Diagnóstico urgente e essencial

Diagnóstico urgente e essencial

Pesquisa da Emater com 5 mil agricultoras gaúchas pretende mapear condições de vida desta população e subsidiar a busca de soluções para questões como autonomia financeira e violência doméstica no campo

Por
Nereida Vergara

A secretária da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural, Silvana Covatti, pretende apresentar em março, durante a Expodireto, em Não-Me-Toque, um direcionamento para a formulação, pelo governo do Estado, de políticas públicas de atendimento à mulher que tem sua vida fixada no meio rural. As ações serão ancoradas nos resultados de um levantamento que está ouvindo um total de 5 mil mulheres agricultoras, em 466 municípios do Estado. Sugerida e elaborada pela Emater/RS-Ascar, a pesquisa foi iniciada em 12 de novembro de 2021 e será concluída no próximo dia 17 de janeiro, quando os dados começam a ser tabulados. O objetivo é identificar a situação educacional, o engajamento das mulheres nas atividades da propriedade, sua interação social e questões de saúde, inclusive mental.

As pistas para a formulação do questionário surgiram do relatório “Desigualdades de Gênero dos Ocupados com Atividades Ligadas à Agricultura no Rio Grande Sul”, elaborado por pesquisadores do Departamento de Economia e Estatística (DEE) da Secretaria de Planejamento, Gestão e Governança (SPGG). O documento reuniu informações de diferentes fontes, como o Censo Agropecuário, o Cadastro Único, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua e a Pesquisa Nacional de Saúde. De acordo com estes dados, 145,7 mil mulheres compõem a população ocupada em setores ligados à agropecuária (em atividades características da agricultura familiar), o que representa 29% do total de agricultores ocupados no território gaúcho. A analista e pesquisadora em Sociologia do DEE, Daiane Boelhouwer Menezes, coordenadora do relatório, diz que o trabalho realçou informações que precisam ser detalhadas para que se possa evoluir na assistência à mulher agricultora. Duas delas referem-se à saúde mental da mulher e à influência neste contexto da violência doméstica. 

Conforme Daiane, 12,1% das mulheres ocupadas no campo admitiram que se sentem deprimidas por mais da metade dos dias da semana. O percentual é bem superior ao registrado no total de mulheres ocupadas no Rio Grande do Sul, entre as quais 6,7% se disseram deprimidas em igual período. Em mais da metade dos dias da semana, 10,6% das agricultoras revelaram ter pensamentos suicidas.

Ao mesmo tempo, os dados indicam que são as agricultoras que contam ter condições gerais de saúde melhores que as dos homens. Daiane observa que as agricultoras, mesmo sendo as que mais frequentam a medicina familiar, não têm atendimento específico de saúde mental.

No contexto da violência, 13,9% das agricultoras disseram ter sido ofendidas, humilhadas e ridicularizadas verbalmente na frente de outras pessoas, bem acima do total identificado entre as mulheres ocupadas em todas as profissões, de 9,3%. Já no que diz respeito à violência física, nenhuma mulher do campo relatou ter apanhado ou ter sido ameaçada com armas, o que, segundo a pesquisadora do DEE, é estatisticamente improvável.

Maribel Moreira, coordenadora estadual de mulheres da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande Sul (Fetag), ressalta que o fato de não haver relatos de violência física é um sintoma de que a mulher do campo tem medo, por viver isolada, por muitas vezes não saber a quem recorrer, por viver em um meio ainda muito impregnado pelo machismo e por achar que sem o eventual agressor não terá como sobreviver.

“Infelizmente os casos de violência existem e nosso trabalho tem sido mostrar para estas mulheres que elas podem buscar ajuda”, comenta Maribel. Ela constata que a organização das mulheres no movimento sindical já tem 36 anos e que o engajamento vem aumentando. “Embora não tenhamos números de quantos casos de violência doméstica ocorrem, justamente por não serem notificados, sabemos que eles ocorrem, que são componentes importantes dos quadros de depressão e até de suicídios”, completa.

“O que não se notifica, não existe”, lamenta Cleonice Back, coordenadora da Secretaria de Mulheres da Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Rio Grande do Sul (Fetraf/RS). Uma das principais pautas da entidade, garante Cleonice, é justamente estimular as mulheres a buscarem sua autonomia financeira. “É a ausência de renda própria que faz com que elas se submetam”, observa. 

