Cultivar na cidade

Cultivar na cidade

Plantar alimentos em áreas urbanas não é algo novo, mas também não é comum. Durante a pandemia, a prática ganhou novos adeptos e fortaleceu algumas iniciativas, mas atrapalhou outras

Por
Brenda Fernández e Veridiana Dalla Vecchia

Espaços públicos, terrenos privados, áreas degradadas e até telhados podem servir para cultivar alimentos em meio à zona urbana. A produção, que no imaginário comum sempre esteve associada às áreas rurais, também ocupa as cidades, de forma particular ou comunitária.

Durante a pandemia, observou-se aumento daqueles que começaram a se dedicar à instalação de hortas em pátios ou pequenos terrenos perto de suas casas. O fortalecimento da prática favorece o acesso à alimentação saudável e fortalece a consciência e a educação ambiental, já que o cultivo urbano auxilia na recuperação de áreas degradadas e aprimora o conhecimento de crianças e adultos sobre os processos que envolvem o uso da terra e plantio de alimentos.

Em um momento em que a fome cresce no Brasil, uma tendência que já vem desde 2016, mas que aumentou muito durante a pandemia de Covid-19, a instalação de hortas urbanas e periurbanas pode amenizar as dificuldades de acesso a alimentos. Coordenadora do Projeto Horticultura Urbana, Promoção Socioeconômica e de Segurança Alimentar da Faculdade de Agronomia da Ufrgs, a professora Tatiana Duarte ressalta, no entanto, que dificilmente a agricultura urbana será responsável por acabar com a fome. Porém, a prática pode auxiliar no abastecimento de alimentos na cidade “se houver políticas públicas que promovam hortas urbanas, comunitárias em locais de vulnerabilidade social”. Tatiana lembra que cada vez mais alimentos são produzidos para serem exportados e não para o atendimento à população do país. “Quando se começa a incentivar a produção urbana, se dá uma garantia mínima. Não é a segurança alimentar, porque isso é muito maior, mas uma forma de reduzir problemas de fome e desnutrição”, afirma, reiterando que, sozinha, a agricultura urbana dificilmente poderá dar conta de alimentar a população.

O cultivo urbano e periurbano incentiva cadeias curtas, reduzindo as distâncias entre o produtor e o consumidor. “Em termos de busca pela sustentabilidade, as cadeias curtas são melhores, os alimentos não percorrem grandes distâncias, a emissão de CO2 no transporte é menor, o alimento dura mais e há menos desperdício. Dentro de uma perspectiva de desenvolvimento local, é uma das estratégias que podem ser tomadas para auxiliar na segurança alimentar”, destaca Tatiana.

A professora lembra que, em vários momentos da história e em diferentes lugares do mundo, a agricultura urbana teve papel fundamental para alimentar a população e superar a fome. Nos Estados Unidos, durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, as pessoas eram incentivadas a plantar em parques, praças e áreas privadas. Segundo um estudo de Miriam Hermi Zaar, publicado pela Universidade de Barcelona, neste período, o programa “Liberty and Victory Gardens” estimulou o cultivo urbano nos Estados Unidos e, em 1943, 40% das frutas e vegetais frescos consumidos no país vinham de hortas familiares, escolares ou comunitárias. Cuba é outro exemplo de sucesso no uso das hortas urbanas. Com o fim da União Soviética e com embargo econômico imposto pelos Estados Unidos, o país não tinha sementes e fertilizantes e precisou montar um programa de agricultura urbana que sanou os problemas de desnutrição e que é mantido até hoje. A ilha passou a não só produzir alimentos em áreas próximas aos consumidores, mas também a desenvolver práticas agroecológicas.

Imagem: Morley Size / Agriculture Department EUA / CP

Cartazes britânico (abaixo) e estadunidense (acima) de incentivo ao cultivo de vegetais em áreas urbanas durante a II Guerra Mundial.

