Danos prolongados para ex-fumantes

Danos prolongados para ex-fumantes

Dois estudos científicos publicados recentemente mostram que o tabagismo provoca prejuízos ao sistema imunológico adaptativo de forma persistente mesmo para quem já deixou o hábito de fumar

Em 2022, um em cada cinco adultos no mundo era fumante ou consumia outros produtos do tabaco, em comparação com um em cada três em 2000, conforme a OMS

Por
AFP

Os efeitos nocivos do tabaco são duradouros mesmo para quem deixa de fumar e, acima de tudo, o sistema imunológico parece ficar muito mais danificado do que era suposto anteriormente, segundo dois estudos científicos. “Fumar modifica o sistema imunológico adaptativo de forma persistente”, aponta a pesquisa publicada pela revista Nature na quarta-feira sobre os danos causados pelo tabagismo, que mata cerca de 8 milhões de pessoas por ano no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

A pesquisa destaca um fator até agora ignorado: o sistema imunológico adaptativo, que é construído por infecções, permanece danificado por anos nos que pararam de fumar. As conclusões foram feitas a partir de uma amostra de mil pessoas. Os participantes foram selecionados há mais de dez anos, no contexto de um projeto realizado pelo Instituto Pasteur de Paris e a imunidade deles foi regularmente estudada por meio de vários exames, especialmente o de sangue.

É um tipo de projeto muito robusto para avaliar como diferentes fatores influenciam a saúde e o metabolismo ao longo do tempo. Neste caso, mais do que outros fatores, como o tempo de sono ou o grau de atividade física, o tabagismo ganha destaque por sua influência, indicaram os pesquisadores liderados pela bióloga Violaine Saint André.

A informação não é totalmente nova. Já havia sido divulgado que fumar afeta a imunidade “inata” e agrava respostas inflamatórias. O estudo confirmou a descoberta anterior, verificando que o efeito desaparece imediatamente após o fim do consumo de tabaco, mas revelou que o processo não é o mesmo para a imunidade adquirida.

Para algumas pessoas, a imunidade adquirida é afetada durante anos, ou mesmo décadas, após deixarem de fumar, embora a amostra seja pequena e as reações muito variáveis para avançar uma duração média precisa.

Os pesquisadores foram além para mostrar que essas perturbações estão relacionadas a um efeito epigenético. Ou seja, o DNA das pessoas permanece o mesmo, mas a exposição ao tabaco afeta a forma como certos genes se expressam na prática.

Isso não significa que parar de fumar seja inútil: os efeitos desaparecem, eventualmente. Mas “para preservar a sua imunidade a longo prazo, é melhor nunca começar a fumar”, destacou Saint André em uma conferência de imprensa.

Baseado em evidências biológicas, o estudo não pode dizer quais são as consequências dessas variações imunitárias para a saúde. É possível que tenha efeitos nos riscos de infecção, câncer ou doenças autoimunes, de acordo com os autores. Até o momento, entretanto, esta é apenas uma hipótese.

Na semana passada, outro estudo procurou determinar até que ponto os riscos para a saúde realmente persistem quando se deixa de fumar. Publicado no NEJM Evidence, foi feito a partir de dados referentes a aproximadamente 1,5 milhão de pessoas no Canadá, nos Estados Unidos, na Noruega e no Reino Unido. Os investigadores compararam a mortalidade entre vários grupos: fumantes ativos, pessoas que nunca fumaram e fumantes mais velhos, neste último caso, os riscos demoram a desaparecer completamente.

Após parar com o tabagismo, o indivíduo deve esperar dez anos para recuperar uma expectativa de vida comparável à de alguém que nunca fumou. Os pesquisadores notam, no entanto, que “os benefícios já aparecem três anos depois”, com média de cinco anos de vida recuperada, ou seja, a meio caminho de uma expectativa de vida normal. O efeito é notável independentemente da idade em que o ato de fumar é interrompido, mesmo que seja mais acentuado em pessoas com menos de 40 anos.

Consumo de tabaco cai em quase todo o mundo

O número de adultos que consome tabaco tem diminuído constantemente nos últimos anos em todo o mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), embora tenha alertado que a indústria do tabaco luta para inverter a tendência. Em 2022, um em cada cinco adultos em todo o mundo era fumante ou consumia outros produtos do tabaco, em comparação com um em cada três em 2000, afirmou a OMS.