A sindicalista reporta que é muito difícil uma agricultora fazer uma denúncia formal também por não conhecer seus direitos como mulher. “Muitas sequer sabem que existe a Lei Maria da Penha”, ressalta.

A secretária da Agricultura, Silvana Covatti, acredita que com os resultados obtidos pela pesquisa da Emater será possível tomar providências que tirem a trabalhadora rural da invisibilidade e que forneçam a ela confiança como geradora de renda. “Temos de focar na independência financeira da mulher, prepará-la para cuidar de sua sobrevivência”, pontua. 

Silvana usa como exemplo claro do poder feminino no campo a administração das agroindústrias, área que tem 70% dos empreendimentos geridos por mulheres.

Iniciativa comemorada pelas agricultoras

Equipe que foi a campo aplicar o questionário proposto pela Emater percebeu que as mulheres se sentiram satisfeitas e valorizadas por serem alvo da pesquisa

A disponibilidade das agricultoras para responder ao questionário proposto pela Emater/RS-Ascar surpreende a coordenadora da pesquisa, Clarice Böck, que também é responsável pelas áreas de extensão rural voltadas às mulheres e aos jovens. Segundo ela, o público alvo, de 5 mil mulheres, é composto por agricultoras, indígenas, quilombolas e assentadas, que têm se mostrado satisfeitas em receber os extensionistas e se sentido valorizadas pela iniciativa.“Queremos caracterizar os espaços que elas ocupam para além das questões ligadas à saúde e à violência”, antecipa Clarice.

Mais de 500 extensionistas estão aplicando os questionários em 466 municípios do Rio Grande do Sul. As perguntas, informa Clarice, buscam conhecer o envolvimento das mulheres na rotina de trabalho da propriedade rural, se participam das decisões e que acesso possuem aos recursos financeiros. Além disso, os questionamentos também pretendem identificar os papéis sociais da agricultora, seu grau de conhecimento a respeito da saúde, da violência, e dos seus direitos, inclusive o de estar presente nas redes sociais.

A representante da Emater observa que problemas como depressão e violência doméstica entre as mulheres do campo não são novidade, mas é preciso que ganhem visibilidade permanente e que estas mulheres saibam onde e como procurar ajuda. “É importante que a mulher agricultora saiba que não está sozinha e que pode contar inclusive com a extensão rural para ser ouvida”, complementa. 

A secretária da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural, Silvana Covatti, salienta que, por conhecer o cotidiano das agricultoras, considera muito importante garantir a elas o acesso às redes sociais. Silvana tem certeza que as mulheres são agentes de desenvolvimento nas comunidades onde estão inseridas e que têm de assumir os postos que merecem. “As redes sociais são um canal importante na comunicação dessas mulheres, que podem se expressar e contar o que acontece aos que são seus amigos”, afirma. “Mas, além disso, têm um caráter econômico, revelado pela pandemia, de divulgação do trabalho delas”, complementa. 

Tema “violência” é tratado com algum distanciamento

Maria Venir Floriano, de Santiago, e Dalva Kretschmer Vogel, de Porto Vera Cruz, são exemplos de agricultoras que responderam o questionário da Emater e comemoraram a intenção do governo do Estado de conhecê-las melhor. Ambas garantem que violência doméstica não faz parte do cotidiano delas, mas admitem saber de “vizinhas e conhecidas” que enfrentam o problema. 

Dona Dalva, de 51 anos, exerce na localidade de Barra do Bugre, no interior de Porto Vera Cruz, a profissão de pescadora. Diz não lembrar quantos anos faz que extrai seu sustento da atividade, mas que antes trabalhou muito tempo como agricultora. Ela consegue obter do Rio Uruguai, entre pintados, cascudos, piavas e grumatãs, cerca de 300 quilos de peixe por mês, que lhe rendem aproximadamente dois salários mínimos. “Esta renda é só minha”, conta, orgulhosa, ao revelar que o marido “tem o próprio emprego”.

A pescadora espera que a pesquisa da Emater resulte em ações que auxiliem as trabalhadoras do setor, inclusive com programas de financiamento para os equipamentos de pesca e resfriadores. Sobre a violência doméstica, Dalva diz que em grande parte é gerada por problemas como o exagero no consumo de álcool nas famílias da região da Grande Santa Rosa.