Imagem: Peter Fraser / The National Archives (UK) / CP

No Brasil, a prática foi institucionalizada no início deste século em meio às políticas nacionais de redução da pobreza e garantia de alimentação saudável. Na época, fazia parte do Programa Nacional de Agricultura Urbana, tendo financiado em 2008 projetos comunitários, agregando atividades ligadas à apicultura, aviculturas e pequenas lavouras. Hoje, a política de incentivo adicionou “Periurbana” na definição do programa – abraçando áreas para além dos subúrbios de uma cidade – e está ligada ao Ministério da Cidadania.

No biênio 2017-2018, um terço dos brasileiros – 84,9 milhões de uma população estimada em 207,1 milhões – apresentou algum grau de insegurança alimentar. Este é o maior índice registrado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde 2004, quando o levantamento foi feito pela primeira vez. De acordo com a “Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018: Análise da Segurança Alimentar no Brasil”, as regiões Norte e Nordeste são as mais afetadas. Nem metade da população da região Norte tinha acesso seguro à alimentação neste período, atingindo apenas 43% dos domicílios. É importante ressaltar que o estudo considera insegurança alimentar um domicílio que apresenta incerteza quanto ao acesso de comida no futuro ou que já apresentou redução de quantidade ou qualidade dos alimentos consumidos. Nesta alimentação estão inclusos hortaliças, frutas, produtos panificados, carnes, aves, ovos, laticínios, entre outros.

Na região Sul, a segurança alimentar tem mais alcance com cobertura de 79,3% – mais da metade de seus domicílios naquele período. Contudo, não deixa de apresentar índices preocupantes quando falamos de famílias com fome. A região Sul, conforme o estudo, tinha 2,2% do total de famílias em situação de Insegurança Alimentar Grave e 3,2% em condição de Insegurança Alimentar Moderada. O estudo ainda mensurou o impacto da pandemia na alimentação e a oscilação dos preços dos produtos, mais expressivamente do arroz em 2020.

Em um cenário como este e com perspectivas de agravamento da situação econômica de boa parcela da população, ocasionada pela crise provocada pela pandemia, a professora Tatiana Duarte defende que uma estratégia pública que inclua a criação de hortas pode ser uma ferramenta de auxílio às comunidades. Em Porto Alegre, segundo ela, grande parte dos agricultores urbanos já estão em situação de vulnerabilidade. São mulheres, com escolaridade muito baixa. Esse perfil muda quando passamos a incluir a área periurbana da Capital, na qual os produtores são majoritariamente homens, com escolaridade elevada e maior nível social.

Mas para que as hortas possam contar mais facilmente com apoio e orientação sistemáticos, é necessária a implantação de políticas públicas. Na Capital, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) trabalha na publicação de um decreto visando regulamentar a Lei Municipal 12.235/2017 com o objetivo de estabelecer critérios para a implantação de hortas no território urbano. “Hoje, há uma ausência de regulamentação e metodologia para implementação dessas hortas. Então, o objetivo dessa regulamentação é justamente a definição de metodologia, questões de práticas de implementação, procedimentos legais, fluxo. Ter um acompanhamento pelo poder público”, destaca a coordenadora de Políticas de Sustentabilidade da Smamus, Rovana Reale Bortolini. Ela reitera que cabe ao poder público regular os locais em que é possível implantar as hortas, visto que muitas vezes se vai usar um terreno público. Rovana diz que hoje a prefeitura recebe solicitações para a implantação, mas que, devido à falta de regulamentação, não há como auxiliar ou aprovar.

A coordenadora ressalta que, além de um estímulo a práticas saudáveis de cultivo, as hortas podem ocupar terrenos públicos degradados, muitas vezes irregularmente usados como depósito de lixo. Além disso, lembra Rovana, o incentivo às cadeias curtas auxilia no combate às mudanças climáticas, por diminuir a emissão de gases pelo transporte, e traz benefício econômico para as famílias.

Atualmente, segundo Rogério Otávio Schmidt, engenheiro agrônomo da Smamus, não existe mapeamento de áreas onde é possível instalar hortas urbanas em Porto Alegre, mas há um levantamento sobre locais de vulnerabilidade, espaços em que essas hortas são majoritariamente instaladas e onde podem beneficiar uma população com mais necessidades, promovendo mais inclusão, por meio, por exemplo, de projetos cooperativos comunitários.

