Em busca de abrigo na pandemia do coronavírus

Em busca de abrigo na pandemia do coronavírus

Em tempos de necessidade de isolamento, a luta diária de moradores de rua pela sobrevivência é ainda mais difícil

Por
Eduardo Amaral e Gabriel Guedes

Foto: Alina Souza

Desde que medidas de combate ao novo coronavírus foram adotadas pelo governo municipal, as ruas de Porto Alegre gradativamente se esvaziaram. Do caos natural do Centro em dias normais, o que se vê nos últimos tempos é uma cidade mais silenciosa, com pouquíssimas pessoas circulando. Enquanto a maior parte da população que costumava transitar nas ruas centrais vai se recolhendo às suas casas, uma população que diariamente é praticamente invisível começa a ganhar protagonismo, aqueles que não têm um lar para retornar.

A Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) estima que 2,6 mil cidadãos vivem nas ruas da Capital, de onde tiram seu sustento e fazem moradias improvisadas. Em meio à pandemia de Covid-19, este grupo humano fica ainda mais fragilizado, exposto à doença e com cada vez menos recursos para se alimentar. Afora isso, a falta de informação, aliada à escassez de recursos, torna-se impeditivo para que essas pessoas tomem as precauções para evitar o contágio. No entanto, apesar deste deserto urbano, há gente atuando para que elas não enfrentem a pandemia totalmente desprotegidas e também para que aquelas que não têm mais de onde tirar o sustento vinha das ruas.

Sentado ao lado de um mercado na rua dos Andradas, no Centro da cidade, Elvis Adalberto Santana de Souza, 39 anos, monta uma barraca com exemplares do jornal Boca de Rua, produzido pelos próprios moradores de rua. A venda do jornal é uma das formas que ele encontra para amealhar alguns trocados, além das doações que recebe. Porém, desde que lojas foram fechadas e parte dos trabalhadores que atuam no Centro se recolheu às suas residências para atuar em home office, ele viu o dinheiro esvair e diminuírem as doações. “Tá ruim para ganhar nosso ganha-pão, o movimento está muito fraco.” Com as poucas pessoas que ainda circulam, Elvis precisa enfrentar outro problema, o distanciamento. “Eles ficam longe, não chegam perto da gente.” Na rua desde os 9 anos, ele também parece pouco preocupado com os impactos do coronavírus em sua vida. “Eu já passei por muita coisa, não vai ser esse vírus que vai me derrubar.”

Os limites das políticas públicas voltadas à população de rua foram sentidos na pele por quem lida diretamente com o tema. Presidente da Fasc, Vera Ponzio diz que aos poucos estão sendo abertas vagas em albergues e abrigos para garantir o isolamento social, ação considerada a mais efetiva para reduzir a curva de contaminação do novo coronavírus. Uma das primeiras ações foi tomada em 20 de março, quando o prefeito Nelson Marchezan Júnior requisitou via decreto o imóvel Organização Irmandade Nossa Senhora dos Navegantes. O local abrigava o Albergue Felipe Diehl, mas a administração foi trocada para a organização Renascer.

“Tínhamos o serviço paralisado que estava atendendo um número reduzido de casos”, diz Vera, explicando que os atendimentos estavam sendo feitos abaixo do contratualizado. O primeiro dia de funcionamento sob a nova gestão aconteceu no sábado, dia 21, um dia após o decreto assinado por Marchezan. O atendimento inicial começou tímido, com apenas quatro pessoas, mas a curva cresceu rapidamente, pulando para 80 no dia seguinte. Na noite da terça-feira, dia 23, 134 pessoas procuraram o albergue. A procura crescente é vista como um dado positivo por Vera. Segundo ele, o fato de ter lotação em dias quentes é sinal que as pessoas estão preocupadas com o coronavírus.

Imóvel disponibilizado pelo município para a população de rua teve lotação. Foto: Fabiano do Amaral

Mas esta ação também mostra como as autoridades foram pegas de surpresa pela necessidade de um atendimento diferenciado à população de rua. Originalmente, o local teria capacidade para receber até 205 pessoas no sistema de albergagem, quando elas apenas dormem. Essa capacidade era utilizada durante o inverno, época de maior busca. Para evitar aglomeração nos quartos, a Fasc inicialmente divulgou que reduziria a capacidade. O Renascer passou a funcionar como um abrigo, onde as pessoas passam o dia e não apenas pernoitam, no dia 6 de abril, passando a receber 80 pessoas por dia.

Outros espaços foram preparados para receber mais pessoas. No total, houve ampliação de 228 para 383 no número de vagas em abrigos. Outros locais também foram modificados, entre eles os Centros de Referência Especializados para População (Centros Pops), que passaram de 220 para 280 atendimentos diários e que, em alguns casos, oferecem banho e alimentação. Outra medida adotada pela Fasc foi a ampliação do auxílio-moradia, que passou de 60 atendimentos para 320. Quanto aos recursos disponibilizados, a Fasc diz que já houve injeção de dinheiro e que mais deve ser repassado nas próximas semanas, mas os valores ainda não são precisos. Vera afirma que já há previsão de aporte de recursos destinados à Fasc e que o dinheiro vai chegando de acordo com o andamento das etapas.

