El Niño começa e traz temor de desastres

El Niño começa e traz temor de desastres

Previsão de retorno do El Niño no Rio Grande do Sul acende alerta para risco de enchentes e deslizamentos.

Por
Kyane Sutelo

A previsão da meteorologia tem sido cada vez mais consistente: 2023 terá El Niño novamente, o que possibilita ao Rio Grande do Sul reviver o desastroso cenário enfrentado em 2015 e 2016, quando houve Super El Niño. “A tendência é de aumento de chuva. Há perspectiva de volumes acima da média e maior frequência de dias com instabilidade. a umidade também aumenta”, diz a meteorologista da MetSul, Estael Sias. Ela explica que as consequências podem ser “alagamentos, situação de risco maior de cheias em rios e deslizamentos de terra”. 

O governo gaúcho afirma estar se preparando para evitar ou minimizar os danos. “Existe uma ação transversal do governo do Estado. As diversas secretarias, em uma força sinérgica, vem adotando já providências de preparação para esses eventos. A gente já sabe o que vai acontecer. Há uma previsibilidade”, diz o subchefe estadual de Proteção e Defesa Civil, coronel Marcus Vinicius Gonçalves Oliveira. Conforme ele, em 2015 ocorreram mais de 197 eventos que deixaram as pessoas desalojadas.

Um levantamento divulgado nesta semana pela Defesa Civil identificou 740 áreas de alto e muito alto risco a movimentos de massas e enchentes, em 60 municípios gaúchos. As informações são da base do Serviço Geológico do Brasil, órgão vinculado à Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral do Ministério de Minas e Energia. O chefe da Casa Militar e coordenador estadual de Proteção e Defesa Civil, coronel Luciano Chaves Boeira, destaca que essas informações servem para identificar ameaças e vulnerabilidades a fim de melhorar os protocolos de prevenção e de ações emergenciais.

Os locais são divididos conforme as respectivas Coordenadorias Regionais de Proteção e Defesa Civil (Crepdecs), que são nove ao total. Segundo Oliveira, a competência de gerir casos de impactos de eventos naturais é das Defesas Civis municipais. O órgão estadual se encarrega de dar suporte, caso necessário. “A partir do momento que ele não tem condições municipais de dar uma resposta suficiente a um evento desses, o Estado entra de forma suplementar”, detalha. “Então, é preciso que as prefeituras tenham seus Planos de Contingência (Plancon)”, explica o representante do órgão. Conforme a Defesa Civil Estadual, os chamados Plancons são um conjunto de medidas preestabelecidas para responder à situação de emergência ou a estado de calamidade pública de forma planejada. Esses documentos devem ser articulados intersetorialmente em cada município, respeitando as peculiaridades locais. “Por isso a importância de estarem sempre atualizados”, pontuou o coronel.

Conforme a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), há preocupação em relação às enchentes, que podem acometer populações ribeirinhas nos municípios margeados por rios. No entanto, a Federação também considera que a previsão de muitas chuvas reforça a importância para encher reservatórios. No início de junho, a Famurs realizou no 41º Congresso de Municípios gaúchos um painel com o tema “Super El Niño: o que as cidades precisam saber para enfrentar melhor esse desafio?”, com a meteorologista da MetSul, Estael Sias. Segundo a Famurs, são ofertados cursos, através da Escola Famurs, para capacitação dos gestores municipais de Defesa Civil, ainda que nenhum curso com esse tema esteja na listagem disponível no site da Federação. 

A Defesa Civil gaúcha também trabalha com qualificações, como é o caso do Projeto Capacitar 2023. Gramado recebeu da iniciativa um simulado de gestão de desastres nos últimos dias de maio. O exercício de deslizamento devido a chuvas intensas trabalhou possíveis danos humanos, materiais e ambientais.

Participaram cerca de 140 profissionais da Defesa Civil municipal e de órgãos como Brigada Militar e Corpo de Bombeiros, além de agentes de trânsito, servidores do Executivo da cidade e trabalhadores da saúde. 

Profissionais de qualquer regional podem acompanhar atividades feitas em outras Crepdecs, como ocorreu em Gramado, segundo a Defesa Civil do Estado. Uruguaiana e Pelotas também já receberam o Capacitar neste ano, com palestras e workshops. No município da Fronteira-Oeste, por exemplo, foi exibido um vídeo com simulação de fortes chuvas afetando municípios da região e cada coordenador de Defesa Civil municipal presente precisou produzir as documentações necessárias para decretação de situação de emergência.