Apesar da existência de várias iniciativas espalhadas por diferentes secretarias da prefeitura, a discussão sobre hortas urbanas no município tomou força no final de 2019, com a criação de um grupo de trabalho (GT) sobre o assunto. Schmidt foi o coordenador do GT e conta que, naquele mesmo período, houve o lançamento do decreto estadual que regulamenta a lei de hortas urbanas no Rio Grande do Sul (Nº 15.222/2018), uma construção em colaboração com o Fórum Gaúcho de Hortas Urbanas. Foi a partir dessa experiência que a prefeitura começou a trabalhar na lei municipal. Conforme o engenheiro, a minuta do decreto elaborada a partir do GT busca estabelecer um formato único para propor orientações às várias iniciativas que já existem no município, como as hortas dos postos de saúde, por exemplo.

No Estado, a previsão em lei foi o que permitiu às ações da Emater – referência em extensão rural no RS – sobre hortas urbanas e periurbanas serem reconhecidas e regulamentadas. Hoje, a demanda, conforme contou o assistente técnico da instituição, o extensionista rural Marcelo Biassusi, está situada majoritariamente na Região Metropolitana. Os dados apresentados por ele mostram que, em 2020, houve o cadastro de 2.139 famílias na Emater trabalhando com agricultura urbana. No entorno da Capital, foram 185 famílias em Canoas, 83 em Sapucaia do Sul e 70 em São Leopoldo. Ao todo, ocorreram 7.251 atendimentos em 58 municípios no ano passado.

Para Biassusi, o “despertar” para a cadeia curta de produção de alimentos não só aumentou durante a pandemia como consolidou uma tendência que, segundo ele, não é reversível. “As pessoas se ligaram mais na promoção da saúde. Tem tido, com certeza, uma demanda muito maior e a gente vê até nos nossos produtos orgânicos, com alguns produtores relatando alta de até 30% de demanda nos alimentos sem agrotóxicos, comparado a época fora da pandemia”, afirmou.

O ano pandêmico também alterou o trabalho da Emater, que se viu na responsabilidade de se retirar temporariamente do campo e mediar suas capacitações e assistências virtualmente. Para buscar atendimento, é preciso procurar a instituição ou alguma conveniada e fazer o cadastro da demanda. De acordo com o extensionista rural, as necessidades que atendam um grupo maior são prioridades, por exemplo hortas comunitárias e escolares frente a hortas que atendam apenas uma família. Contudo, Marcelo Biassusi garantiu que todas as demandas acabam sendo atendidas.

Sejam experiências que começaram recentemente ou que já vêm de anos, fato é que o interesse pelo cultivo de alimentos em meio à cidade tem se fortalecido e a pandemia trouxe novo interessados, por necessidade ou por prazer.

Experiências comunitárias

 

Em um terreno íngreme e com pouco sol, os frequentadores do espaço, como Ronei De Bem, foram aprendendo na prática quais espécies se adaptavam ao local. Foto: Fabiano do Amaral

Muito além da relação de cultivo no solo, a Associação de Hortas Coletivas do Centro Histórico de Porto Alegre vê nas suas experiências uma espécie de laboratório social – espaço de vivência e estudo das relações com o meio social, com a cidade e com a terra. Neste espaço, a Horta da Formiga é desde 2017 o principal ponto de cultivo comunitário. Localizada ao lado da escadaria de pouco mais de 90 anos, que é tombada como Patrimônio Histórico, o CEP da horta fica entre as ruas também históricas Fernando Machado e Duque de Caxias. O local não carrega letreiro por conta das limitações de cedência do terreno privado, devido a um acordo de comodato. Pelo mesmo motivo, não possui muros ou qualquer outra grande estrutura. No entanto, a grande mobilização faz com que parte da região saiba situar o espaço de plantio.

Enquanto a conversa de vídeo com os envolvidos no projeto se alinhava para iniciar, Carmen Fonseca, presidente da Associação, narrou um flagra, ocorrido minutos antes, da saída de uma pessoa desconhecida de dentro da Horta da Formiga, um “atravessamento”, termo que viria a mediar toda a entrevista.

