Desaparecidos do Vale do Taquari

Desaparecidos do Vale do Taquari

A maior enchente da história da região resultou em mais de 5 mil pessoas desabrigadas, 943 feridas e 52 mortas.

Por
Vitória Fagundes

O dia 4 de setembro de 2023 ficou marcado no Rio Grande do Sul. Um ciclone extratropical que atingiu o estado causou a maior enchente da história no Vale do Taquari. Mais de 5 mil pessoas ficaram desabrigadas e 943 pessoas ficaram feridas, de acordo com levantamento da Defesa Civil. Além desse dado, cerca 52 pessoas morreram na tragédia e seis pessoas seguem desaparecidas. De acordo com a Polícia Civil do RS, estão desaparecidos: de Lajeado, Carlos André Pereira; de Roca Sales, Deiser Cristiane Vidal; de Muçum, Deoclydes José Zilio, Alciano Bianchi e Beatriz Maria Pietta; e de Arroio do Meio, Alexandre Eduardo Macedo de Assis.

A busca é incessante por parte do Corpo de Bombeiros, da Defesa Civil e da Polícia Civil, que têm feito um trabalho diário para localizar as pessoas que não foram encontradas logo após a enxurrada. As famílias ainda têm esperanças de achar os entes queridos para, então, realizar suas despedidas. O Correio do Povo falou com algumas dessas famílias, que contaram suas histórias.

O trabalho de busca

Todo trabalho de busca pelos desaparecidos está centralizado no Corpo de Bombeiros Militar do município de Lajeado. Apesar dos dois meses da tragédia, o capitão Juvenal Schneider destaca que a procura é realizada pelo patrulhamento dos Bombeiros, com a ajuda de cães farejadores e em áreas específicas do Vale do Taquari. Em um mapa, é possível ver que determinadas regiões são delimitadas para as buscas, além de registrar em quais lugares foram localizados corpos e restos mortais.

De três em três dias, são acionadas novas equipes de todo o Rio Grande do Sul especializadas para atuar no local. Diariamente, é demarcada a área de trabalho da equipe.

Após, ela realiza a varredura no local, com a ajuda de binômios - dupla de bombeiro militar e cão de busca. Caso não sejam encontradas vítimas, a área é descartada.

Durante as operações, o Corpo de Bombeiros utiliza maquinários, drones e cães farejadores. “No total, 22 pessoas fazem as buscas. O mapa centraliza a área”, aponta o capitão. 

Os cães farejadores são grandes aliados no trabalho de busca. Alguns deles atuaram em grandes trabalhos no Brasil, como nos desastres de Brumadinho e de Mariana. Os cachorros farejam locais à procura de sinais biológicos. Se eles encontram, latem para alertar a equipe. “Em um desses trabalhos, os cães estavam apontando para as áreas de copas de árvores”, conta Schneider. Conforme ele, foi preciso a utilização de maquinário para derrubar as árvores, já que os restos de destroços estavam emaranhados em cipós. 

"A despedida é importante porque é um fechamento de ciclo. A morte de alguém fecha aquele ciclo da vida da pessoa e a tua convivência com ela. Se tu não tens a cerimônia de despedida, ou se tu não tens o corpo daquela pessoa que morreu e não vai mais fazer parte da tua vida, vai haver uma dificuldade nesse fechamento de ciclo."

Daniela Lima Dick, psicóloga

Deiser Cristiane Vidal, 32 anos: a mulher que amava os filhos e o canto

Guerreira, mãe e batalhadora. Essas são as palavras com as quais a família da microempreendedora Deiser Cristiane Vidal, 32 anos, a definiram. Moradora de Roca Sales, ela está desaparecida desde 4 de setembro. Segundo a família, Deiser estava em casa no dia da enchente com os dois filhos, que morreram na tragédia. “A Deiser, desde nova, sempre trabalhou, sempre foi bem responsável e foi uma das filhas que mais me ajudou. Ela era muito querida. Vinha todo sábado aqui com as crianças”, destaca a mãe, Inajara Rodrigues. Além de mãe dedicada, Deiser atuava como microempreendedora. Ela havia montado um brechó em casa. 

