cheguei a esse ponto. Permaneço ativo.”

Morte do príncipe foi estopim

O presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil e codiretor da Age Friendly Foundation, Alexandre Kalache, contextualiza toda a situação. “Como ex-diretor do Programa de Envelhecimento da OMS, posso dizer que a organização não tomou essa decisão. Ela nomeou um comitê de experts que, por três anos, debruçou-se sobre o tema. Mas naquela época não havia Covid-19 e outras doenças, e a CID-10 continha uma palavra que recebia muitas críticas: senilidade. A decisão do comitê foi trocar o termo para a próxima atualização da classificação por velhice, ou seja, a emenda saiu pior do que o soneto”, observa. Conforme lembra Kalache, poucas pessoas se atentaram para essa mudança naquele momento. “O estopim foi a morte do Príncipe Philip, em 9 de abril deste ano. Um médico da realeza decidiu colocar no atestado de óbito do Duque de Edimburgo que a causa da morte teria sido velhice. Assim que o fato se tornou público, no mês seguinte, a sociedade começou a protestar”, acrescentou.

Desde então, a OMS já recebeu dezenas de pedidos e solicitações de entidades, associações e grupos relacionados aos setores da saúde, do idoso e da longevidade para que essa alteração não seja efetivada. “Neste momento estamos colocando lenha na fogueira e reclamando. Muitas associações e entidades estão criticando, até o papa Francisco fez uma crítica apesar de não ser direta para a OMS.” O Sumo Pontífice escreveu uma carta direcionada a sacerdotes idosos do Norte da Itália em setembro pedindo orações por sua própria saúde. Conforme o portal Vatican News, Francisco destacou que “a velhice não é uma doença, mas sim um privilégio”, mesmo para aqueles que estão doentes.

Segundo Kalache, era preciso um ministro se pronunciar, porque a OMS é uma organização intergovernamental. “Então o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, entregou pessoalmente uma carta aos representantes da OMS em evento recente. A organização não pode se esconder desse protesto generalizado. Mesmo recebendo uma avalanche de críticas permanecem resguardados. Eu avisei ex-colegas que ainda trabalham na OMS de que isso não daria certo, ficar como a avestruz, fingindo que nada acontece. O correto seria que grupos de experts fossem reunidos, discutissem o tema e encontrassem a solução”, continua Kalache.

O especialista ainda traz para o debate outros complicadores, como não se saber exatamente do que as pessoas morrerão daqui alguns anos, já que os dados não serão confiáveis. Além disso, ações e políticas que deveriam definir o século 21 também seriam esvaziadas. “Nunca se pode colocar a velhice como causa da morte. É o mesmo equívoco que a OMS teve no passado, quando considerava a homossexualidade como doença. A velhice é uma transição, uma etapa da vida”, compara.

Apenas em 17 de maio de 1990, a homossexualidade foi retirada da CID como enfermidade. O Dia Internacional Contra a Homofobia é comemorado nesse dia. Conforme dados publicados em 2019 pela organização Associação Internacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Trans e Intersexuais, em 70 países a homossexualidade ainda era criminalizada. E a transexualidade só deixou de ser classificada como doença pela mesma OMS em 2018.

Outro problema citado por Kalache diz respeito ao hedonismo e à indústria antienvelhecimento. “Esta indústria está feliz, pois terá muito lucro. Será possível tornar a velhice um problema artificial. A população brasileira, reconhecidamente hedonista, seguirá em busca da fonte da eterna juventude, com o uso de comprimidos, injeções, hormônios e coisas do gênero. Um médico ou o seguro do idoso poderá deixá-lo morrer, simplesmente por ele ser velho. O idadismo (preconceito baseado na idade), que é algo predominante, como a Covid-19 provou, vai deixar o indivíduo de mais idade com a autoestima ainda mais baixa”, acredita.