Antes mesmo de ser ocupada pelos voluntários, que foram seduzidos por um anúncio no grupo do Facebook dos Vizinhos do Centro Histórico, o terreno onde hoje fica a horta estava abandonado havia 15 anos e por vezes servia de morada ao breu – pois não possui luz – para algum indivíduo em condição de desabrigo. A relação que se iniciou ali, segundo conta o grupo, foi de diálogo e de aproximação com a população em situação de rua que vivia no entorno. As “surpresas”, como Carmen se refere, sempre foram pauta e aprendizado do laboratório. “A gente já fez oficinas abertas para moradores de rua e a ideia é cada vez mais fazer oficinas de capacitação. Mas agora, com a pandemia, está tudo parado. Havia um casal que morava na escadaria, eles tinham livre acesso à horta. Pegavam temperos para usar na comida. E plantavam coisas ali também”, contou.

A cedência do terreno ocorreu em 2017, mas um ano antes o grupo se reunia na Praça do Aeromóvel para discutir a possibilidade de criar uma grande horta em um outro terreno desocupado na Cidade Baixa, localizado na rua José do Patrocínio. O projeto do “Jardim Secreto”, como ficou sendo chamado devido por estar disfarçado entre os prédios, barrou em trâmites burocráticos e foi adiado. Mas, em seguida, o grupo já se viu diante de um acordo de comodato e muitos desafios de entender o funcionamento e a lida daquele solo com diagnóstico de “acidentado”, “íngreme” e “cheio de ratos”. O resultado foi uma horta não convencional que, por não obedecer a um padrão, já deixou satisfeito o grupo entusiasta. “A gente quebrou muito a cabeça buscando dar essa padronizada e depois deixou que a natureza mostrasse o que ia nascer ali. Hoje, a gente tem uma configuração que respeita muito mais aquele ecossistema: de horta medicinal, Pancs [Plantas Alimentícias Não Convencionais] e um laboratório social para a gente pensar a cidade e todas essas questões que a atravessam”, explicou a integrante Ana Clara Souza, natural de Fortaleza e que em Porto Alegre traçou seu envolvimento buscando na Horta da Formiga, em 2015, seu objeto de pesquisa do doutorado na Ufrgs.

Como forma de manter o envolvimento da comunidade e ser uma fonte de sustento para a manutenção da horta, a associação criou um clube da compostagem. Todos os associados no projeto recebem um balde para acumular resíduos orgânicos e trocá-los pela matéria produzida no solo, como insumos e fertilizantes naturais. A prática, segundo o grupo, também passou a despertar a vontade dos moradores do Centro Histórico de criarem suas próprias hortas domésticas, sem abandonar a lida coletiva na Formiga. Esse despertar para o cultivo individual aumentou durante a pandemia. É consenso entre o grupo que o isolamento social fez com que as pessoas repensassem a relação de resgate delas com a terra.

A partir da vontade mútua de multiplicar a experiência e agregar cada vez mais pessoas, novos projetos e hortas foram sendo criados a partir das relações semeadas na horta da Formiga. Um deles é o planejamento de uma horta no pátio da Escola Estadual Olintho de Oliveira, na Cidade Baixa, bairro vizinho. Para discutir detalhes de como vai ser e funcionar a horta, um Grupo de Trabalho (GT) foi criado entre a Escola e a Associação. Outros dois projetos devem ser implantados no Posto de Saúde Modelo, no bairro Santana, e no Ponto de Cultura Quilombo do Sopapo, no bairro Cristal.

 A produção de hibisco é uma das marcas da horta comunitária da Lomba do Pinheiro. Foto: Mauro Schaefer

Bem mais afastado do Centro, com quatro hectares e obtida via Orçamento Participativo, a Horta da Lomba do Pinheiro é referência quando o assunto é horta comunitária. Situado em um espaço próximo à rua João de Oliveira Remião, na zona Leste de Porto Alegre, o local já beneficiou e continua auxiliando centenas de pessoas no alimento gratuito que chega à mesa, nas oficinas sustentáveis que dão autonomia para mulheres e no trabalho pedagógico e terapêutico desenvolvido com crianças, adultos, idosos e pessoas com deficiência mental.

