Dianteiro de primeira

Dianteiro de primeira

Cortes considerados “carne de segunda” foram melhorados e ampliam sua aceitação pelo mercado consumidor

Por
Danton Júnior

Os cortes do dianteiro bovino deixaram para trás o rótulo de carne “de segunda”. Se antes o acém e o peito eram utilizados apenas para cozimento em panela ou ensopados, por serem mais duros, hoje também fazem parte do churrasco dos gaúchos graças ao avanço da genética, que permite cada vez mais o aproveitamento dos animais em sua totalidade. A mudança de hábito provocou o surgimento de um novo nicho de mercado, ao mesmo tempo em que o consumo destas carnes cresceu em 2020, influenciado pela pandemia da Covid-19.

O novo momento dos cortes de dianteiro – que representam cerca de 38% da carcaça bovina – foi possibilitado por um conjunto de fatores, que incluem o trabalho de promoção dos programas de carne certificada, o pagamento do auxílio emergencial e o aumento das exportações. “A questão do auxílio emergencial fez com que a população de baixa renda voltasse a comprar carne bovina, principalmente cortes que eram mais baratos”, explica Elen Nalerio, pesquisadora em ciência e tecnologia de carnes da Embrapa Pecuária Sul, de Bagé.

Embora tenham subido de valor nos últimos 12 meses, os cortes do dianteiro seguem mais baratos que as carnes mais tradicionais. Os preços de atacado praticados pela indústria são, em média, 30% inferiores na comparação com o traseiro. Ao mesmo tempo, essas carnes passaram a ser oferecidas em restaurantes e churrascarias, despertando o interesse também do público de maior renda.

Em um momento de alta nos preços da carne bovina, o consumo do dianteiro tem potencial para seguir crescendo, acredita Elen. Além do preço, há a atração pelo sabor. “As pessoas consideram mais saborosos (que o traseiro) porque ele tem mais gordura. É uma carne que o animal trabalha mais durante a caminhada”, observa a pesquisadora. Ela explica que os cortes também contam com mais mioglobina, proteína presente nas fibras musculares, e colágeno, que influencia diretamente na textura. Ao mesmo tempo, há consumidores que ainda torcem o nariz para a antiga carne “de segunda”. Elen diz que tem observado, de forma prática, que o consumidor ainda está sendo educado para colocar esses cortes em seu cardápio.

Apesar de ter sido acentuada pela pandemia, a valorização do dianteiro teve início há cerca de dez anos no Brasil. Quem afirma é o veterinário e consultor Roberto Grecellé, da Prado Estratégia para Agronegócios. O cenário começou a mudar com a queda na idade de abate dos animais, de quatro para três anos no Rio Grande do Sul, sendo que um grande percentual já aos 30 meses. “Antes abatíamos animais muito tardiamente”, recorda. “Nesses casos, a carne fica mais dura”, complementa. Soma-se a isso a crescente evolução genética das raças britânicas e suas cruzas. Outro ponto importante é a mudança na forma de consumo da carne. Nos Estados Unidos, por exemplo, há uma tradição de consumo dos cortes de dianteiro. “O estilo de churrasco é aquele de cocção lenta, em que a carne fica muitas horas na churrasqueira até se desmanchar”, compara Grecellé. Esse novo jeito de fazer churrasco foi “importado”, inicialmente, pelo Sudeste do Brasil, chegando mais tarde também ao Rio Grande do Sul.

Em 2020, ano marcado pela pandemia, o consumidor assistiu a uma verdadeira gangorra de preços entre dianteiro e traseiro. Nos últimos dias, Grecellé afirma ter observado uma forte migração para as carnes do dianteiro. “Como fechou a torneira do auxílio emergencial e o brasileiro não deixa o hábito de comer carne para trás, ele precisa buscar uma alternativa”, resume. O movimento dos preços é influenciado, principalmente, pela exportação. A China, maior importador da carne brasileira, ampliou a demanda no ano passado em função da escassez provocada pela peste suína africana. O gigante asiático tem levado novilhos de primeira linha e aproveitado a carcaça de forma integral. Para Grecellé, a forma como os chineses estão consumindo carne tende a provocar um “tsunami” no mercado nos próximos cinco anos.

Levantamento do Núcleo de Estudos em Sistemas de Produção de Bovinos de Corte e Cadeia Produtiva (NESPro), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), aponta a diferença na variação de preço entre cortes de dianteiro e traseiro durante a pandemia. O acém certificado, por exemplo, registrou elevação de 14%. Houve reajustes menores para carne moída de segunda (6,9%), ponta de agulha (5%), peito bovino (3,7%) e paleta com osso (3%). Em alguns casos, a elevação ficou abaixo da inflação de 4,5% nos últimos 12 meses, segundo o IPCA.

