Doze facadas para sempre

Doze facadas para sempre

Apesar da redução da violência contra a mulher no RS, muitas mulheres ainda são vítimas desse crime, como *Natália, que sobreviveu a 12 facadas do ex-marido

Por
Taís Teixeira

*ALERTA: Este conteúdo mostra cenas fortes de violência. 

Em outubro, duas importantes conquistas para reduzir a violência contra a mulher. Mais de 800 pessoas foram presas no Rio Grande do Sul após operação de combate à violência contra a mulher no dia 10 de outubro. Ao longo de setembro, foram registrados 4.033 boletins de ocorrência no Estado. Em todo o país, a operação resultou na prisão de 12.396 pessoas por agressões domésticas ou feminicídios e na adoção de 44.833 medidas protetivas de urgência. Mais de 72.520 boletins de ocorrência foram registrados. A primeira edição da Operação Maria da Penha foi deflagrada em 2021, quando 127 mil mulheres foram atendidas pelas forças de segurança. No Brasil, foram contabilizadas 14,1 mil prisões e 39,8 mil medidas protetivas requeridas ou expedidas. 

Outra iniciativa é a compra de 2 mil tornozeleiras para monitorar agressores de mulheres. Um aplicativo de telefone celular, interligado ao equipamento, que monitora o agressor em tempo real e alerta a vítima e as forças de segurança se a zona de distanciamento for ultrapassada. O investimento inicial é de 4,2 milhões. 

Essa espécie de crime contra a mulher alcançou tanta dimensão que o poder judiciário decidiu criar uma vara especializada em feminicídios instalada em março de 2021, na 4ª Vara do Júri de Porto Alegre. A violência contra as mulheres é uma forma de violação dos direitos humanos e está associada a uma sociedade que reproduz desigualdades entre homens e mulheres – no acesso a direitos, trabalho, escolarização – e reforça estereótipos de gênero e relações de poder. A cada 30 minutos uma mulher é agredida no Rio Grande do Sul, e a cada 7 horas uma mulher é vítima de feminicídio no Brasil

A violência doméstica é a principal causa de morte entre mulheres de 16 a 44 anos de idade, e mata mais do que câncer e acidentes de trânsito. Dos feminicídios e das tentativas de assassinato, 71% têm parceiros como suspeitos. Das vítimas de feminicídio, 37,5% são brancas e 62% são negras. 

De acordo com os dados do relatório anual da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE/RS), de setembro de 2021 a setembro de 2022, foram realizados 10.580 atendimentos a vítimas de violência no Estado, com formulação de pedidos por defensores públicos à Justiça, o que representa aumento significativo de atendimentos em relação a anos anteriores.

Conforme dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP), entre os outros quatro indicadores de violência contra a mulher acompanhados pela SSP, além do feminicídio, todos os atributos do tipo apresentaram queda no mês de setembro de 2022. As ameaças diminuíram 16,5% no mês de setembro e as lesões corporais, no mesmo período, apresentaram baixa de 7,1%. As tentativas de feminicídio e os estupros caíram, em setembro, 9,5% e 1,5%, respectivamente.

Com os resultados de setembro, a maioria dos indicadores de violência contra a mulher apresentaram queda no acumulado do ano. As lesões corporais, no entanto, ainda têm alta de 0,3%, porém houve queda nas ameaças (6,8%), nos estupros (0,4%) e nas tentativas de feminicídio (2,2%).

O relato de *Natália (nome fictício), 48 anos, profissional da saude, mãe e vítima de violência doméstica exemplifica uma realidade de sofrimento, tortura e quase morte. De 2001 até 2014, a vida dessa mulher tinha um objetivo: sobreviver às constantes agressões do ex-marido e ver a filha crescer. Durante 13 anos, ela foi vítima de frequentes agressões físicas, psicológicas e financeiras impostas pelo marido.

Fraturas no nariz, afundamento de crânio, deslocamento de mandíbula, estiramento de tendões, encurtamento do braço, inúmeros socos, chutes, machucados e o ápice de toda a violência: 12 facadas recebidas do ex-companheiro, sendo três no abdômen, cinco no tórax, duas na mão, uma na perna e outra na orelha. Estar viva depois disso tornou *Natália “um milagre” ao não ter entrado para a triste estatística de feminicídio no RS. 