Com a chegada da pandemia em solo gaúcho, a líder comunitária na Lomba do Pinheiro Lurdes Ágata Guicone, 61 anos, viu a circulação de estudantes, pesquisadores, visitantes e voluntários minguar. Dias após o Rio Grande do Sul decretar estado de calamidade, por conta da pandemia, os voluntários que ficaram sentiram o peso da sobrecarga de trabalho e da ameaça que toda a situação trazia ao cumprimento do papel social naquele espaço. “A situação está mais crítica”, resumiu ao contar que teve que deixar de doar alimentos após uma década de parceria com uma entidade social.

Paralelo à ameaça que a pandemia trouxe, ainda mais em um bairro com índices de vulnerabilidade social, a fome também provocou medo. Lurdes conta que, mesmo tendo que suspender as atividades presenciais no ano passado, muitas pessoas chegavam à horta em busca daquela rede de apoio. Este cenário, segundo ela, também fez com que aumentasse o número de interessados em iniciar um cultivo doméstico. “Não conseguiam ir à horta, mas foram buscar as mudas. Aumentou muito, dentro da pandemia, a agricultura de hortas domésticas.”

Próximo de completar 12 anos, em outubro deste ano, a horta comunitária da Lomba do Pinheiro hoje mantém a produção de plantas medicinais, abóboras, couve, cenoura e uma plantação de hibisco. Com o hibisco, além de mudas, os trabalhadores da horta secam as flores para a produção de chá. Mas o carro-chefe do espaço, conforme Lurdes faz questão de contar, são as Pancs (plantas alimentícias não convencionais), além de serem os alimentos que mais despertam a curiosidade dos moradores. Lurdes relata que, apesar de reiteradas conversas com o poder público, nunca foi instalada energia elétrica no espaço, o que dificulta muito o trabalho.
Sem luz e funcionando apenas por meio do trabalho voluntário, o local deixou de oferecer oficinas e almoços durante a pandemia. Agora, em 2021, o grupo busca aos poucos, e com protocolos sanitários, retomar as atividades com as mulheres da comunidade.

Legislação

Para que a agricultura urbana ocupasse o espaço que tem hoje – em políticas públicas, fomento, pesquisas, etc. –, a regularização e o reconhecimento legal foram necessários. Em âmbito federal, a prática só foi ter um plano constituído no início dos anos 2000, com o Programa Nacional de Agricultura Urbana. Em 2018, ele foi transformado em Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana, sob responsabilidade da Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, pasta do Ministério de Desenvolvimento Social. 

Entre as iniciativas do plano estão a promoção da educação ambiental, assegurar a capacitação técnica e de gestão aos agricultores urbanos e contribuir para a inclusão social de moradores urbanos, em especial das mulheres. Também estão previstas na portaria 467 algumas ações mais ambiciosas, e ainda tímidas no país, como “implantar a produção com fins pedagógicos em instituições de ensino, instituições de saúde, instituições religiosas, estabelecimentos penais e de internação socioeducativa dentre outras instituições e associações.”

Hoje, o projeto de lei da Política Nacional de Agricultura Urbana (PL 303/2019) está parado na Câmara de Deputados, mais especificamente aguardando designação de relator na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público. Além de criar um instrumento legal de amparo à agricultura urbana, o PL também quer alterar o regime geral dos bens da União (Lei 9.636/98) para permitir o uso de terrenos da União para a prática de agricultura na cidade. De acordo com o texto, poderão ser aproveitadas áreas ociosas de imóveis urbanos desocupados ou subutilizados. Um exemplo citado pela Associação de Hortas Coletivas do Centro Histórico de Porto Alegre é o aproveitamento para plantio de espaços situados próximos a subestações de energia elétrica, onde, por segurança, é proibida a construção de moradias. 

