Com efeitos devastadores, drogas K avançam

Com efeitos devastadores, drogas K avançam

Uso desses entorpecentes sintéticos ainda está concentrado no sudeste do país, mas autoridades se preocupam com uma possível disseminação das drogas. Especialmente em São Paulo, os principais usuários são adolescentes

Por
Kyane Sutelo

“A primeira vez que usei já meio que me fez querer a segunda vez, a terceira vez, é um vício quase instantâneo”, conta F. Há 20 anos, esse relato poderia revelar o crescimento do consumo de crack. Mas, na verdade, se refere a um novo entorpecente e suas diversas variantes, que assombram o sudeste brasileiro e acendem o alerta para o restante do país: a droga K. As cenas do centro de São Paulo chocam. São usuários, em maioria jovens, que perdem o controle do corpo, ficando, por vezes, paralisados após o consumo da substância que pouco conhecem, iludidos apenas pela promessa de impactos mais fortes que os das drogas que já utilizam. Os apelidos para esse entorpecente fazem alusão a intensos efeitos em quem usa, passando por piadas como “piripaque do Chaves”, até nomes mais impactantes, como “droga zumbi”.

“As K” não estão restritas à cracolândia, sendo um problema também da periferia paulista, que foi onde F. conheceu a K2, também chamada de Spice. Ele relata que já havia usado outros entorpecentes e um conhecido lhe apresentou a novidade: “Ele falou que era tipo maconha, só que mais forte”. A droga, inclusive, é chamada, popularmente, de maconha sintética. A K2 é apenas uma das variações do entorpecente, que também pode ser encontrado como K9 ou K4. Apesar de ainda haver pouca informação sobre essa droga, especialistas e autoridades policiais indicam que a diferença estaria no formato em que é vendida. “O que é a droga K? É o canabinoide sintético líquido e incolor, que é borrifado em papel, cartolina ou folha tipo de revista ou em ervas”, define o delegado do Denarc de São Paulo, Carlos Cesar Castiglione.

O delegado paulista conta que a droga ganhou força nos presídios do Sudeste a partir de 2017. Os formatos mais populares entre os apenados são K4 e K9, devido à facilidade para burlar os agentes e ingressar com o entorpecente em folhas de papel dentro de bíblias ou selos, os chamados micropontos, escondidos em alguma roupa ou objeto. Nas ruas, a prioridade se inverte, conforme observa o delegado, e o uso mais popular é da K2, formato borrifado em mix de ervas e fumado como cigarro. A forma exponencial como cresceu o consumo nos últimos anos se reflete no aumento no número de apreensões. Castiglione revela que, enquanto no ano inteiro de 2022 foram apreendidos 11 quilos da droga K, nos primeiros 6 meses de 2023, o número já dobrou, com 22 quilos recolhidos pela polícia do estado do Sudeste.

Os efeitos da droga K nos usuários chegaram a despertar incômodo em facções, como o Primeiro Comando da Capital, o PCC, conhecido pelo tráfico, entre outros crimes. Em uma operação deflagrada no início do ano, a Polícia Civil paulista interceptou uma conversa entre membros da facção, proibindo a venda e uso dessa substância na Cracolândia. O motivo seria o prejuízo ao comércio de entorpecentes, devido à atenção das autoridades e sociedade em geral, pois é frequente a necessidade de que os usuários sejam socorridos, devido aos efeitos das K. Na primeira vez em que o Spice é consumido, segundo F., a sensação é de energia. Ele conta que sentiu que podia caminhar por muitos quilômetros sem cansar. “Você se sente mais preparado, mais dinâmico, parece que tem energia pra tudo. As emoções ficam mais afloradas”, relata o ex-usuário. O problema que atinge quem segue fumando é o chamado “drop”, queda, em tradução livre, como é chamado o efeito final do entorpecente. Ele descreve como uma “depressão” e atribui a isso a necessidade de seguir usando a droga. “É por isso que é viciante, te dá uma sensação muito boa durante o pico (ápice) e muito ruim durante a volta. Então você quer fumar de novo para voltar para o pico”, avalia F.