Pessoas acima dos 60 anos estão mais ativas

A dentista Heloisa Maria Dulac, de 71 anos, que só neste ano correu, somados, 940 quilômetros, contesta a classificação da OMS. “Não posso ser tratada com preconceito nem devo ser considerada doente por este novo código.”. Foto: Arquivo pessoal / Divulgação / CP

A dentista Heloisa Maria Dulac, de 71 anos, contesta a classificação da OMS. “Sou totalmente contra, pois realizo todas as minhas atividades, vou ao consultório e faço academia. Não posso ser tratada com preconceito nem devo ser considerada doente por este novo código”, contesta a moradora do bairro Petrópolis. Helô, como é conhecida pelos amigos, prova que idade também é algo relativo quando o tema é superação. “Tenho 110 premiações entre troféus e medalhas de pódio do primeiro ao terceiro lugar em corridas de rua. De 1º de fevereiro deste ano até agora corri somados 940 quilômetros. São quase mil quilômetros em menos de um ano. Como posso aceitar uma decisão dessas passivamente?”, questiona. A aposentada, que ainda trabalha em seu consultório durante alguns dias da semana, aprendeu a correr apenas em 2011. Ou seja, já tinha mais de 60 anos quando iniciou no mundo das corridas.

Na avaliação do professor Newton Terra, docente do Programa de Pós-Graduação em Gerontologia Biomédica da Escola de Medicina da PUCRS e pesquisador do Instituto de Geriatria e Gerontologia da universidade, o debate e as reflexões sobre o tema são muito mais amplos do que podem parecer em um primeiro momento. “O envelhecimento humano é um processo progressivo, irreversível, universal, gradual, heterogêneo e que guarda pouca relação com a idade cronológica, que varia de indivíduo para indivíduo, além de variar de órgão para órgão e que se inicia do ponto de vista biológico, a partir dos 27-30 anos”, relata o especialista. “No final de segunda década da vida surgem modificações morfológicas, fisiológicas, bioquímicas, enzimáticas, psicológicas, entre outras. Em decorrência há uma perda progressiva da capacidade de adaptação do indivíduo ao meio ambiente, o que leva o organismo a uma maior vulnerabilidade e incidência de doenças que terminam por conduzi-lo à morte. Pela definição fica claro que os indivíduos não morrem pelo envelhecimento, mas, sim, por doenças. Ou seja, ninguém morre do envelhecimento fisiológico. Morrer por senescência (alterações decorrentes de processos fisiológicos do envelhecimento) ou ‘morrer de velho’, ou morrer de ‘idade avançada’ é algo extremamente raro. Estudos conduzidos no Japão confirmaram que morrer de velhice é ‘quase’ impossível. O indivíduo morre em função de alguma doença que surge durante o processo de envelhecimento”, sinaliza o docente da PUCRS.

Há, ainda, o temor de que enfermidades tradicionais, como câncer, Mal de Alzheimer, Mal de Parkinson, entre outras, possam seguir sua trajetória de mortes sem o devido combate por parte das políticas públicas adequadas para o enfrentamento dessas doenças mais graves. “Se a inclusão do termo velhice for aceita, acontecerão impactos além das questões de políticas públicas e da área da saúde. Haverá impacto na previdência social e em outros aspectos relativos ao envelhecimento, como o social, o biológico e o psicológico. Os nossos sistemas de informações precisam ser preenchidos de forma precisa, identificando as causas que levaram os idosos ao óbito. Só desse modo os investimentos e as ações dirigidas à prevenção e ao tratamento poderão ser programadas. Também é importante disseminarmos, por meio de ações educativas e de políticas públicas, que velhice não é doença”, reflete Vânia Lúcia Leite.