Segundo a irmã Rochele Alexandra Soares e a mãe, Deiser era mãe coruja, disposta a fazer de tudo pelos filhos, Larah Hennig, 7 meses, e Lincoln Hennig, 7 anos. O contato entre a família era muito frequente. “Ela falava muito, falava demais. Mandava mensagem, depois áudio, depois ligava. Falava muito e muito, me mandava vídeo todo dia das crianças.”

Pizza de camarão era a receita que Deiser mais fazia. Segundo a mãe, a filha também gostava do tortéi preparado por Inajara. “Naquela noite da tragédia, ela ia fazer a pizza de camarão. Ela tinha me ligado para me avisar. Tudo o que ela ia fazer ela me avisava.”

As lágrimas corriam nos olhos da mãe ao relembrar que, na noite da enchente, Deiser havia contatado Inajara dizendo que precisava de ajuda e gritava por socorro. “Tudo o que ela mais queria era salvar os filhos. É muito triste e desesperador. Eles não tinham nem bateria no celular. Ela disse: ‘Não deixem meus filhos morrerem’”. Deiser estava desde as 22h pedindo socorro na casa.

Deiser morava na região central de Roca Sales. O prédio ao lado da casa da microempreendedora desabou em cima da casa da vítima. “Não foi água que os matou, foi o prédio que caiu na casa, tanto que a sogra, o marido dela e o sogro foram embora da enchente. Ficaram agarrados nas árvores e foram resgatados no dia seguinte”. 

Irmã do meio de sete, Deiser cuidava muito bem de todos a sua volta, em especial da família. Rochele Alexandra Soares, de 18 anos, e Deiser eram irmãs inseparáveis. Rochele é madrinha de Larah. “A Deiser era muito mãezona. Cuidava muito bem das crianças, que nem uma leoa. Ela me chamava para cuidar das crianças. Havia discussões de irmãs, mas era comum. Era minha tudo, não tem uma palavra para a definir”, afirma Rochele. 

Deiser amava cantar, nas redes sociais postava vídeos dos louvores que cantava. “Ela tinha uma caixa de som e um microfone em casa. Passava o dia inteiro cantando.” A mãe guarda esses registros da filha com orgulho no celular. Em um dos vídeos, aparece Deiser ao lado do marido Harald, cantando. Harald sobreviveu a enchente. Hoje, mora com familiares em Carlos Barbosa, já que a sua casa foi destruída pela enchente. “A vida dela era cantar. Tudo o que ela fazia era cantar e cuidar das crianças”, destaca Inajara. 

A família revelou todas as fotos de Deiser e dos netos, para manter viva a recordação. “Espero que encontrem o corpo. Mas não tenho mais esperanças. Jamais vou esquecer ela”, diz a mãe. 

Tudo o que ela mais queria era salvar os filhos. É muito triste e desesperador. Eles não tinham nem bateria no celular. Ela disse: ‘Não deixem meus filhos morrerem’.

Inajara Rodriges, mãe de Deiser Vidal

Beatriz Maria Pietta, 75 anos: a professora que inspirou vidas em Muçum

Se houve uma professora que foi inspiração para muitos moradores de Muçum, essa foi Beatriz Maria Pietta, 75 anos, segundo Valcenor Leopoldo Fleck, irmão de Beatriz. Ela também está desaparecida.

Valcenor conta que eles mantinham diariamente contato por chamada de vídeo. Ele mora em Guarapuava, no Paraná. Apesar da distância, de cerca de 800 quilômetros, a relação era muito próxima. “Todo fim de semana nós conversávamos. Ela tomava chimarrão lá em Muçum e eu aqui em Guarapuava e a gente ficava uma hora no WhatsApp, pelo menos, ou mais, às vezes”. 

Beatriz era muito conhecida na região de Muçum, onde morou por mais de 70 anos e deu aulas por mais de 40 ano. O amor pela educação, conforme o irmão, era muito grande. “Beatriz foi uma professora muito dedicada e conhecida em Muçum. Tinha um carisma muito grande. Ela começou a lecionar em uma escolinha municipal. Ia de bicicleta dar aulas, quando a cidade ainda tinha estrada de chão batido”. Cerca de 90% do tempo da vida dela era dedicado às escolas onde dava aulas. 