Com os simulados, a intenção é que os municípios vivenciem a realidade da tomada de decisão em eventos adversos. A partir da experiência, o órgão estadual pretende que os gestores públicos municipais avaliem seus Planos de Contingência com mais subsídios, verificando se eles atenderão às necessidades, em um caso real de desastre. A previsão é que sejam realizadas mais uma atividade no interior e uma em Porto Alegre até julho. O mês marca o aniversário da Defesa Civil do Estado e também um dos momentos de maiores estragos do “super” El Niño em 2015.

Cheia do Gravataí causou grandes prejuízos

Porto Alegre precisou fechar todas as comportas do Guaíba em outubro de 2015, mas municípios da Região Metropolitana sofriam grandes impactos do Super El Niño já em julho. Esse foi o caso de Alvorada, que em 20 de julho havia decretado situação de emergência em função de inundações, conforme a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil. Cerca de 12 mil pessoas foram afetadas pelo excesso de chuvas e a população desabrigada foi acolhida no Ginásio Municipal Tancredo Neves. A situação superou a da enchente de 2013, entrando para o rol das piores que já atingiram o município. 

A cheia do Rio Gravataí e dos arroios do município não inundou apenas residências, mas também a Estação de Bombeamento de Água Bruta (Ebab) da Corsan, causando o desligamento dos motores. Durante uma semana, a população precisou lidar com a falta de água. Foram contabilizados 75 mil pontos desabastecidos e mais de 400 mil moradores afetados, considerando também a população de cidades próximas, como Viamão, Cachoeirinha e Gravataí. Caminhões-pipa distribuíram água em alguns pontos, mas não foram suficientes para evitar o fechamento de creches e a restrição no atendimento das Unidades Básicas de Saúde de Alvorada.

Na região do Jardim Alvorada, houve desmoronamento de terra, assim como no Caminho do Meio, estrada que ficou temporariamente interditada. Entre os bairros mais afetados, estavam os que ficam nas cercanias do Rio Gravataí e do Arroio Feijó, como Tijuca, Vila Barcelos, Umbu, Sumaré e Americana, onde mora Romana Vitalis Trindade, de 72 anos. A aposentada lembra o sofrimento enfrentado em 2015, quando só conseguiu acessar sua casa de barco. “Peguei três enchentes em um ano. Geladeira, freezer, microondas, tudo nadava.”

Ela e o marido Eli José Soares Trindade, 68, tiveram que contar com a solidariedade dos mais próximos. Foram abrigados na casa da comadre e reuniram móveis e cachorros em um escritório cedido por um antigo chefe.

Um dique no Arroio Feijó, em Alvorada, seria uma obra para mitigar os problemas de cheia no local. Ele estaria previsto no Plano Nacional de Gestão de Riscos e Respostas a Desastres Naturais do Programa de Aceleração do Crescimento 2 (PAC2) do governo federal, sob responsabilidade da Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan), com R$ 228 milhões destinados pelo Ministério das Cidades. No entanto, estudos posteriores apontaram a necessidade de mais de R$ 1 bilhão e, após oito anos de debates, o dique ainda não saiu do papel.

A prefeitura de Alvorada afirma que a obra, com recurso federal, já teve o encaminhado o licenciamento ambiental e o projeto foi apresentado em audiência pública. Conforme o Executivo, o Estado estaria providenciando a contratação do projeto executivo, mas ainda não há previsão para as obras. 

Segundo a Secretaria de Obras e Infraestrutura do município, o foco para evitar novas inundações tem sido o desassoreamento, ou seja, a remoção de sedimentos do fundo dos rios para melhorar o escoamento. “A gente conta com duas escavadeiras hidráulicas que fazem a manutenção dos arroios, limpando os canais, justamente porque o grande problema do município é o extravasamento dos arroios”, detalhou o secretário Rogério Negreiros. Segundo ele, as últimas chuvas demonstraram efeito positivo do trabalho. O desassoreamento começou em 2017, conforme Negreiros, e é realizado diariamente. 

O secretário destacou que a Defesa Civil municipal está preparada. “A gente já tem estoque de lona e pessoal, para caso haja chuvas fortes e destelhamentos, a gente já está estruturado com a Defesa Civil”. Mas Romana, que já teve que sair de casa novamente em 2020, ficou preocupada com a possibilidade de novas chuvas e não quis esperar a ação do poder público. “Eu construí uma casa de tábua em cima da garagem. Se vier de novo, pelo menos os móveis eu salvo”, afirmou a alvoradense.