Maria Venir Floriano, que concluiu o ensino médio e incentivou os filhos a estudar, cultiva milho, hortaliças e aipim e também vende leite, ovos e queijo. Foto: Arquivo pessoal

Na localidade de Boqueirão, interior de Santiago, Maria Venir, de 53 anos, obtém parte da renda da família daquilo que planta em cinco hectares da propriedade. Ela cultiva milho, hortaliças e tubérculos, como o aipim. Também tem cinco vacas. Parte do leite que coleta é vendida para a comunidade. Com o restante, faz queijos. Além disso, mantém galinhas poedeiras para comercializar ovos e cria uns poucos suínos para a produção de banha. Contrariando os dados apurados pelo relatório “Desigualdades de Gênero dos Ocupados com Atividades Ligadas à Agricultura no Rio Grande Sul”, elaborado por pesquisadores do Departamento de Economia e Estatística (DEE) da Secretaria de Planejamento, Gestão e Governança (SPGG), o qual aponta que mais de 70% das mulheres agricultoras de sua faixa etária têm pouca ou nenhuma instrução, Maria concluiu o Ensino Médio e estimulou os filhos a estudarem. Franciely, de 30 anos, é formada em Administração na Unopar; e Delmar, de 21, estuda Farmácia na URI, onde ingressou com a nota do Enem.

A moradora de Santiago, que se define como “mini” agricultora, espera se aposentar em dois anos e vê na pesquisa da Emater uma possibilidade de melhorar as condições de vida femininas. Pouco à vontade com a abordagem sobre a violência, diz estar com o marido, José, há quase 40 anos, sem ter passado por este tipo de situação. “Mas a gente sabe que existe sim e que as mulheres não denunciam por vergonha”, confirma.

Dados preliminares que serviram de base para a pesquisa

Raça/cor

90% das mulheres ocupadas no campo no RS são brancas, 10% pretas e pardas. O alto índice de brancos se deve à formação populacional do Estado.

Liderança

Apenas 12,2% dos estabelecimentos da agricultura familiar no RS são chefiados por mulheres, índice inferior ao da média nacional, de 19,7% de liderança feminina.

Representação política

O número de mulheres agricultoras eleitas para cargos como prefeita, vice-prefeita e vereadora caiu de 103 em 2016 para 93 em 2020.

Acesso à tecnologia

Pelo menos 20,5% das mulheres ocupadas no campo não têm acesso à internet.

Violência sexual

5,3% das agricultoras admitiram ter sido vítimas deste tipo de agressão, índice maior que o registrado entre as mulheres de outras profissões no Estado, de 4,6%.

Fonte: Relatório “Desigualdades de Gênero dos Ocupados com Atividades Ligadas à Agricultura no Rio Grande Sul”, sobre dados do IBGE

Foto: Shutterstock / CP

Caminho para aumentar a autoestima

Milhares de mulheres rurais gaúchas encontram nos grupos organizados por suas entidades representativas e pela própria Emater/RS-Ascar o melhor ambiente para falarem de suas necessidades e angústias. Somente a Emater, em 2021, prestou atendimento a 41 mil agricultoras familiares. No cerne das dificuldades que esta população enfrenta, concordam tanto as extensionistas quanto a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (Fetag) e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf/RS), há a necessidade de se buscar a autonomia financeira e o entendimento das mulheres do valor daquilo que fazem. 

A coordenadora estadual de mulheres da Fetag, Maribel Moreira, diz que nas reuniões de grupos mantidos nas 23 regionais da entidade propõe-se um exercício para as agricultoras. “Nós pedimos que elas peguem uma cesta e coloquem dentro tudo aquilo que produzem. O pão, o salame, o leite, os ovos, as chimias. E que se dirijam até o mercado para saber quanto custa cada um destes itens”, conta. Maribel afirma que há entre as agricultoras um descrédito no potencial que elas têm como geradoras de renda. “Esse exercício faz com que elas visualizem que são capazes de prover seu sustento e de seus filhos”, comenta.

Um dos 23 grupos de mulheres organizados pela Fetag é o da regional de Santa Cruz do Sul. Foto: Claudete Ghelen Druzian / Divulgação / CP

Da região de Pinheiro Machado, Maribel ressalta que a situação tem melhorado, mas ainda está muito distante do ideal. Pontua que na pandemia a incidência de depressão entre as trabalhadoras rurais se intensificou. “As mulheres tiveram de se reinventar dentro da pandemia, os grupos que tinham regularidade precisaram parar, elas foram obrigadas a buscar formas novas para vender seus produtos”, enumera. De acordo com a dirigente, são quase dois anos de um ambiente desafiador, que obrigou muitas agricultoras a se afastarem para tratamento mental.