Antes mesmo de o PL 303/19 ser criado, outro Projeto de Lei para instituir a Política Nacional de Agricultura Urbana já tinha sido aprovado pela Câmara, em 2015. O projeto aguarda apreciação do Senado desde 2017, quando a redação final do texto foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). 

No Rio Grande do Sul, antes mesmo da política de plantio em “grandes cidades” chegar ao Congresso, a Política Estadual de Agricultura Urbana e Periurbana (Lei 15.222) tornou-se lei, em agosto de 2018. Também sob os mesmos pilares – do que posteriormente viria a ser o PL federal – de produção sustentável, segurança alimentar e inclusão social, a política tornou-se um dos instrumentos da política agrícola do Estado, com o compromisso de ter suas ações integradas aos planos plurianuais, de safras e operativos anuais.

A Lei 15.222 também autoriza a criação de crédito, capacitação e profissionalização, pesquisa e extensão universitária, assistência técnica e extensão rural e social e o cooperativismo e associativismo para grupos dedicados à prática. De acordo com o texto aprovado, a política estadual é atendida por recursos públicos e privados, tendo como fontes dotações orçamentárias do Estado, repasses da União, recursos provenientes de contratos e convênios com instituições públicas e privadas e contribuições e doações de pessoas jurídicas e físicas.

Alimentos para quem passa

 Marina Godward com a avó Dolores Milão e a madrinha Denise Milão preparando a horta que fica na frente de sua casa. Foto: Charlie Godward / Arquivo Pessoal  / CP

Além das hortas comunitárias, há inúmeras formas de cultivar alimentos em espaços privados. A ambientalista e produtora de conteúdo Marina Godward, de 25 anos, experimenta ao menos três maneiras. Além de plantar em um sítio da família do namorado e no pátio de sua casa, ela resolveu que faria uma horta na frente da moradia, que fica no bairro Chácara das Pedras, em Porto Alegre, para que as pessoas que passam na rua pudessem colher os alimentos. A inspiração já vinha de algum tempo, a partir da experiência da “jardinagem de guerrilha", movimento desenvolvido pelo estadunidense Ron Finley que consiste em plantar em terrenos abandonados ou em áreas sem o devido cuidado em Los Angeles. Aqui, a pandemia foi o empurrão que faltava para que Marina colocasse em prática sua horta pública.

A ambientalista conta que, quando começou a pandemia, muita gente passou a bater em sua porta para pedir comida e várias vezes ela doava alimentos que trazia do campo ou da horta de casa. “Muitas vezes eu dei comida fresca, que a gente trazia do campo, como mandioca ou batata-doce. Isso me motivou bastante a fazer a horta porque eu já tinha vontade, mas ficava naquela coisa de ‘um dia vou fazer’”. Em frente à casa, há dois canteiros, um junto ao meio-fio da rua e outro colado no terreno da casa: foi esse que ela, com a ajuda da família, transformou em horta. “Na verdade, antes eu tinha vontade de plantar árvores frutíferas, mas com essa função de muita gente bater pedindo comida, comecei a querer fazer a horta. A ideia é que qualquer um possa colher. Assim, mesmo que eu não esteja em casa para atender algum pedido, a horta está ali para alguém pegar alguma coisa.” Marina conta que, na horta, não foram plantados alimentos muito perecíveis, como alface ou rúcula, mas alimentos que pudessem durar mais tempo e dos quais as pessoas pudessem tirar mais calorias, como abóbora, batata, batata-doce e vagem. Ela diz que cuidar da horta é uma atividade meditativa e que une seus interesses, os quais são compartilhados em suas redes sociais: o veganismo, estilo de vida saudável, sustentabilidade, meio ambiente, redução de produção de lixo e combate ao desperdício.