Já nos cortes considerados mais nobres, os preços registraram elevação maior, de 28% na picanha, 32% na maminha, 40% no entrecot, 38% no vazio, 56% na costela prime e 60% no prime rib. “A gourmetização da carne está chegando a todo o boi, mas a maioria dos açougues e boutiques de carne ainda trata de maneira privilegiada a carne do traseiro”, constata o coordenador do NESPro/Ufrgs, Julio Barcellos.

 

Novo cenário aponta para a busca de nichos

Fazenda de São Sepé fornece cortes de dianteiro para restaurante especializado de Porto Alegre e percebe que iniciativa agradou consumidores

“Quando tu tens um animal bom, todos os cortes são maravilhosos”, afirma Fernanda. | Foto: Fernanda Costabeber / Fazenda Pulquéria / Arquivo Pessoal

A crescente valorização das carnes do dianteiro bovino guarda relação direta com o trabalho que é realizado no campo pelos pecuaristas. A produção para abate de animais cada vez mais jovens faz com que o boi apresente qualidade de carne em sua totalidade e não apenas nos cortes do traseiro. Esse novo cenário deu origem a negócios focados em um novo nicho de mercado. A Fazenda Pulquéria, de São Sepé, fornece a matéria-prima a um restaurante de Porto Alegre especializado em cortes de dianteiro. A parceria teve início no final de 2019.

Antes do acordo com o restaurante, a produção da fazenda era focada nos cortes do traseiro, mais populares. A carne de dianteiro acabava sendo comercializada como mercado comum, sem agregar valor, independente da qualidade do animal. “Porém o dianteiro tinha uma qualidade de carne fantástica, então era um desperdício”, comenta a gestora da Pulquéria, Fernanda Costabeber. Afinal, a terminação de animais jovens na fazenda reunia todos os ingredientes para a produção de um boi de alta qualidade em sua totalidade, e não apenas na parte traseira – contrariando a diferenciação entre carne de primeira e carne de segunda. “Quando tu tens um animal bom, todos os cortes são maravilhosos. Não interessa a posição dele no boi”, explica.

A mistura entre o padrão racial do gado gaúcho e as pastagens disponíveis para alimentação dos bovinos fazem com que, segundo Fernanda, o Rio Grande do Sul tenha capacidade de produzir animais tão bons quanto em qualquer lugar do mundo. “Temos as raças britânicas, que são conhecidas pela alta deposição de marmoreio, pela gordura e maciez. Isso é um pré-requisito para que haja bons dianteiros aqui”, explica. Com um rebanho formado por raças britânicas e suas cruzas, a Fazenda Pulquéria trabalha com terminação intensiva a pasto. O gado é criado solto, mas também conta com comedouros de alto consumo onde recebe ração à vontade. Desta forma, a propriedade consegue terminar um animal mais jovem, com peso maior e bom acabamento de gordura. Os animais são abatidos em média aos 24 meses.

Apreciadora da carne de dianteiro, Fernanda a considera mais saborosa do que os cortes do traseiro. “Ela tem uma consistência mais firme, mas não é dura. É extremamente macia e saborosa, com marmoreio”, define. Entre as qualidades, ela destaca ainda a cobertura de gordura e a suculência. E espera que o consumidor possa descobrir o o que ela considera o novo “rei do churrasco”. Fernanda diz que trata-se de uma sequência. “O produtor tem que criar um animal diferenciado, com alta qualidade, para poder valorizar o dianteiro; o frigorífico tem que saber valorizar esses cortes, para que a pessoa consiga assar com facilidade; e o consumidor também tem que aprender que essa carne é maravilhosa e pode ser tão boa quanto qualquer corte de traseiro”, resume.