A forma como a droga segue circulando mostra que há fornecedores de sintéticos que ignoram a proibição do PCC ou de outras facções que não se interessem pelo comércio das K. O difícil é localizar quem, realmente, é responsável pela produção das substâncias, visto que acabam sendo encontradas junto com outras drogas, nas chamadas “casas bombas”, imóveis usados para armazenar os entorpecentes, durante apreensões policiais. Inclusive, a forma original da droga permanece em posse somente dos produtores. “A gente ainda não encontrou o líquido”, diz Castiglione. Ele acredita que poucos envolvidos na linha de tráfico das K têm acesso à droga líquida, devido à potência do entorpecente. “Quem usa essa droga, especificamente, são verdadeiras cobaias”, lamenta o delegado paulista. Segundo ele, a cada apreensão analisada pelo Instituto de Criminalística de São Paulo, novas variações da substância são encontradas. Ou seja: os usuários sequer sabem o que estão consumindo.

Segundo informações obtidas pelo delegado com o Instituto de Criminalística, a matriz para a confecção dessa substância é importada de países como China e Índia. Apesar de investigações já terem apontado que há comercialização por redes sociais, a inteligência da polícia ainda busca chegar a esses produtores da droga. “Ela nasce, a gente presume, em laboratórios clandestinos”, detalha ele. O combate à propagação da substância se mostra mais difícil do que o dos entorpecentes que circulam há mais tempo pelo país: maconha, cocaína e, até mesmo crack. O representante do Denarc paulista, que atua diretamente nessas investigações, explica que a rota de entrada das demais drogas e a forma como são armazenadas e distribuídas já são de conhecimento da Polícia. Enquanto isso, no caso das K, as informações ainda são novas e escassas. 

Muito ‘tóxicas e lesivas’ 

A droga K já chegou a outros estados do país, ainda que em ritmo mais lento. Separados por mais de mil quilômetros de distância, São Paulo e Rio Grande do Sul vivem realidades totalmente diferentes em relação a esse entorpecente, e os gaúchos acompanham atentos o que acontece no epicentro do Sudeste, para embasar ações de combate às K. Nos últimos quatro anos, o Instituto-Geral de Perícias (IGP), identificou no Estado a presença desse entorpecente somente seis vezes. A primeira foi em janeiro de 2019, ano em que também contou com outra apreensão, em abril. Em 2021, a droga voltou a ser apreendida e identificada em solo gaúcho, em maio, junho e dezembro. A última identificação foi em janeiro deste ano. O secretário da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP), Sandro Caron, garante que as suas forças estão “atentas e mobilizadas quanto à circulação de diferentes entorpecentes no Estado”. 

A Polícia Civil analisa o cenário no Sudeste por meio de seu Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) que já atua no combate local às drogas. Ainda que as K estejam chegando de forma tímida ao Estado, o diretor-geral do Denarc, delegado Carlos Wendt, destaca a atuação de sua equipe na repressão aos sintéticos em geral. “A gente está atento e tem trabalhado bastante em cima das drogas sintéticas, com diversas ações, inclusive em laboratórios clandestinos”, afirma Wendt. Segundo ele, até maio deste ano, atingiram a quantia de 30 mil comprimidos de ecstasy apreendidos, número que representa o total de apreensões dos 12 meses de 2022.

A maior parte das drogas sintéticas que ingressa em solo gaúcho vem de Santa Catarina, segundo o diretor do Denarc, principalmente de Florianópolis e da região de Porto Belo. A Europa também é fonte de envio frequente de entorpecentes desse tipo ao Rio Grande do Sul, conforme Wendt. “Já tivemos grandes apreensões vindas de Amsterdam, que também é um país bem conhecido por fornecer drogas sintéticas”, relata. Inclusive, o delegado acredita na possibilidade de sintéticos vindos de outros estados também terem origem internacional. “Já fizemos uma das maiores apreensões de ecstasy aqui do Rio Grande do Sul, oriunda de Belém do Pará. Provavelmente também veio de fora do Brasil”, detalhou. 