 Parte da colheita do espaço. Foto: Marina Godward / Arquivo Pessoal / CP

Dentro de casa

O ator e cozinheiro Anderson Gonçalves, de 35 anos, conta que desde muito pequeno compreendeu o valor do cultivo. Entendimento este que, segundo ele, herdou de sua avó e depois de seus pais. Com o tempo e com a maturidade imposta pela vida adulta, desenvolveu por meio da paixão por plantar sua autonomia financeira e uma terapia – que ajudou em dias não tão fáceis, como os da pandemia.
“Se não tivesse esse lugar, estaria mentalmente e fisicamente mais afetado. Esse verde representa meu estado e meu espírito emocional e psicológico”, explicou, ao lembrar também que ter ervas, temperos, frutas e hortaliças ao seu alcance evitou que tivesse que sair de casa em tempos de pandemia. Durante o período de isolamento, aproveitou para estudar mais sobre a identificação de plantas e seus cuidados: “Hoje só no Instagram eu sigo umas 30 páginas relacionadas a plantas e temperos”.

Da mesma forma que a Associação de Hortas Coletivas do Centro Histórico, Anderson precisou repensar características convencionais na agricultura, no caso dele, a horta do apartamento não tem acesso direto ao solo natural. Em um terraço de aproximadamente 5 metros quadrados no segundo andar de um prédio do bairro Rio Branco, com vasos criados a partir de objetos reutilizados – como bolsas e sapatos que seriam descartados –, o ator colhe para o próprio consumo, distribui entre a família e amigos e usa os ingredientes no coletivo culinário do qual faz parte, o Casa Artesanal. Grande parte dos ingredientes das receitas feitas pelo Anderson, como molhos e salgados vegetarianos, vem de sua horta. Com mais de 30 anos com envolvimento direto com a terra, o cozinheiro não se imagina mais sem a prática. Ao contrário, sonha em construir uma horta comunitária para atender um coletivo próximo.

Agricultura urbana pelo estado

 Vera Beatriz Vargas (E) e Lurdes Ágata Guicone (D) na Horta da Lomba. Foto: Mauro Schaefer

O plantio em pequena escala dentro e às margens dos centros urbanos consolida-se gradativamente como base para pensar biodiversidade, segurança e soberania alimentar e valores éticos. Conforme dados da Emater, a preocupação com a qualidade e a diversidade no consumo de alimentos se dissemina em escolas, centros de assistência social, em igrejas e instituições para fins terapêuticos. Em 2019, todos estes espaços foram cadastrados para cultivo de alimentos e chás.

Biassusi conta que em Cerro Grande do Sul, município situado no centro-sul gaúcho, com pouco mais de 11 mil habitantes, chegou a ser criada uma disciplina sobre hortas urbanas na rede municipal de ensino. Apesar de a população local ter como principal fonte de renda a agricultura, as famílias não tinham como hábito plantar o próprio alimento. Além do mais, algumas hortas eram identificadas próximas de áreas com produção de mudas de culturas e, por isso, acabam contaminadas com agrotóxicos.

O vínculo com as prefeituras fez com que, desde 2018, a Emater direcionasse ações de incentivo à criação de “farmácias caseiras” em áreas ociosas de Centros de Referências de Assistência Social (CRAS), postos de saúde e centros terapêuticos. O Ministério da Saúde reconhece mais de 70 plantas com ação medicinal no tratamento de doenças e como ação preventiva. A fitoterapia, como é denominado o tratamento com plantas, foi registrada em 2019 em mais de 2,1 mil Unidades Básicas de Saúde (UBSs). A garantia do acesso seguro às plantas no Sistema Único de Saúde (SUS) ocorre por meio do Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, criado em 2018.

Dentre os desafios a serem trabalhados, o técnico Marcelo Biassusi destaca o acesso à água como o principal. De acordo com ele, muitos espaços de produção em cadeia curta carecem de condições básicas para o desenvolvimento das atividades. Soma-se à água, a falta de energia elétrica – como é o caso da horta da Formiga e a da Lomba do Pinheiro –, materiais, ferramentas e mão de obra. Neste último item, Biassusi destaca o caso das hortas escolares: “Tem que fazer todo um planejamento, principalmente nas hortas escolares. Porque depois ficam abandonadas nas férias e acabam levando um tempo para recuperar o plantio que ficou sem manutenção”. Ele também ressalta que este planejamento constrói redes colaborativas, confiança e valores éticos entre a comunidade envolvida.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895