Comportas fechadas no Guaíba

No ano de 2015, os impactos no nível do Guaíba fizeram com que Porto Alegre contabilizasse estragos em julho e outubro, mas foi neste último mês que registrou um fato inédito, foram fechadas as 14 comportas do Guaíba, para evitar uma grande enchente na cidade. No dia 12 daquele mês, a medida foi tomada pela primeira vez desde que o sistema de proteção contra esse tipo de evento foi construído na Capital. Na ocasião, o nível do Guaíba no Cais do Porto, onde há um medidor oficial, marcou 2,88 metros, chegando a 2,92 metros, com ondas que fizeram a água atingir o Cais. 

A decisão de fechar as comportas foi do então prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, de forma preventiva, pois a prefeitura entendia que chegando a 3 metros, o lago poderia invadir o Cais. “É uma garantia à população de Porto Alegre, que poderá dormir tranquila na madrugada desta noite. Se amanhã as coisas voltarem ao normal, a comporta central será reaberta”, disse Fortunati ao Correio do Povo na época. Naquela data, as águas avançaram sobre áreas de lazer em locais como a Usina do Gasômetro, o entorno do Parque Marinha do Brasil e a praia de Ipanema, na zona sul da Capital.

O alto nível do Guaíba e o acúmulo de água em diversos pontos da cidade modificaram a rotina dos porto-alegrenses na última passagem do Super El Niño. O serviço do catamarã e o recolhimento de lixo ficaram temporariamente interrompidos. Três dias após o fechamento das comportas, as chuvas alagaram inclusive o parque gráfico do Correio do Povo prejudicando o trabalho no local. 

Na época, a Agência Brasil afirmou que a capital gaúcha tinha mais de 10 mil pessoas com as residências alagadas e 1,5 mil desabrigadas ou desalojadas. Ao final daquele mês, a então presidente da República, Dilma Rousseff, esteve em Porto Alegre, onde se reuniu com o governador gaúcho no período, José Ivo Sartori, para debater a situação do Estado. Na ocasião, ela anunciou decreto federal que permitiu que a Capital, Pelotas e Gravataí fossem beneficiadas com os mesmos direitos de quando se decreta situação de calamidade ou emergência em cidades menores, devido ao percentual de dano atingido. “Flexibilizamos para que as pessoas possam acessar os recursos do FGTS”, explicou Dilma, na data, quando também sobrevoou a Região Metropolitana. 

Conforme a Defesa Civil de Porto Alegre, órgãos municipais, estaduais e civis se reúnem mensalmente na Comissão Permanente de Atuação e Emergências (Copae), para debater, desenvolver e aprimorar ações em caso de desastres. A entidade é presidida pela Defesa Civil da Capital e tem como foco diminuir o tempo de resposta à comunidade atingida por sinistros, atuando de forma mais eficiente.

“Nós estamos aprimorando as informações com relação ao El Niño, aguardando que as previsões se confirmem. A gente deve ter previsões mais apuradas à medida que o evento for acontecendo em outras partes do mundo, do país. Mas nós temos condição de dar resposta no caso de necessidade”, afirmou o coordenador da Defesa Civil de Porto Alegre, Evaldo Rodrigues.

Emergência devido à cheia do rio dos Sinos 

Outro rio que atingiu níveis acima da média em 2015 foi o rio dos Sinos. Na mesma data em que a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil registrou o decreto de emergência de Alvorada, também aparece o registro de Esteio. No documento, a prefeitura argumenta que o município chegou a aproximadamente 180,8 milímetros de chuvas, sendo 102 mm de precipitação somente em um período de dez horas do dia 13 daquele mês, atingindo “centenas de famílias” e bairros como Três Marias, Primavera, São Sebastião, Novo Esteio e Centro. Na ocasião, o então prefeito, Gilmar Rinaldi, chegou a considerar a enchente como a maior da história da cidade. 

Em dezembro de 2015, foram concluídas as obras da avenida Brasil, em Esteio, também conhecida como Beira-Arroio. A avenida integra o projeto de renaturalização do Arroio Sapucaia, afluente do rio dos Sinos, responsável por parte dos alagamentos no município. Ela foi projetada de modo a servir como dique no local, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC1) do governo federal. Porém, deve ter seu grande teste de qualidade somente neste ano, caso o Super El Niño atinja o Estado como indicam as previsões meteorológicas. Uma pesquisa desenvolvida no mestrado de Sensoriamento Remoto e Meteorologia na Ufrgs, do agora doutor na área João Paulo Brubacher, apontou que as obras da BR 448 e da avenida Brasil poderiam ter contribuído para as inundações de 2015 no município. A pesquisa chegou a ser destacada no 1º Prêmio Esteio de Estudos Científicos, criado para estimular o conhecimento científico sobre a cidade.