Cleonice Back, coordenadora da Secretaria de Mulheres da Fetraf/RS, lembra que a questão da autossuficiência está por trás dos índices de violência e até de questões culturais. Segundo ela, nem a aposentadoria garante que a mulher tenha uma renda essencialmente sua. “Temos relatos de agricultoras que não têm acesso à sua aposentadoria todos os meses, pois em muitos locais são dependentes do homem para se deslocar até a cidade, têm contas conjuntas com os maridos e acabam não desfrutando da quantia que conquistaram por direito”, denuncia. Cleonice identifica que os tempos para a mulher no campo estão melhores porque as mais jovens possuem mais escolaridade e informação e buscam coisas simples que antes eram privilégio masculino. “A carteira de motorista, que já foi rara entre as agricultoras, vem se tornando cada vez mais frequente entre elas”, sublinha.

Políticas públicas existentes hoje para a mulher

  • Programa Nacional de Documentação das Trabalhadoras Rurais (PNDTR). Possibilita a emissão gratuita de documentos civis, trabalhistas e de acesso aos direitos previdenciários;
  • Plano Nacional de Políticas para as Mulheres 2013-2015. Contribui para o fortalecimento e a institucionalização da Política Nacional para as Mulheres;
  • Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) (decreto nº 1.946/1996). Adotou uma linha de crédito específica para as mulheres;
  • Lei Maria da Penha (n° 11.340/2006). Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do parágrafo 8º do art. 226 da Constituição Federal;
  • Lei do Feminicídio (n° 13.104/2005). Altera o artigo 121 do Decreto 2.848, de 7 de dezembro de 1940, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio.

Fonte: Emater/RS

Projeto-piloto vai proporcionar atendimento

Regional da Fetag nas Missões começa neste ano plano de trabalho que pretende dar suporte às agricultoras em caso de violência

Grupos que tratam de capacitação e discutem problemas da comunidade querem acolher também reclamações de violência. Foto: Claudete Ghelen Druzian / Divulgação / CP

Claudete Maria Ghelen Druzian, da Regional Missões II da Fetag, coordena 25 grupos de mulheres em 12 municípios, que juntos integram aproximadamente 350 agricultoras. Ela comemora a concretização, em 2022, de um projeto-piloto da entidade, com apoio financeiro da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), que pretende encarar de frente a questão da violência doméstica.

Claudete admite a ocorrência, nos grupos que coordena, de altos índices de depressão, ansiedade e violência. Também reconhece as limitações que a federação tem para encaminhar as mulheres vítimas de agressões a canais de denúncia e atendimento. “A rede de proteção à mulher rural não funciona. Na região temos relatos de violência, inclusive feminicídios, mas não temos casas de acolhimento”, lamenta.

Naquelas situações em que a agricultora denuncia a agressão, a regional a encaminha para as secretarias municipais de Segurança e de Saúde. Em junho de 2021, o governador Eduardo Leite sancionou o Projeto de Lei 102/2019, que dá poderes ao Estado de criar mais abrigos para mulheres vítimas de violência doméstica. Hoje são apenas 14 casas de acolhimento para um total de 497 municípios gaúchos.

O projeto-piloto, batizado de Arte de Criar e Recriar, terá quatro etapas e deve contemplar 225 mulheres com ações de capacitação para a produção, empoderamento e atendimento às questões da violência. Neste último caso, com a contratação de profissionais especializados (psiquiatra e assistente social) para o cumprimento da tarefa. O orçamento a ser executado é de R$ 163 mil, a maior parte com recursos destinados pela Contag e complementados com verba da Fetag. 

Coordenadora da área na regional da Fetag onde se localizam os municípios de Santa Cruz do Sul, Sinimbu, Vale do Sol e Herveiras, Salete dos Passos Faber contabiliza no mínimo 10 grupos em atividade. Estas reuniões, diz ela, servem para a interação das mulheres, capacitações e a exposição dos problemas que as trabalhadoras enfrentam em suas comunidades. “No entanto, questões pessoais como a violência doméstica raramente são abordadas”, frisa a sindicalista. Conforme Salete, as agricultoras que estão com dificuldades costumam chamar as coordenadoras dos grupos para se queixar em particular. “É uma situação complicada. Elas têm medo do preconceito, do julgamento e de não ter para onde ir caso tenham de se separar do agressor”, reflete.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895