Acompanhando o cenário dos sintéticos no Sul, Wendt vê uma tendência de crescimento na produção de sintéticos como as K, devido a uma certa facilidade na obtenção de insumos da China e também na fabricação. “A droga sintética não está sujeita ao que as outras drogas estão, que é a necessidade do plantio, da colheita, do transporte, as adversidades como, muitas vezes, uma perda de safra”, avalia o delegado. Esses fatores fariam os traficantes investirem cada vez mais nos entorpecentes sintéticos, segundo ele. A preocupação, conforme ele, é com a proliferação desses entorpecentes não apenas em quantidade, mas também em “espécies”, visto que as substâncias sofrem frequentes modificações, conforme especialistas.

Assim como no Sudeste, no RS esse tipo de drogas também não é habitual do crime organizado. “A gente não observa o comportamento de facções tão grande relacionado às drogas sintéticas, como ocorre em relação à maconha, cocaína e crack. As drogas sintéticas, geralmente, aqui no Estado, são comercializadas por não faccionados”, detalha o diretor-geral do Denarc, delegado Carlos Wendt. O perfil dos traficantes e usuários dos sintéticos é de classe média alta, conforme Wendt e também o comandante-geral da Brigada Militar, coronel Cláudio dos Santos Feoli. Ainda segundo o representante da BM, as apreensões feitas pela corporação costumam ser em festas rave. Ao contrário do movimento visto pelo Denarc, a policia militar gaúcha ainda não percebe crescimento na incidência de sintéticos em suas ações diárias.

Variações dificultam atendimento

Uma das maiores preocupações dos especialistas com as drogas K é a variada possibilidade de modificações das substâncias. A psiquiatra da Abead Fernanda de Paula Ramos enfatiza que cerca de 548 novas substâncias psicoativas foram identificadas no mundo até 2020 e relatadas no Relatório Mundial sobre Drogas de 2022, do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, sendo cerca de 25% canabinoides sintéticos. Segundo os dados levantados pela profissional, o avanço entre 2011 e 2017 foi rápido pelo mundo, chegando de forma mais intensa ao Brasil em 2018. Com tantas variações e crescimento, surgem também diferentes tipo de efeitos e intensidades diversas.

A voluntária Eliene, que trabalha muito próxima de crianças e adolescentes usuários do entorpecente, relata que um dos principais efeitos é a paralisação do corpo. “Eles ficam em pé, naquele cai não cai, parece que estão dormindo em pé, com o corpo relaxado”, conta a líder do Gente de Perto. Outro efeito comum são vômitos frequentes, já presenciados por ela diversas vezes e também relatados pelos usuários nos momentos em que estão sem o efeito da droga e conseguem dialogar com os voluntários do projeto.

Entre as tantas histórias que presenciou ou ouviu, Eliene relembra que um jovem precisou ser internado pela dificuldade de se alimentar. Segundo ela, usuários podem ficar dias sem lembrar de comer quando estão sob o efeito das K. 

Além dos efeitos presenciados no dia a dia por quem acompanha de perto os usuários, impactos mais graves podem atingir os usuários, conforme a psiquiatra da Abead, como crises convulsivas, acidente vascular cerebral (AVC), hipertensão, taquicardia, infarto agudo do miocárdio e insuficiência renal. Segundo a especialista, a droga K ainda pode trazer consequências neurológicas e psicológicas, entre elas déficit cognitivo e de memória, psicose, crises de ansiedade e de pânico, alucinações, agitação psicomotora e euforia intensa. 

Para o diretor do Denarc gaúcho, é importante que se faça alertas, principalmente aos jovens, do risco que correm ao ingerir substâncias ilícitas, principalmente as sintéticas, que são facilmente modificáveis por pessoas despreparadas. “Sempre destaco que essas drogas, na maioria das vezes, não são feitas por químicos de laboratório. São pessoas que não têm conhecimento técnico”, observa o delegado. De acordo com ele, traficantes modificam a substância com base em pesquisas de Internet. As chamadas designer drugs ainda são feitas com substâncias não testadas. “Sempre há o risco, né? Se colocam uma substância que não deveria ou, muitas vezes, colocam um pouco a mais da substância, pode acabar levando à morte desses jovens que vão para festas aproveitar”, diz o delegado. 