O atual prefeito de Esteio, Leonardo Pascoal, que está no cargo desde 2017, afirma que a questão do escoamento foi prioridade desde o início do seu mandato, quando instituiu um plano de manejo das águas pluviais, estabelecendo obras a serem feitas. “Fizemos investimentos superiores a R$ 20 milhões em obras de drenagem, especialmente microdrenagem.” Os focos principais são os arroios Sapucaia e Esteio, além da área de várzea próximo ao Parque Assis Brasil. Segundo ele, também foi feito um sistema permanente de manutenção preventiva, com limpeza de bocas de lobo e de canais e arroios, inclusive, com um intensivo de 45 dias iniciado no final de maio. O gestor ainda destaca que duas bacias de reservação interna serão inauguradas no município, uma em junho e outra até agosto. “Conseguimos reter um pouco a água e depois ir contribuindo para o arroio de uma forma mais tranquila, sem causar extravase que possa chegar às casas”, explicou o prefeito.

Também banhado pelo rio dos Sinos e afluentes, como os arroios Schmidt, Peri e Quatro Colônias, Campo Bom registrou em 2015 uma das maiores enchentes desde 1965. Em julho daquele ano, o Sinos superou os 7 metros no marcador do município e, no decreto de emergência, a prefeitura mencionou 150 famílias total ou parcialmente desabrigadas e aproximadamente 1.800 pessoas que perderam bens. Ao contrário de Alvorada e Esteio, Campo Bom é um dos municípios que precisaram decretar emergência há 8 anos e, agora, segue apontado como localidade com pontos de risco, conforme a Defesa Civil Estadual.

A atual gestão municipal garante que realiza ações para evitar que os casos se repitam, ainda que não detalhe quais iniciativas estão sendo tomadas. “A Prefeitura de Campo Bom e a Defesa Civil realizam trabalho permanente de monitoramento dos alertas de enchentes”, diz o Secretário de Meio Ambiente, João Flávio da Rosa. Segundo o prefeito, Luciano Orsi, a prefeitura acompanha alterações relacionadas ao El Niño. “Seguimos alertas e fortalecendo as nossas equipes para atender e intervir em possíveis ocorrências, se for necessário, caso o fenômeno atinja o nosso Estado”. 

Três decretos em apenas um ano

A Fronteira-Oeste foi afetada pela cheia de rios como o Uruguai, que ultrapassou os 8,5 metros, considerado marco de inundação, conforme o Serviço Geológico do Brasil (CPRM). Uruguaiana chegou a decretar situação de emergência três vezes naquele ano. A primeira foi em janeiro, por enxurradas. No meio do ano, quando as chuvas afetaram também outros pontos do Estado, novamente o município pediu auxílio federal, desta vez por inundações. Esse também foi o motivo do decreto de dezembro. Agora, a cidade aparece na lista de pontos de risco da Defesa Civil Estadual.

A prefeitura afirmou, em nota, que acompanha as projeções de El Niño, por meio da Defesa Civil e da Secretaria de Infraestrutura Urbana e Rural. Conforme o Executivo municipal, “a Defesa Civil está sendo reestruturada com a aquisição de novos equipamentos e adquirindo material para distribuição emergencial às famílias afetadas”. Ainda segundo o texto, “a Secretaria de Infraestrutura Urbana e Rural já intensificou as ações de limpeza de valas de forma preventiva e vem orientando os moradores sobre a importância do descarte correto do lixo”.

Lagoa dos Patos

O Super El Niño de 2015 castigou também o sul do Estado. Pelotas decretou situação de emergência em outubro daquele ano. A cheia da Lagoa dos Patos, que passou de 2 metros, provocou inundações desalojando centenas de pessoas no município. Entre 15 de setembro e 15 de outubro, o acumulado chegou a 500 milímetros na cidade, cinco vezes mais que a média histórica do período.

Em 2023, o município não parece estar mais seguro para enfrentar eventos naturais. Pelotas ainda aparece com pontos de risco para inundação no levantamento divulgado pela Defesa Civil gaúcha. 

Em nota, a Secretaria de Serviços Urbanos e Infraestrutura (Ssui) do município diz que trabalha preventivamente na cidade “para que as vias não pavimentadas que possuem valetas estejam preparadas para a chegada do El Niño”. O Serviço de Saneamento de Pelotas (Sanep) intensificou o mutirão de limpeza dos canais de macrodrenagem da cidade, também segundo o texto. Em junho, o município realiza ainda mutirão de limpeza de bueiros e bocas de lobo em período estendido. Além disso, a prefeitura informa que “as sete casas de bombas, responsáveis por escoar a água da chuva que chega através dos canais, recebem melhorias e reformas na estrutura para assegurar o pleno funcionamento do sistema”.

 

 

 

 

 

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DESDE 1º DE OUTUBRO 1895