Brasil vive rápido processo de envelhecimento

No Brasil, o assunto é ainda mais relevante à medida que há uma grande população idosa e um processo de envelhecimento rápido. No último censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, a população idosa era de 20,6 milhões de pessoas, o que corresponde a 10,8%. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua) de 2017 apresentou 30,3 milhões, ou seja, 14,6% do povo em solo brasileiro era composto por pessoas com 60 anos ou mais. O importante é saber que o IBGE estimou nesse censo um aumento médio superior a 1 milhão de pessoas idosas a cada ano, nos dez anos seguintes. A estimativa foi superada como prova o levantamento da Pnad. Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) mostram que dos 210 milhões brasileiros, 37,7 milhões são pessoas idosas, ou seja, que têm 60 anos ou mais. E 18,5% dessa população ainda trabalha e 75% contribui para a renda de onde vive. Dessa forma, qualquer aspecto que diga respeito aos idosos precisa ser muito bem pensado pelas autoridades e organizações de saúde. “As doenças serão evidentemente mascaradas. No momento em que se atesta como causa mortis ‘velhice’, as outras doenças são ignoradas, ou seja, as principais responsáveis pelo óbito. Determinar velhice como doença certamente prejudicará políticas públicas que ficarão sem argumentos para as suas implantações. Na área da saúde teremos menores condições de auxiliarmos na prevenção, diagnóstico e tratamento das principais doenças e sintomas que surgem durante o processo de envelhecimento. No momento em que há um esforço mundial para que se realizem, principalmente as prevenções primárias, secundárias e terciárias das doenças e sintomas que surgem durante o processo de envelhecimento, a OMS, com essa intenção, só atrapalha esta ação. Repito: ninguém morre de velho. O Príncipe Philip não morreu de idade avançada como consta no atestado de óbito. Morreu em função de alguma doença. Velhice não é doença”, diz o professor Newton Terra.

Mais de 70% dos óbitos acontecem depois dos 60 anos no Brasil. Doenças crônicas não transmissíveis são responsáveis por 75% das mortes em todo o país. Este último dado mostra como as enfermidades, na verdade, são majoritariamente a causa dos óbitos nesta fatia da população. “No Brasil, principalmente em longevos, não são realizadas necropsias. Longevo é quem tem mais de 80 anos. Ressalto que após os 65 anos, os indivíduos têm aproximadamente 7,2 doenças. Este percentual aumenta a cada década, ou seja, um indivíduo de 75 anos tem 8,2 doenças, um de 85 tem 9,2 doenças, ainda que muitas sejam assintomáticas”, conclui Newton Terra.

Preconceito é realidade no país

Para o casal Regina e Sergio Estiphan, a determinação da OMS é um retrocesso, ainda mais tendo em vista a evolução da medicina e o aumento da longevidade. Foto: Arquivo pessoal / Divulgação / CP

Regina e Sergio Estiphan são exemplo de vitalidade. Casados há 49 anos, os dois dividem o tempo entre Porto Alegre, onde moram, Canela e Capão da Canoa, locais que frequentam com regularidade. “Acho essa decisão um absurdo, porque a velhice é muito relativa”, comenta Regina, de 70 anos. A ex-servidora da Ufrgs ilustra o que pensa. “Uma amiga minha faleceu há pouco tempo com 104 anos. Até dois meses atrás, apesar dessa idade, ela era ativa, falava sobre qualquer coisa, usava celular e enviava e-mail. Perfeitamente lúcida, tinha apenas um pouco de dificuldade para caminhar”, relata.

O casal já testemunhou o preconceito em função da idade. “Participamos de grupos de casais que se encontram há 40 anos. Todos são mais velhos do que nós dois e estávamos reunidos em um café. Entraram duas moças no local e comentaram que ‘só tem velho aqui, vamos embora’. Continuamos nosso encontro e seguimos nos divertindo”, recorda Regina. “As coisas mudaram muito, pois, antes, com 50 anos uma pessoa era velha. Agora, aos 80 anos, não parece. Essa determinação da OMS é um retrocesso. Com a evolução da medicina todos estamos vivendo mais”, observa o arquiteto aposentado Sergio Estiphan, de 75 anos. “Eu, por exemplo, não me considero velho. Comecei a correr aos 65 anos e tenho mais de 50 troféus ou medalhas de participação, sendo que umas 20 são de pódios do primeiro ao terceiro lugar na minha faixa de idade”, acrescenta Sergio, que adora cinema e produz artesanato, inclusive peças de tapeçaria. Os dois fazem academia e optaram por não terem filhos. Neste momento, por causa da Covid-19, as aulas são remotas. Regina ainda pratica exercícios de pilates e estuda língua espanhola.

AMB prevê problemas

O presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), César Fernandes, avaliou negativamente as consequências da decisão da OMS. “Inúmeros problemas de registros de doenças específicas e relacionadas à idade mais avançada, simplesmente serão catalogadas como velhice, uma vez que assim poderão ser consideradas na CID. Essa é uma etapa da vida de todos nós. Há doenças próprias da velhice, uma série delas depende de o organismo atingir determinada faixa etária para se manifestar. Aliás, algumas pessoas, mesmo nessa fase, não apresentam tais doenças.” Ele ainda alerta para outras consequências. “Uma classificação com essa fragilidade pode ser fator para mascarar determinadas doenças da velhice. Isso certamente é um equívoco e completamente negativo a formulações de políticas de saúde, à compreensão fisiopatológica adequada e aos gatilhos de risco que interferem em determinadas doenças que, na velhice, ocorrem em alguns pacientes e em outros não”, raciocina.