                  *Natália fez duas operações para o nariz e deslocamento de mandíbula. Foto: Arquivo pessoal

“Namorei um homem e casei com outro”

“Quando eu acordava de madrugada para ir ao banheiro ou tomar um copo d’água, ele me esperava em um canto do quarto, avançava na minha direção, segurava meu pescoço, me deitava no chão e começava a me bater no rosto até a hora em que ele achasse que estava bom. Eu ficava quieta, pois nossa filha dormia no quarto ao lado e não sabia que o pai espancava a mãe”. Ela lembra que no começo da relação, o ex-marido era um homem amoroso, porém, antes da gestação, desferiu um tapa no rosto dela, atitude a qual disse que nunca mais aconteceria.

Nos nove meses de gravidez, ele foi “maravilhoso”. Quando a bebê tinha quatro meses, Natália recebeu a primeira de muitas agressões que viriam pela frente. “Nunca houve uma discussão, um motivo específico. Ele não começou com violência psicológica, foi direto para agressão física”, relata. Os espancamentos eram acompanhados de ameaças. “Dizia que se eu o traísse me mataria, se não deixasse ele ver nossa filha, também”, recorda. As ameaças foram elevando o tom. “Ele era lutador de artes marciais e descrevia como mataria meus pais e demais parentes caso eu contasse para alguém”.

Cicatriz de afundamento de crânio causada em um dos episódios de agressão que *Natália sofreu do ex-marido. Foto: Fabiano do Amaral

A pressão sobre Natália fazia com que o seu agressor a levasse de carro de madrugada para ruas mais vazias e chamava a polícia para mostrar para ela que não atenderiam. “Eu tinha muito medo, tensão, pavor, medo que fizesse algo com nossa filha”, detalha. O ex-marido não bebia. Natália conta que depois das agressões, costumava beijá-la, abraçá-la e tratá-la bem, uma forma de compensação, o que a deixava muito confusa. "Será que realmente fiz algo errado? Será que estou casada com duas pessoas?”, eram alguns dos questionamentos que lhe vinham à cabeça.  

Para piorar a situação, eles eram colegas de trabalho. Natália convivia com ele no ambiente pessoal e profissional. Outra violência vivida por Natália foi a patrimonial. “Ele ficava com todo o meu salário, tinha senhas do cartão e gastava como queria. Me dava o dinheiro contado da passagem para ir e voltar do trabalho”, conta.

*Natália em uma das dez cirurgias pelas quais ela passou para se recuperar das agressões. Foto: arquivo pessoal

O medo que ela sentia era tanto que ela “paralisou” e não contou nada para ninguém, nem para a própria família. “Eu só queria sobreviver àquilo tudo”. Já a família do agressor estava ciente do que acontecia no quarto do casal. “Toda vez que intervieram pioraram as coisas, pois era uma família que tinha outros homens com histórico de violência contra mulheres”, lembra. Ela tentou se separar, mas parou de tocar no assunto. “Era pior, me batia ainda mais”.

Em dezembro de 2013, as agressões causaram um deslocamento de mandíbula. Em fevereiro de 2014, ela foi internada com suspeita de rompimento do baço e fratura do rim. “No hospital, perceberam o que se tratava e perguntaram e me disseram para registrar ocorrência. Mas ele responderia por tentativa de homicídio e lesão corporal grave, mas não seria preso, e eu sabia o que isso significava”, disse.  

A separação que não evitou a tentativa de  feminicídio

Porém, a separação veio. “Saí de casa somente com minha filha e as nossas roupas. Deixei casa, carro, tudo”, comenta. Natália e a filha foram morar na casa de um parente, até ela se reerguer. Ambos voltaram a trabalhar juntos, porém quando houve a internação, o local onde trabalhava foi acionado e implementou um sistema de segurança, monitoramento e turnos diferentes para garantir a integridade da vítima. Mesmo assim, com  2 anos e 8 meses de separação, ele a esperou após o trabalho, fingiu que foi assaltado, contou que tinha ocorrido uma tragédia com a filha, atraiu a vítima para o carro e anunciou que iria matá-la.

“Ele tirou uma adaga e disse que estava com armas. Ele queria me levar para nossa casa, mas errou a rua. Tentei sair do carro, caí no colo dele, abri a porta e ele começou a me esfaquear. As pessoas gritavam, viam, filmavam, mas não se intrometeram. De repente eu segurei a faca, começamos a brigar e me atirei para fora do carro. Então, ele fugiu. A Brigada Militar chegou em 40 minutos, e eu estava me esvaindo sangue. Me levaram imediatamente para o Hospital de Pronto Socorro”, descreve. Foi neste momento que colegas e familiares e até a própria filha descobriram a vida de violência que o casal não deixava transparecer.