Em março, em uma outra ação, o Sport Club Internacional anunciou que colocou à disposição das autoridades municipais e estaduais suas estruturas para a luta contra a pandemia do novo coronavírus. De acordo com o vice-presidente de Administração do Inter, Victor Grunberg, o clube cedeu o Gigantinho e o Centro de Eventos à Secretaria de Justiça e Cidadania do Rio Grande do Sul. Por meio da assessoria de imprensa, o órgão informou que ainda não há previsão de quando pretendem utilizar os espaços.

Infectologista da Santa Casa de Porto Alegre, Ronaldo Hallal avalia que os problemas enfrentados durante a crise são consequência das políticas adotadas antes da pandemia de Covid-19. “Vivemos as consequências de redução do financiamento das políticas sociais e do sucateamento do SUS, com toda consequência que a política de Estado mínimo traz.” Para ele, a crise do Covid-19 trouxe para a superfície problemas que já existiam nas ações assistenciais. “A pandemia mostra o fracasso dessas políticas que vêm sendo apresentadas como consensuais, de diminuir o investimento em saúde e na distribuição de renda. A situação se torna difícil quando se precisa responder a uma situação limite.”

Redução de danos

Aliado ao problema social de ter pessoas vivendo nas ruas em tempos de pandemia, há um fator adicional, a transmissão do vírus. Mais expostos, com a saúde vulnerável e sem condições adequadas de higiene, estes moradores podem ser infectados mais facilmente, ficando doentes e também tornando-se propagadores do novo coronavírus. Segundo Vera, as equipes da Fasc têm trabalhado no convencimento para que eles saiam das ruas. “A abordagem segue sendo feita, nossas equipes tentam convencê-los a ir para os abrigos e albergues.” Entretanto, a busca por vezes esbarra na vontade da população de rua, que prefere não ir a esses lugares em razão das regras rígidas relacionadas a horários, consumo de álcool e presença de animais de estimação. É o caso de Elvis, que diz preferir ficar na rua do que tentar a albergagem. “No abrigo tenho que acordar às 6h e 7h já estou na rua, fiquei em um deles só na época que namorava.”

Um afrouxamento das regras é estudado, mas Vera diz que a questão é complicada, pois é necessário garantir a integridade física de todos os albergados. “Não podemos reduzir totalmente as exigências sob risco de que as demais pessoas sejam colocadas em risco.” Vera diz que o trabalho de conscientização preza pela ideia de sensibilizar através da criação de um laço, até mesmo afetivo, entre os membros da equipe e a população. “As equipes trabalham no sentido de criar vínculo e dar acolhimento e tentamos sensibilizar as pessoas para se protegerem.”

O infectologista Hallal defende alternativas paliativas para este caso, que possam garantir a higiene mínima a esta população. “É preciso prover de recursos, emergencialmente de água, sabão, água sanitária para poder fazer desinfecção do ambiente, é preciso provê-las de álcool gel, de recursos para que possam evitar o contágio”, sugere Hallal. Essas ações ainda não foram tomadas pela Fasc, que, por enquanto, investe mais energia tentando convencer as pessoas a deixarem as ruas, considerada uma medida mais efetiva para garantir o isolamento recomendado.

Pandemia escancara algumas deficiências da assistência para moradores de rua. Foto: Alina Souza

Outra medida apontada por Hallal como eficaz para impedir a proliferação do vírus é a testagem da população de rua. De acordo com a Fasc, os testes são feitos em pessoas que apresentem os sintomas, sendo que os idosos sintomáticos são isolados. Até quinta-feira, seis pessoas que vivem em situação de rua foram testadas, dos quais três foram descartados e as demais aguardavam os resultados do exame. Vera diz que as medidas da Fasc são tomadas de acordo com os acontecimentos e as avaliações são feitas diariamente. De acordo com ela, a pandemia obriga as autoridades a criarem tudo muito rápido, tanto estruturas físicas quanto estratégias de ação.

Hallal espera que o momento funcione para que se repense as políticas sociais dos governos em todos os níveis. “É preciso que se faça uma reflexão, que essa situação nos leve a modificar as prioridades dos governantes na forma de fazer a gestão pública. Que garanta a dignidade da população e não o capital financeiro.”

Enquanto a pandemia não é superada, Elvis segue nas ruas de Porto Alegre em busca do sustento e reclama da dificuldade especial de conseguir comida. “Não estão doando mais, passei o dia inteiro aqui e só fui comer à noite.” Dinheiro ele diz que já foi mais fácil, mas no dia que a reportagem falou com ele a situação era diferente. “Passei o dia inteiro para conseguir R$ 12,00, mas dinheiro é o que menos me preocupa, se eu tenho comida está bom.” Até o isolamento provocado pelo coronavírus passar, as medidas são paliativas e emergenciais. Após a crise resta saber como a sociedade vai decidir lidar com quem está em situação mais vulnerável até a próxima crise.