O vereador Alvoni Medina criticou durante o 3º Seminário de Articulação do 7º Fórum Social Mundial da População Idosa 2022, realizado em Porto Alegre no dia 6 de outubro, a decisão da OMS. “A Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa está fazendo um movimento contra essa determinação. Não podemos aceitar isso”, observou o político, que preside a Frente. O 7º Fórum Social Mundial da Pessoa Idosa acontecerá de 24 a 28 de janeiro de 2022 e está inserido na programação oficial de aniversário dos 250 anos de Porto Alegre.

A Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa e a Comissão Externa da Câmara dos Deputados, que examina políticas públicas para o envelhecimento saudável, pediram que a OMS reveja essa modificação, durante audiência realizada em julho. Na oportunidade, o representante da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço da OMS para as Américas, Juan Escalante, negou que o termo velhice seria classificado como doença. “A CID-11 contém categorias que vão além das doenças e incluem lesões, achados de exames e motivos de contatos com o sistema de saúde. Ainda fornece categorias e padrões para o registro de situações em que não é possível um diagnóstico preciso”, argumenta. Por sua vez, Maria Cristina Hoffmann, da Coordenação de Saúde do Idoso do Ministério da Saúde, rebate dizendo que a alteração pode levar a registros equivocados nos atestados de óbito. “A confusão que pode causar ou a indução, mesmo sem ser esta a ideia, de profissionais em sociedades onde predominam o estigma e o preconceito em relação às pessoas idosas não nos parece ser a escolha acertada.”

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos (AMPID) publicou uma nota pública intitulada “Velhice não é doença” diante da possibilidade de a OMS incluir o termo como enfermidade a partir do próximo ano. “Os profissionais de saúde e gerontologia alertam que velhice é uma condição humana e não sintoma de doença. Ao ser considerada um sintoma merecerá diagnóstico. Esse diagnóstico será passível de tratamento com medicamentos ou seja, estará à mercê da exploração da indústria farmacêutica e de profissionais da área de tratamentos antienvelhecimento. Qualquer pessoa idosa classificada com a CID-11 poderá sofrer ainda mais preconceito, implicando em discriminação por idade (etarismo, idadismo, ageismo), em todos os domínios da vida. Se uma pessoa idosa com algum agravo de saúde (pressão alta, diabetes, osteoporose) for simplesmente classificada pela CID-11 e não pela doença que tem, todos os direitos fundamentais constantes do Estatuto do Idoso são afetados. Uma pessoa idosa que queria continuar trabalhando, por exemplo, certamente terá desvantagens de permanência no trabalho, se o profissional médico classificá-la com a CID-11”, diz trecho da manifestação.

O Conselho Estadual de Direitos do Idoso (CEDI) do Ceará também expressou preocupação. Em nota, a entidade diz acreditar que essa concepção parte de uma ideia que estigmatiza a pessoa idosa, além de também ressaltar o problema de diagnóstico e a exploração pela indústria farmacêutica. “Outro questionamento que aqui fazemos: quem é velho? No Brasil, oficialmente, considera-se idoso quem tem idade igual ou superior a 60 anos, mas em países desenvolvidos, idoso é quem tem mais de 65 anos. Hoje, cerca de 15% da população brasileira tem 60 anos ou mais e as projeções mostram que até 2050, cerca de 1/3 da população brasileira será composta por idosos”.

O Serviço Social do Comércio de São Paulo (Sesc-SP) também divulgou sua posição. “Se, por um lado, o termo velhice pode abarcar a fragilidade e deterioração dos órgãos ou sistemas, por outro, vai ao encontro dos estereótipos e preconceitos já existentes e que há muito tempo as instituições, academia, conselhos e sociedade vêm trabalhando para desconstruir”, disse em nota.