*Natalia recebeu cinco facadas no tórax e precisou colocar silicone para reconstuir a mama. Foto: Fabiano do Amaral

A jornada de Natália desencadeou ao todo dez cirurgias, sendo duas no nariz e 60 sessões de fisioterapia e mais de R$ 500 mil em tratamentos, consultas, exames, reparos e medicamentos, até infiltrações de corticóides para suportar as dores. Ela nunca parou de trabalhar. “Com dor, com medo, não parei de trabalhar, fazer hora extra, pois sou a única provedora minha e da minha filha”, conta, dizendo que o homem parou de dar pensão alimentícia desde que foi demitido. 

 Desde que se separou, em 2014, quando levou as 12 facadas, *Natália já gastou mais de R$ 500 mil em exames, consultas, cirurgias, remédios e o sustento dela e da filha.Foto: Fabiano do Amaral

Atualmente, o ex-marido está preso em regime fechado por 27 anos. Como é réu primário, a pena foi abrandada para 18 anos. “Claro que ele irá recorrer, mas penso que tentativas de crimes hediondos não poderiam ter essa prerrogativa de redução, pois ele é réu primário na justiça, mas não é primário na violência contra mulher”, salienta, destacando que existem outras denúncias contra o ex-marido feitas depois do que ocorreu com ela. 

Natália conta que sempre soube que não poderia esmorecer e teve que ser forte pela filha, hoje com 19 anos, cursando duas faculdades. A jovem teve muitas dificuldades e precisou de apoio terapêutico, que ainda recebe, para entender que o pai e o quase assassino da mãe eram a mesma pessoa. A mulher conta que ficou sabendo no tribunal que a filha também foi agredida, algumas vezes, com cinta e em menor frequência e proporção, e que ele também coagia a menina a não contar. “Tanto que ela se declarou órfã de pai, porém é órfã de um pai vivo”, lamenta.

Por passar por tudo isso e estar viva, Natália ouve muitas pessoas dizerem que “pelo menos ela está viva”, entendimento que ela rebate. “Muitas pessoas diziam ‘nossa, pelo menos tu está viva’, como se eu tivesse tido muita sorte, mas não imaginam todos os meus danos e sofrimento”. As 12 facadas recebidas são sequelas que ficarão para sempre na vida dessa vítima. 

À esquerda, foto da cirurgia feita em 2014 devido aos três golpes de faca no abdomêm. À direita, como está a cicatriz atualmente. Foto: arquivo pessoal (e)/Fabiano do Amaral (d)

Vítima sim, mas sem se vitimizar

Apesar de ser vítima da violência doméstica, ela decidiu abrir novas portas. Concluiu a graduação, fez pós-graduação e hoje faz um novo curso. Mesmo com 70% do salário comprometido com empréstimos, ela comemora a oportunidade de seguir em frente e buscar um novo caminho. “Ainda sinto medo de sair, cuido onde vou, os lugares porque não tem dinheiro que apague isso, as marcas estão no meu corpo, na minha memória, na expressão dele transformada me batendo, são coisas que para sempre vão ficar em mim”, reflete. 

A profissional da saúde destaca o suporte que recebeu do o projeto Borboleta, como forma de combater o ciclo da violência, os Juizados de Violência Doméstica do Foro Central de Porto Alegre. O objetivo da ação é orientar, acolher e dar dignidade às vítimas, filhos, bem como realizar um trabalho com os ofensores, buscando auxiliar na compreensão do fenômeno do ciclo da violência encontrando caminhos e soluções para erradicar a violência doméstica.

 O cumprimento dos braços ficou desigual devido a um estiramento dos nervos no dia das facadas. A mobilidade e a força ainda não foram recuperadas.Foto: Fabiano do Amaral

Implementado há mais de 10 anos pela Juíza Madgéli Frantz Machado, coordenadora do projeto nos Juizados da Violência Doméstica em Porto Alegre, o projeto abarca ações que buscam a qualificação para o trabalho, geração de renda e também atua nos grupos reflexivos de gênero para homens. A iniciativa também possibilita dar encaminhamentos para atendimento psicoterápico na rede de proteção e cursos profissionalizantes junto ao Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac-RS). "É um trabalho maravilhoso de acolhimento que me ajudou muito, porque a gente ouve outras histórias e vê que não está sozinha”, destaca.