Questionado se sabia como se prevenir, Elvis se mostrou cético. “Até agora não ouvi falar de morador de rua que pegou isso”, afirma. Ele ainda mostra pouco conhecimento a respeito do funcionamento dos serviços de proteção social. “Acho que a Fasc está até fechada.”

Voluntários nas ruas

O grupo Enfermagem na Rua estreou em março, juntamente com o surgimento dos primeiros casos de Covid-19 em Porto Alegre. A iniciativa, idealizada pelo técnico em enfermagem Jean Luca Gross Gomes, 23 anos, para ajudar moradores de rua da Capital com cuidados básicos de saúde, teve que se voltar quase que exclusivamente ao combate ao novo coronavírus. “Eles não sabem o que é a Covid. Não têm noção do que está acontecendo. Preparamos kits de higiene e estamos com máscaras, luvas e álcool em gel”, conta. Mas o trabalho não se limita ao novo coronavírus. Os sem-teto atendidos também recebem outros cuidados, como curativos e uma anamnese, na tentativa de identificar problemas de saúde. “Muitos moradores têm lesões sérias. Teve um senhor com uma faixa bem suja, com muitas lesões nos pés”, relata.

Gomes não tem um ano de formado. O curso, concluído em julho de 2019, lhe possibilitou conseguir um trabalho na área. Sua mãe, técnica de enfermagem, lhe serviu de inspiração. Por muito tempo, ela atuou como voluntária em um projeto em Viamão. “Quando trabalhava no Hospital Vila Nova, atendia muita gente de rua. Gente em várias situações. Eles não gostavam de ficar no hospital porque outros recebiam visitas e eles não”, conta. Foi quando teve a ideia e começou a articular um grupo. “Tenho muitos amigos da área, conversei com alguns e falei com uma amiga, enfermeira na Santa Casa, que me deu uma ajuda na seleção de parceiros. Somos 34 voluntários”, afirma. Os integrantes são profissionais formados ou estudantes que estejam na reta final do curso de enfermagem ou técnico. Das exigências para participar, a principal é a disposição em ajudar os necessitados. “Que tenham disponibilidade para duas ações no mês e que tenham seus materiais no bolso, como estetoscópio e oxímetro”, lista.

Grupo Enfermagem na Rua faz trabalho voluntário com moradores de rua. Foto: Fabiano do Amaral

As ações do grupo sempre ocorrem no centro de Porto Alegre, lugares que, segundo o idealizador, há a maior concentração de moradores de rua. “Mas pretendemos expandir para outros bairros no futuro.” As atividade também não se restringe ao contato com quem precisa de ajuda. “Pedimos à prefeitura, por exemplo, para liberar torneiras no Centro de Porto Alegre para que as pessoas façam sua higiene”, sublinha. Na abordagem aos moradores, Gomes faz questão de ressaltar o respeito pelos que têm como teto o céu. “A gente vê o descaso com estas pessoas. Alguns só querem conversar. Se todo mundo ajudar um pouco, será bastante. Respeitamos eles, não julgamos”, assegura. “Sinceramente não achei que ia dar tudo tão certo. É um sonho que estou realizando por meio de outras pessoas. E algo que não conseguiria fazer sozinho”, conclui.

Na zona norte da Capital, a bacharel em Direito e analista de cobrança Cristina Cunha de Oliveira Ferrazza, 35 anos, e o marido, André Ferrazza, 42 anos, que é supervisor de manutenção, tocam o grupo Amigos do Bem. O projeto existe há um ano e meio distribuindo alimentos a famílias carentes do bairro Humaitá e Vila Farrapos. Mais do que nunca, a força dos Ferrazza será necessária. Com várias famílias que viviam de bicos e outras com homens e mulheres perdendo seus empregos em decorrência da Covid-19, a meta é intensificar os trabalhos durante a crise. Para que muitos deles não percam o lar ou até tenham que viver na rua. “Inclusive eu faço parte do grupo de risco (da doença), mas eu estou lutando por essas pessoas que são muito mais frágeis que eu. Graças a Deus tenho um lar e trabalho. Meu marido também trabalha. Com a Covid, é possível sim intensificarmos os trabalhos e abranger mais famílias”, acredita Cristina.

Albergues

Rua João Simplício, 38 - Bairro Vila Jardim

Albergue Acolher 2 - Rua 7 de Abril, 315 - Bairro Floresta

Albergue Dias da Cruz - Avenida Azenha, 366 - Bairro Azenha

Organização Irmandade Nossa Senhora dos Navegantes - Renascer - Praça dos Navegantes, 41 - Bairro Navegantes

*atendimento das 19h às 7h

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895