Beatriz era formada em Geografia e História, além de ter duas pós-graduações em educação. “No velório coletivo, que foi muito emocionante, tinha pessoas com 50 anos e que diziam pra mim que ela havia sido professora deles. O prefeito de Muçum, Gabriel Trajan, quando foi me cumprimentar, me disse: ‘Esta foi a mulher que me inspirou a ser o que eu sou: prefeito’”, relembra com emoção. 

Cuidar do jardim, da horta e de suas flores era um dos hobbies prediletos de Beatriz. Ela cuidava das verduras, frutas e legumes e distribuía aos amigos próximos. Ela cuidava do jardim junto com o marido. “Flores de todas as espécies, era realmente um jardim. Eles cultivavam frutas e verduras, inclusive com estufas”, disse. “Ela produzia vinho também de plantação própria. Fazia uma média de 800 ml de vinho todo ano”, acrescenta. 

Valcenor relembra que a relação de irmãos entre ele e Beatriz era de muito amor. A infância dos dois foi marcada por muita complexidade. Beatriz e Valcenor foram separados na infância, após o falecimento da mãe. Ela foi cuidada até a vida adulta por uma família de agricultores de Muçum. Mas isso não impediu de os dois sempre manterem contato. 

“Eu me lembro da Beatriz sempre na frente da casa onde morava. Tinha muita flor na frente e ela sempre estava lá com aqueles vestidos rodados. A dona Lídia, mãe adotiva dela, era costureira. Ela sempre foi uma boneca. Era muito bonitinha, andava com vestido de flores e com uma tiara na cabeça. A gente sempre teve um relacionamento de irmãos de muito afeto, amor e carinho”.

No dia 14 de setembro, Beatriz foi recolocada na lista de desaparecidos de Muçum após uma inconsistência no resultado de um exame de DNA para confirmar a identificação da vítima. O irmão se viu surpreso ao receber a notícia de que sua irmã seguia desaparecida.

“No reconhecimento dos corpos, fui acompanhado da minha esposa, Aline Terezinha, e também de uma sobrinha da Beatriz e do Álvaro que se chama Vandalise. Além de estar acompanhado também de uma assistente social e um agente da Cruz Vermelha. Na segunda-feira, por volta das 19h, o pessoal do IGP (Instituto-Geral de Perícias) me convocou para uma retirada de material genético para fazer um DNA. E haviam avisado que o corpo da minha irmã havia sido retirado do túmulo e encaminhado ao IML (Instituto Médico Legal) de Lajeado. Dias após o recolhimento do DNA, eu recebi um telefonema de Porto Alegre, dizendo que não era minha irmã. Eu fiquei sem chão pela segunda vez em poucos dias”, detalha. A família segue em buscas por informações sobre a recolocação de Beatriz na lista dos desaparecidos. Até lá, o irmão segue lembrando dos bons e velhos momentos com a irmã, e das trocas de mensagens aos finais de semana entre Muçum e Guarapuava.

Alciano Bianchi, 38 anos: o homem que morreu para salvar vidas 

Corajoso e destemido. Essas são as definições que Alciano Bianchi recebeu do irmão. A vítima, de 38 anos, está desaparecida desde o dia da enchente, quando resolveu atuar como bombeiro voluntário no resgate de moradores da região de Muçum. Apesar da experiência em resgates e atuação em situações de risco, e dos oito anos trabalhando como voluntário no corpo de bombeiros civil, ele desapareceu. 

Alciano era caminhoneiro. Segundo o irmão, Adriano Bianchi, Alciano amava a profissão. Adriano também atuava como caminhoneiro. Uma das lembranças que tem de Alciano foi do dia que os dois se encontraram na estrada, no estado do Tocantins. Eles não conseguiram abraçar um ao outro, mas quando retornaram ao RS fizeram questão de fazer um churrasco na casa da mãe. “Essa foi uma das lembranças que mais me marcou. Me encontrei com ele na estrada. Estávamos sem conversar por causa do trabalho e da rotina fazia uns dois meses e acabamos nos encontrando na estrada. Depois me liguei e reconheci o caminhão do meu irmão. Eu chamei ele e disse que estava voltando do Tocantins. Ficamos um tempão conversando por mensagem”. 