IGP trabalha na identificação das substâncias

Semelhante ao trabalho do Instituto de Criminalística paulista, no Rio Grande do Sul existe o Instituto-Geral de Perícias (IGP), de forma vinculada à Secretaria de Segurança Pública. Além de atuar também em outras frentes, o trabalho do órgão é fundamental na identificação dos entorpecentes recolhidos pelas forças policiais locais. Todas as substâncias apreendidas por Brigada Militar, Polícia Civil ou outros órgãos de segurança são encaminhadas para análise dos peritos do IGP. Eles preparam a substância e inserem no equipamento para que haja um cruzamento com dados de um banco virtual. “Existe uma biblioteca que é frequentemente atualizada com amostras de bibliotecas de todo o mundo”, detalha a chefe da divisão de Química Forense do IGP, Lara Soccol Gris.

Para que uma substância esteja na biblioteca e seja localizada, além de amostras enviadas pelo laboratório da Organização das Nações Unidas (ONU), há os padrões comprados de empresas farmacêuticas. No entanto, nem sempre é possível obtê-los com agilidade, pois no caso de importação, que acontece comumente, conforme a especialista, há um processo de regulamentação necessário. “Esse processo de importação demora entre seis meses e um ano, e passa pelo crivo da Anvisa, porque são substâncias controladas”, explica Lara. 

No entanto, por vezes, não há o padrão disponível, como foi o caso das K e de outras sintéticas em solo gaúcho. “Como são substâncias muito recentes, pelo menos no Brasil, nós não temos uma variedade de padrões para confirmar”, disse a responsável pela Química Forense do IGP. Nessas situações, é preciso fazer o processo inverso, testando a substância apreendida de diversas formas para conseguir uma identificação. “Muitas vezes, o caminho que a gente consegue para confirmar é submeter esse material a mais de uma técnica, mais de um equipamento, às vezes, em parceria com universidades que têm outras técnicas auxiliares”, descreve. 

Foi assim que, em 2019, 2021 e 2023 foi descoberta a presença de variações da droga K em solo gaúcho. Em cinco, dos seis casos, o entorpecente estava em selos, parecidos com os utilizados para outras drogas sintéticas. Em uma das apreensões, em janeiro de 2021, uma pessoa foi presa com uma mochila que continha 36 selos semelhantes aos utilizados para tráfico de ácido lisérgico, o LSD. Porém, o trabalho do IGP constatou que era droga K. A identificação do entorpecente contribui no enquadramento criminal do preso, pois, caso não seja material proibido, a prisão não se justifica. A avaliação é baseada na lista de substâncias proibidas no Brasil, atualizada periodicamente pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que costuma ser notificada pelos peritos em caso de descoberta de novas substâncias. Lara tem expectativas de que essa cadeia de notificações siga melhorando a partir do Subsistema do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, lançado em 2021. A proposta é que a informação sobre novas drogas se propague. “É uma comunicação entre saúde e segurança tanto no sentido de melhorar ações de repressão, já que a gente está falando de órgãos de segurança pública, mas também de tentar estabelecer estratégias de saúde pública em relação a essas novas drogas.

O diretor-geral adjunto do IGP, Maiquel Santos, observou que a falta de amostras ainda é um problema, tanto gaúcho, quanto de outros Estados, que poderiam ser sanados com o fornecimento de amostras pelo governo federal. Enquanto não há um abastecimento mais robusto de padrões na biblioteca do IGP, o trabalho segue no desenvolvimento de métodos. “É como se fosse um jogo de gato e rato. Assim como novas substâncias são criadas, nós vamos criando novas técnicas analíticas cada vez mais modernas que possam identificar essas substâncias”, afirmou Santos. Ele ainda destacou que o órgão opera, atualmente, no Centro Regional de Excelência em Perícias Criminais da Região Sul (Crepec Sul), inaugurado em 2022, e que segue buscando otimizar o parque analítico, para aumentar a capacidade de elucidação. “Nos próximos meses, e anos, a gente terá vários equipamentos: uns já chegaram, alguns estão em processo de compra e outros ainda estão sendo licitados”, afirma o gestor. 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895