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos (AMPID) cobrou posicionamento da União. “É preciso que o Estado brasileiro, seguindo os protocolos de representação junto à OMS, manifeste sua contrariedade e não aceitação dessa concepção ‘velhice/doença’, pois esta ofende a sociedade brasileira, sua Constituição da República que tem como fundamento a dignidade da pessoa (artigo 1º, inciso III), a promoção do bem de todos sem preconceitos de idade e quaisquer formas de discriminação (artigo 3º, inciso IV) e tem como valor social o amparo, a defesa e o bem-estar das pessoas idosas, garantindo-lhes o direito à vida (artigo 230), e seu Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) que propugna a não discriminação ou atentado aos seus direitos. A sociedade brasileira é de todas as idades e não quer diagnosticar seus cidadãos e cidadãs idosos (as) como doente – velhice não é doença!”, diz trecho da publicação oficial.

Japão, país de idosos

Há 86.510 pessoas com idade igual ou superior a 100 anos no país, conforme dados atuais do Ministério da Saúde japonês. Houve aumento de 6.060 pessoas em relação ao ano anterior. As mulheres representam 88% do total (76.450 pessoas), mais 5.475 que em 2020. Os homens com idade igual ou superior a 100 anos ultrapassaram pela primeira vez os 10 mil, com um total de 10.060, aumento de 585 indivíduos em relação ao ano anterior. O desenvolvimento de tecnologias e tratamentos médicos contribuem para esse crescimento. Em 1963, quando se realizou o primeiro estudo, os japoneses com mais de 100 anos eram apenas 153. Em 1998, esse número atingiu os 10 mil. Em 2012, ultrapassou os 50 mil.

Segundo o Ministério de Assuntos Internos do Japão, do total de trabalhadores mais velhos, os da indústria de atacado e varejo formavam o maior grupo, com 1,28 milhão, seguido por 1,06 milhão de pessoas no setor agrícola e florestal e 1,04 milhão na indústria de serviços. Por sua vez, o número de idosos com empregos irregulares totalizou 3,9 milhões, ou 76,5% do total da força de trabalho em idade avançada, excluindo executivos e trabalhadores autônomos, em comparação com 1,63 milhão verificados há uma década.

A associação norte-americana Gerontology Research Group reconhece a japonesa Kane Tanaka, de 118 anos, como a mulher mais velha do mundo. De acordo com a rede de TV NHK, ela reside na cidade de Fukuoka, no sudoeste do Japão, e nasceu em 2 de janeiro de 1903. Atualmente, ela mora em uma instituição para cuidados de idosos. Já o homem mais velho do Japão é Mikizo Ueda, com 111 anos. A expectativa de vida no Japão atingiu recorde em 2020 para ambos os sexos: 87,74 anos para as mulheres e 81,64 para os homens, segundo dados divulgados em julho pelo Ministério da Saúde japonês. O mercado para a economia da longevidade acompanha o envelhecimento nipônico. O país ajuda essa parcela da população disponibilizando óculos em agências dos correios, bancos e hotéis. Há botões nas faixas de pedestres que, quando pressionados, oferecem mais tempo para a pessoa atravessar o sinal. Com pelo menos 20% da população acima de 70 anos, o Japão desenvolveu uma cultura inclusiva. Os idosos japoneses consomem muito por meios digitais, o que pode ser um grande negócio para movimentar a economia do país.

A Assembleia Geral das Nações Unidas declarou em dezembro do ano passado o período de 2021 a 2030 como Década do Envelhecimento Saudável. A Opas destaca uma série de dados acerca do tema nas Américas. Conforme a organização, em 2030, uma em cada seis pessoas terá 60 anos ou mais. Em 2100, estima-se que 36% da população terá mais de 60 anos. O número de anos vividos com incapacidade pela população com mais de 80 anos aumentou aproximadamente 77% na última década e meia.

O que significa tudo isso? Que o envelhecimento cresce e são necessárias ações que garantam qualidade de vida aos idosos. Velhice, definitivamente, pode ser algo de entendimento amplo em determinadas situações. O filósofo chinês Confúcio, autor de uma importante reflexão sobre o tema, desce as cortinas dessa matéria com um interessante questionamento: “Qual seria a sua idade se você não soubesse quantos anos você tem?”.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895