Churrasco e boa cerveja gelada na companhia de quem amava era o que fazia os dias de Alciano melhores. Ele era apaixonado por um bom churrasco. “Se tinha uma carne assada e uma cervejinha era com ele mesmo (risos).” Risadas, alegria e boas histórias também marcavam as rotinas de confraternização da família. “A gente contava as histórias antigas, do que passávamos na estrada, o que a gente aprontava quando éramos moleques. Era risada em cima de risada.” 

Teimoso, corajoso e bondoso. Nessa ordem Adriano define o irmão. Teimosia, porque, no dia da enchente, Alciano não pensou duas vezes e resolveu ajudar nas buscas e no resgate dos moradores de Muçum. Ele deixou a carteira, o celular e a chave do carro para trás e foi com o macacão de bombeiros civil para ajudar nos trabalhos. “Ele ia de qualquer jeito ajudar nas buscas. Ele deixou o carro porque não tinha onde deixar o carro, o celular e os documentos. Ele estava sem identificação nenhuma, só com o macacão”, diz. Corajoso, porque segundo o irmão, ele não pensou duas vezes em trabalhar nas buscas, independente da situação da cidade. Bondoso, por amar ajudar o próximo e também por ser querido a quem era amigo e familiar dele. 

Adriano relembra que, no dia da enchente, estava em Curitiba a trabalho. No dia da confirmação do desaparecimento de Alciano, Adriano voltou para Muçum para tentar encontrar o irmão. Ele ficou 20 dias na região, mas precisou voltar para a estrada. “Procuramos muito por ele. Fomos aos hospitais. Nos 15 primeiros dias que ele desapareceu, estávamos rezando para que ele aparecesse com vida. Passado o 20º dia, a gente rezava para que ele aparecesse de qualquer forma. O sofrimento foi grande nesses 20 dias após o desaparecimento dele”. 

A família agora aguarda pela busca do corpo ou dos restos mortais de Alciano para que, então, possam se despedir. “Chegado os últimos dias, a gente pedia a Deus para que ele aparecesse para que ao menos déssemos um enterro digno. Ele estava fazendo aquilo que ele gostava, foi para ajudar os outros. Minha mãe e minha sobrinha, filha dele, ficaram em pedaços. Minha esposa chorou mais do que eu, porque gostava muito dele”. 

Adriano destaca que o amor de irmão entre ele e Alciano jamais vai ficar para trás. “É a perda de um irmão, eu só tinha ele. Eu me conformei, mas ele não merecia ter ido assim.”

Ele ia de qualquer jeito ajudar nas buscas. Ele deixou o carro porque não tinha onde deixar o carro, o celular e os documentos. Ele estava sem identificação nenhuma, só com o macacão.

Adriano Bianchi, irmão de Alciano

O processo de luto e as possíveis formas de se lidar com a dor da perda

Passar pelo luto de perder um ente querido envolve muitas emoções. Na grande maioria dos casos, exige tempo e paciência, ainda mais quando a situação é causada por tragédias. Conforme a psicóloga Daniela Lima Dick, o luto é um conjunto de sentimentos de quem perde algo ou alguém e pode estar subdividido em fases. 

“O processo do luto é uma elaboração daquele sentimento que fica com a perda de uma pessoa ou quando a gente perde um emprego ou quando termina um relacionamento.

Qualquer tipo de perda gera um processo de luto. Claro que numa intensidade muito menor do que a morte de uma pessoa, mas o processo de luto é uma forma de elaborar o sofrimento de perda, ressignificar a nossa vida sem a presença daquela pessoa ou de algo.”

Conforme a especialista, o luto é dividido em cinco fases: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Daniela ressalta que cada pessoa terá uma maneira diferente de lidar com as fases do luto. “Nem todas as pessoas passam por todas as fases, assim como tem pessoas que passam por todas as fases, só que em ordem diferentes.”