O relatório divulgado em janeiro analisa as tendências na prevalência do tabagismo entre 2000 e 2030 e revelou que 150 países conseguiram reduzir o consumo. Por outro lado, a indústria deste produto intensifica os seus esforços para minar estes avanços, em particular visando novos produtos altamente viciantes em menores de idade, afirmou a OMS. “A título pessoal, acho que é criminoso”, disse Ruediger Krech, diretor do departamento de promoção da saúde da OMS. “Eles matam e continuam fazendo tudo o possível para minar os excelentes esforços” dos países que mostram progressos, observou.

 

O tabaco mata atualmente mais de 8 milhões de pessoas por ano, incluindo 1,3 milhão de “fumantes passivos”, aqueles que estão expostos ao fumo de terceiros, segundo a OMS. “Os países que implementam controles rigorosos contra o tabaco podem esperar cerca de 30 anos até que a taxa de prevalência seja revertida (…) e se observe uma queda no número de mortes causadas pelo tabaco", afirma o relatório.

 

Embora o número de fumantes tenha diminuído, a OMS afirmou que o mundo ficará aquém do seu objetivo de uma redução de 30% no consumo de tabaco entre 2010 e 2025. Há 56 países que podem atingir a meta, incluindo o Brasil, que já reduziu o consumo de tabaco em 35% desde 2010. Entretanto, seis países registraram um aumento neste consumo desde 2010: República do Congo, Egito, Indonésia, Jordânia, Moldávia e Omã. No geral, o mundo está a caminho de reduzir o consumo de tabaco em um quarto até 2025, de acordo com o documento.

 

No entanto, a organização alertou que a indústria pretende reverter os avanços. “Houve avanços no controle do tabaco, mas não é hora de relaxar", disse Krech. “Percebemos que assim que um governo acredita que ganhou a luta contra o tabaco, a indústria do tabaco aproveita a oportunidade para manipular as políticas de saúde e vender os seus produtos letais”. A informação sugere que a indústria procura minar os esforços dos países para desencorajar os jovens de consumirem este produto.

 

Conferência mundial sobre controle do tabaco termina em divergências

 

A 10ª conferência da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) terminou no dia 10, no Panamá, com divergências marcantes nos processos de medição e controle de substâncias tóxicas nos produtos de tabaco.

Após uma semana de reuniões, as divergências entre representantes dos 180 países participantes deste mecanismo da Organização Mundial da Saúde (OMS), que visa controlar a epidemia do tabagismo, concentram-se na aplicação de dois artigos do acordo.

Países participantes da conferência discordaram sobre formas legais para medir a toxicidade dos produtos de tabaco e garantir as informações às autoridades e ao público 

O texto em questão abrange os artigos 9º e 10º, que determinam que os integrantes deste mecanismo busquem formas legais para medir a toxicidade dos produtos de tabaco e garantam que essas informações cheguem às autoridades e ao público. Enquanto alguns países preferem reunir “um grupo de especialistas” independentes para propor evidências científicas, outros, como a Guatemala, propuseram a criação de um “grupo de trabalho” composto apenas por funcionários que possam receber ordens de seus respectivos governos.

 

As divergências “têm a ver especificamente com os artigos 9º e 10º”, reconheceu a presidente do Secretariado da Convenção-Quadro, Adriana Blanco, afirmando que os atrasos nestas conferências ocorrem porque cada país tem sua própria forma de abordagem.

 

O acordo em vigor desde 2005 busque resoluções por consenso. Caso contrário, o impasse poderá ser definido na próxima reunião.

 

Algumas ONGs presentes nesta COP10 afirmaram que a Guatemala tradicionalmente se alinha à indústria do tabaco nas conferências do tratado. “A Guatemala sempre foi a voz das empresas de tabaco”, disse à AFP o ativista mexicano Erick Antonio, da ONG Salud Justa.

 

Os artigos do acordo possuem uma disposição específica que impede a interferência da indústria deste setor na conferências ou na determinação de políticas de saúde. “Esta forma de argumentar em que se colocam os interesses econômicos e se defende uma narrativa muito mais próxima da Organização Mundial do Comércio do que da Organização Mundial da Saúde não só nos parece arriscada, como dificulta qualquer avanço por consenso”, acrescentou Antonio.

 

Segundo Daniel Dorado, especialista da ONG Corporate Accountability, o acordo sofreu muitos atrasos devido a “inclusões de texto de última hora” e repetidas revisões, o que demonstra que o assunto “deveria ser deixado para a COP11”, lamentou.

 

No dia 8, os representantes debateram sobre uma medida proposta pelo Brasil para o manejo das bitucas de cigarros e outros resíduos do consumo de tabaco que contaminam o meio ambiente. Segundo a representante brasileira, Vera Luiza da Costa e Silva, até agora, a questão deste resíduos era considerada um problema apenas dos grande produtores de tabaco, “mas não dos países que são consumidores”.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895