 

Cortes têm características próprias, diz empresária

Ana Carolina lembra que sempre foi curiosa com cortes diferentes. | Foto: Baro / Divulgação

As carnes do dianteiro compõem 80% do cardápio do restaurante Baro, inaugurado em outubro de 2019 no bairro Bela Vista, em Porto Alegre. Entre os cortes estão o shoulder (parte superior da paleta, também conhecido como raquete), o denver steak (miolo do acém) e o front ribeye (parte inicial do entrecot). Pratos exclusivos foram criados pela proprietária Ana Carolina Reschke, como o Baro (extraído da primeira à quarta costela do dianteiro) e o Barão (que engloba o shoulder e o coração da paleta bovina). “Sempre fui muito curiosa com esses cortes diferentes”, justifica a responsável pelo empreendimento. Durante o veraneio, a marca também conta com um ponto de venda de carnes em Xangri-lá, no Litoral Norte. Apesar da experiência gastronômica com uma matéria-prima que, por muito tempo, foi considerada “carne de segunda”, Ana Carolina afirma que muitos consumidores ainda apresentam certa resistência aos cortes, que, no entanto, se esvai após experimentarem o primeiro pedaço. Segundo a empresária, a maciez é muitas vezes maior do que uma picanha ou um entrecot, devido à irrigação sanguínea presente no dianteiro do boi. “O que é magnífico no bovino é que tu tens esse universo de fibras musculares distintas do início até o fim, então cada corte vai ter a sua característica”, observa. No restaurante, um corte do dianteiro que atenda a duas ou três pessoas varia entre R$ 190,00 e R$ 220,00.

 

Alimentação bovina

Para o veterinário e consultor Roberto Grecellé, o primeiro passo para aproveitar o boi em sua totalidade é trabalhar com animais saudáveis e livres de doenças, respeitando-se o período de carência de medicamentos veterinários. O segundo ponto é utilizar animais oriundos de raças produtoras de carne de qualidade, como é o caso das britânicas e suas cruzas.

Outro elemento importante é a idade de abate dos animais. Os mais jovens tendem a propiciar uma carne mais macia. “Para ser abatido com idade jovem, eles têm que ter tido acesso a alimentação de qualidade desde que saíram do pé da sua mãe e foram desmamados, seja com pastagens naturais ou cultivadas de excelente qualidade, que não freie seu crescimento, mas que o incentive a crescer e a ter desenvolvimento muscular e de gordura até o dia em que é abatido”, observa o especialista.

 

Programas incentivam renovação de hábito

Short rib é um dos cortes do dianteiro que têm se popularizado nos últimos tempos, assim como o peito, shoulder e granito. | Foto: Eduardo Rocha / Divulgação

Mapa dos cortes do bovino mostra grande variedade de possibilidades para uso gastronômico. | Foto: Associação Brasileira de Angus

A mudança de hábito no consumo dos cortes de dianteiro é incentivada pelos programas de carne certificada. O segmento vê, com isso, uma forma de agregar valor a um produto que por muito tempo foi considerado como “de segunda”. A crença é de que, quando o animal é jovem e de boa qualidade, todos os cortes podem ser aproveitados.

Segundo a gerente nacional do programa Carne Angus, Ana Doralina Menezes, a popularidade de carnes como shoulder, short rib (acém com osso), peito e granito mostra que o consumidor tem se aventurado em novas experiências gastronômicas ao preparar na grelha cortes que antes eram feitos na panela. “Isso vem com a evolução da qualidade desse produto. Estamos produzindo mais carne de qualidade, com animais jovens e carcaças bem acabadas”, explica. O animal mais jovem tem uma quantidade de colágenos menor, o que está diretamente relacionado à maciez desse produto”, complementa. Alguns cortes, no entanto, permanecem não indicados para a parrilha, por possuírem uma fibra mais longa. O programa Carne Angus, que no ano passado abateu 452 mil animais, utiliza prioritariamente bovinos com até quatro dentes (em torno dos 36 meses).

Quanto aos animais, a genética das raças britânicas possibilita a terminação de bovinos precoces, que se desenvolvem rapidamente e apresentam crescimento muscular. Juntamente com aspectos como nutrição adequada, sanidade e práticas de bem-estar, essenciais na determinação da qualidade da carne, Ana Doralina destaca a importância de se obter gordura, acabamento e marmoreio junto ao crescimento muscular. “A utilização de uma raça precoce para crescimento e para acabamento, e com deposição de gordura, é muito importante para conseguir chegar nesse animal jovem cumprindo esses requisitos”, acrescenta.

O movimento do mercado foi acelerado pela pandemia, segundo Ana Doralina, já que o consumidor substituiu a experiência gastronômica nos restaurantes especializados pela necessidade de ficar mais tempo em casa. “Consequentemente, as pessoas começaram a ir mais em açougues e boutiques de carne e os próprios supermercados acabaram sendo cobrados por ter esse produto premium para oferecer, então o mercado aumentou”, observa. O preço também foi um fator importante, já que esses cortes costumam ser mais acessíveis em relação ao traseiro. O foco do programa Carne Angus tem sido abastecer o consumidor com informações relacionadas a esses e outros cortes, de modo a manter a demanda em alta. “Ainda existe uma parcela de consumidores que têm alguma resistência, mas ela é bem menor do que quando não havia muito esse consumidor conhecedor, que quer se aventurar e testar”, afirma Ana Doralina.