Negação: Fase onde a pessoa nega que o ente querido tenha morrido. A pessoa pode tentar se convencer de que aquilo não aconteceu. 

Raiva: A fase da raiva é marcada pela revolta, em grande parte é marcada em tentar achar um responsável pela respectiva perda. 

Barganha: a fase da barganha é marcada pela busca de reverter uma situação por meio de orações, promessas ou negociações. Depois da morte, a barganha é vista no sentido de que se a pessoa parar de sofrer pela falta do ente querido, ela vai pagar alguma promessa. 

Depressão: momento onde a pessoa sente a perda do ente querido. "É o momento da dor e da tristeza. Realmente quando a pessoa precisa encarar a situação de frente. Aquilo é muito dolorido e muito sofrido. Não necessariamente é um caso de depressão. É mais no sentido da tristeza", destaca a psicóloga.

Aceitação: fase onde a pessoa entende que a morte é um encerramento de ciclo. É o momento em que ela entende que a vida segue. 

A psicóloga destaca que o processo do luto, em grande parte, pode ser trabalhado de forma mais difícil em situações de tragédias. Em casos de desaparecidos, é mais dificultoso já que não há o corpo do ente querido para o processo de cerimônia de despedida, como o velório. “A questão da despedida é importante porque é um fechamento de ciclo. A morte de alguém fecha aquele ciclo da vida da pessoa e a tua convivência com aquela pessoa. E se tu não tens a cerimônia de despedida, ou se tu não tens o corpo daquela pessoa que morreu e não vai mais fazer parte da tua vida, vai haver uma dificuldade nesse fechamento de ciclo. A pessoa, além de ficar sempre com o luto, vai conviver com incerteza, porque não teve cerimônia, não teve o corpo.”

O luto é um processo que exige tempo e paciência. Em casos mais delicados, como desaparecimentos, a psicóloga orienta que algumas alternativas podem ser realizadas para superar ou lidar com a dor da perda. Uma delas é criar uma caixa de lembranças, com fotos ou itens da pessoa. Ainda, tem a possibilidade de se participar de grupos de apoio de pessoas que estão passando por essa mesma situação. Ou, ainda, criar uma espécie de memorial com uma foto daquele ente querido. “É criado um tipo de simbolismo, para que seja possível elaborar uma certa cerimônia de despedida mesmo que tu não tenhas os restos mortais. Isso, muitas vezes, ajuda e facilita a pessoa a dar sequência nesse processo de luto e de superação.”

A gente se reunia quando seu Deoclydes fazia aniversário. Isso aí era sagrado para ele. Sempre vinham todos os irmãos do Raul e a família toda. Sempre tinha algum ritual dentro do aniversário dele, porque ele já estava com 94 anos. Cada ano que passava, a gente festejava.
Janete Zilio, nora de José Deoclydes

José Deoclydes Zilio, 94 anos: o senhor amado por todos da família

Com 94 anos de idade, o aposentado José Deoclydes Zilio, morador de Muçum, vivia uma vida calma e feliz com seus filhos, netos e bisnetos. Conhecido por todos na região, seu Deoclydes era agricultor, produzia vinho e amava estar com a família. Segundo o filho, Raul Zilio, uma das coisas que ele mais gostava era de festejar seu aniversário com todos. Reunia em um almoço a família, com boas e velhas lembranças.

Pessoa amiga, participativa e colaboradora. Essas são as palavras que Raul e Janete Zilio definem seu Deoclydes. Ele é tido como exemplo pela família e pela comunidade. “Ele deixou para nós a honestidade.” José Deoclydes era viúvo e morava na propriedade rural da família com Raul, seu filho, sua nora, Janete, e o irmão Sérgio Zilio, que morreu na enchente. 

A rotina de seu Zilio começava às 6h, quando acordava para cuidar das vacas, cortar capim e limpar o canto dos animais e do quintal. “Ele fazia tudo isso com 94 anos, limpava as estrebarias também. Tomava o café da manhã dele”, conta Raul.