Outro aspecto destacado é a ajuda da Defensoria Pública do Estado. “Estou muito feliz com todo atendimento e o trabalho detalhado que estão fazendo para tentar que me pague uma parte de todos os custos e, mesmo se não vier em dinheiro, para que saibam o custo  de uma mulher em situação de violência para a sociedade e para o sistema único de saúde", afirma.  

A defensora pública e dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado, Liseane Hartmann, explica que *Natália foi inicialmente atendida pela sua antecessora e que hoje ela está acompanhando o caso. “Ela nos relatou diversas situações de violências das quais foi vítima e montamos uma ação indenizatória contra ele por dano material, pelo abalo psicológico, toda a questão de cirurgias, todo o atendimento médico, entre outros”, elucida. A defensora acredita que nas próximas semanas tenha uma posição melhor sobre a ação.

As muitas “Natálias” da sociedade

Apesar de tudo, *Natália seguiu em frente. Nunca parou de trabalhar e não desistiu da vida e hoje busca a recuperação e o bem estar dela e da filha. Foto: Fabiano do Amaral

Embora os números do levantamento recente indiquem um recrudescimento, esse problema é uma das mazelas da sociedade há anos. A defensora esclarece que, normalmente, o registro das mulheres ocorre após muitos anos de violência e anos de sofrimento de abusos psicológicos, ameaças, injúrias até romperem o silêncio e buscarem ajuda. “A maioria dos crimes não é registrada, seja por medo, dependência financeira, receio de afetar a vida dos filhos ou mesmo em razão de julgamentos da família e da sociedade”, ressalta.

Ela ressalta como a DP atua para defender os direitos das vítimas. “A atuação da Defensoria Pública está voltada para a garantia da eficácia dos direitos fundamentais da mulher no âmbito das relações domésticas e familiares e nas diversas situações em que se verifique a violência de gênero. É prestado atendimento, acolhimento e orientação jurídica, antes ou após o registro de ocorrência policial devido à violência, são solicitadas medidas protetivas, há o encaminhamento das mulheres para acolhimento em casas de referência, ajuizamento de ações envolvendo divórcio, dissolução de união estável, guarda, direito de convivência e pensão alimentícia, bem como o acompanhamento dos processos que tramitam nas Varas Especializadas de Violência Doméstica. A Instituição também tem atuação em demandas de saúde e participação de campanhas a fim de preservar a saúde da mulher, como o Outubro Rosa”, assinala.

Muitas “Natálias” devem estar neste momento sendo agredidas, ou sofrendo em silêncio por medo ou vergonha. A situação vai massacrando a ponto de a  vítima se sentir culpada pela agressão. Por isso, qualquer pessoa que presencie ou saiba de um caso de violência doméstica ou familiar pode lançar mão dos canais de atendimento especializado ou de denúncia geral para delatar uma agressão. Destaca-se o Ligue 180, Central de Atendimento à Mulher, coordenado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). 

 O que é feminicídio?

Definido pela Lei nº 13.104/2015, que altera o Código Penal, o feminicídio é circunstância qualificadora do crime de homicídio. Quando reconhecido pelo Tribunal do Júri, é razão para aumento da pena.Conforme o texto legal, considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve:

I - violência doméstica e familiar;

II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

Espécies de violência contra a mulher segundo a Lei Maria da Penha,  nº 11.340/2006 (definições estão resumidas)

*Violência física: qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal. A violência física ocorre quando a mulher é agredida por meio da força física ou algum tipo de objeto que provoque lesões, como socos, empurrões, chutes, mordidas, cortes ou queimaduras.

*Violência psicológica: A violência psicológica é tudo que cause danos emocionais, como xingamentos, humilhações, chantagens e perseguições.

*Violência sexual: qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação.

Violência patrimonial/econômica: entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. 

Violência moral: entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria, atacando a reputação da mulher, como mentiras e fofocas com a intenção de humilhá-la ou diminuí-la.

Violência institucional:praticada por agente público no desempenho de função pública, em instituição de qualquer natureza 

Violência obstétrica:desrespeito à mulher, a sua autonomia, ao seu corpo, caracteriza-se por abusos sofridos por mulheres quando procuram serviços de saúde na hora do parto.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895