Ainda que tenha suas especificidades, a qualidade que a carne do dianteiro conquistou nos últimos anos assemelha-se ao sabor dos cortes tradicionais. “Os cortes de dianteiro são relativamente mais magros que os cortes de traseiro, têm uma deposição de gordura de superfície menor, mas dentro de um sistema de criação bem planejado, com animais jovens e com um padrão racial bem estipulado, a diferença de sabor e maciez é praticamente inexistente”, destaca a veterinária Anita Souza Caino, supervisora do programa Carne Pampa, que trabalha com animais das raças Hereford e Braford. De acordo com Anita, os animais enquadrados no programa contam com “ótima cobertura de gordura”, o que dá origem a uma carne macia e suculenta, com boa distribuição de gordura, tanto de cobertura quanto de marmoreio. “O modo de preparo vai depender muito do gosto e estilo de quem está no comando da churrasqueira. Esses cortes não só podem como devem fazer parte do churrasco”, resume.

Frigoríficos

Para os frigoríficos, a carne do dianteiro costumava representar um problema, já que no passado era difícil agregar valor a estes cortes, diferente do que ocorria com o traseiro. O presidente do Sindicato da Indústria de Carnes e Derivados do Rio Grande do Sul (Sicadergs), Ronei Lauxen, ressalta que hoje existem duas situações distintas. A primeira refere-se ao mercado de carnes certificadas, no qual havia dificuldade em se aproveitar o dianteiro. “Acabava sendo vendido no mercado comum”, observa. O outro lado da questão é o aspecto econômico e o fornecimento de carne para a maior parte da população. “Como os cortes são mais baratos, nesse momento de redução de consumo eles são os mais procurados, principalmente em função do preço”, complementa. Na avaliação de Lauxen, uma das tarefas do setor é mostrar ao consumidor que é possível mudar hábitos e ampliar o consumo destes cortes. “É muito importante desenvolver essa cultura de que todo o animal pode ser consumido. Com a carne de dianteiro de um animal jovem dá para se fazer churrasco”, resume o dirigente.

 

O ponto certo é mal passado

Assador e cozinheiro profissional percebe que estranhamento acaba quando começa a degustação

Para Beltrame,evolução genética do gado fez com que toda a carne se tornasse mais macia. | Foto: Renan Matheus/ Divulgação

Acostumado a participar de churrascadas no Rio Grande do Sul e em outros estados, o cozinheiro profissional e assador Guilherme Beltrame, de Uruguaiana, é um entusiasta de cortes como shoulder, short rib e acém. “O pessoal fica um pouco retraído quando escuta que é dianteiro”, observa. De acordo com o especialista, a primeira impressão do público costuma ser positiva com relação à apresentação dos cortes, devido ao seu marmoreio. Muitos, porém, estranham o ponto da carne, geralmente servida mal passada. Mas a preocupação termina logo que começa a degustação.

Boa parte da resistência que muitos consumidores ainda têm com as carnes do dianteiro é atribuída ao modo de preparo da carne. De acordo com Beltrame, a carne deve ser servida mal passada. Mas a falta de conhecimento sobre esse item acaba gerando uma barreira, admite o assador. “Se deixar passar (o ponto), qualquer um desses cortes se torna uma carne muito ruim de apreciar”, justifica. A recomendação é para que a carne seja assada geralmente em fogo forte e grelhada, uma vez que os cortes são mais finos. Uma dica dada por Beltrame, no caso dos cortes menos espessos, é passar a carne por alguns minutos em cada lado. O crescimento no consumo vai ao encontro da popularização das carnes mais mal passadas, ocorrido nos últimos anos.

Para quem acredita que o dianteiro é mais duro, Beltrame alega que a evolução genética do gado bovino fez com que toda a carne se tornasse mais macia. Isso porque a uniformização dos rebanhos, com raças definidas e certificadas, fez com que a matéria-prima se tornasse mais nobre. “Num gado mais uniforme, com bom acabamento de gordura, vamos encontrar bastante marmoreio nas peças do dianteiro e isso agrega muito sabor aos cortes”, avalia. “A paleta do boi só ia para a panela, porque era muito dura”, complementa o assador. Beltrame atribui a mudança de paradigma a um trabalho conjunto entre pecuaristas e cozinheiros, que, por sua vez, souberam aproveitar o ponto certo para servir os cortes.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895