O filho conta que o pai não tinha um prato predileto. Tudo que oferecesse a seu Deoclydes, era aceito com carinho. “O que tu botava na frente, ele comia. Nunca vi um homem comer tanto assim que nem o pai. Qualquer coisa ele comia. A saúde dele era de ferro também”, relembra com sorriso no rosto. Aos domingos, seu Deoclydes tinha compromisso marcado de estar no clube de moradores da região para conversar com os amigos, tomar uma cerveja e jogar cartas. Um dos dotes de seu Deoclydes era o de preparar vinho. “Ele nunca se esquecia de gelar o vinho para jantar. Ele adorava um vinho.” 

Reunir-se com a família em comemorações como aniversários, Ano-Novo e Natal eram rituais para seu Deoclydes. “A gente se reunia quando seu Deoclydes fazia aniversário.Isso aí era sagrado para ele. Sempre vinham todos os irmãos do Raul e a família toda. Sempre tinha algum ritual dentro do aniversário dele, porque ele já estava com 94 anos.Cada ano que passava, a gente festejava”, conta Janete. Janete acrescenta que os momentos com a família eram de alegria para seu Deoclydes com um bom churrasco, cerveja, chimarrão, espumantee vinho. “A gente gostava de se reunir. Era muito bom.” 

Pão caseiro quentinho caseiro e rapadura de amendoim eram coisas que seu Deoclydes amava. E a nora Janete não media esforços para preparar o pão para ele. “Que pessoa boa que ele era. O nono pegava a lenha para aprontar no forno e eu preparava o pão. Ele descascava o amendoim para que eu pudesse fazer as rapaduras que ele adorava. Nem me fala (risos), ele adorava demais”. Janete e Raul contam que o terreno tinha três casas da família. Com a força da água, os imóveis foram destruídos. No chão de terra sobraram restos de tijolos e aços retorcidos. No dia da enchente, Raul não estava em casa, mas Janete sim, junto com o irmão de Raul, Sérgio, e seu Deoclydes. Ela relembra com tristeza que naquele dia, foi arrastada pelas águas do Rio Taquari e ficou submersa em uma placa de zinco. Graças aos vizinhos que a viram pela janela, Janete conseguiu se salvar. Seu Deoclydes não conseguiu sair da casa. Ela conta que ouviu os gritos dele pedindo socorro. 

“De repente a gente começou a ouvir muita água lá em cima. Começamos a ouvir a garagem da frente sendo destruída pela água. A casa passou por baixo da água. Eu consegui sair. O meu cunhado Sérgio já não subiu mais. Ficou lá e se afogou. O meu sogro chamou socorro umas quantas vezes, mas depois eu não vi mais ele. Eu me prendi nas beiras do zinco, a minha cunhada ficou presa na perna e o meu cunhado, o irmão gêmeo do Raul, se prendeu no outro lado do coberto. O meu cunhado conseguiu se prender em um planta e ficou lá até as 10h do dia seguinte. A minha cunhada se desprendeu, não conseguiu mais se segurar em mim. Eu consegui saltar em cima da placa de zinco e fui por cima da cobertura da casa uns 18 quilômetros abaixo”, relembra. 

A família diz ainda que estar no terreno tem sido difícil, por relembrar dos momentos dolorosos da enchente. “Quando a gente chega aqui, dá um desânimo. A gente lembra muito que meu sogro pedia por socorro e a gente não conseguia ajudá-lo em nada. A gente não queria que ele tivesse esse fim. O pior é que ele não foi encontrado, segue desaparecido. A gente tem que ter esperança. Já são dois meses. A cada dia fica mais difícil”, enfatiza Janete, com os olhos marejados. A família tinha conseguido construir a terceira casa no terreno há pouco mais de oito meses. Com a força da água, não sobrou nada do imóvel.

Raul diz que a honestidade de seu Deoclydes era algo que marcava muito. “É suspeito falar do pai da gente, ele era uma pessoa muito honesta. Às vezes dava para os outros o que era dele.” 

A gente se reunia quando seu Deoclydes fazia aniversário. Isso aí era sagrado para ele. Sempre vinham todos os irmãos do Raul e a família toda. Sempre tinha algum ritual dentro do aniversário dele, porque ele já estava com 94 anos. Cada ano que passava, a gente festejava.
Janete Zilio, nora de José Deoclydes

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895