Especial 7 de Setembro: um olhar independente, 200 anos depois

Especial 7 de Setembro: um olhar independente, 200 anos depois

Bicentenário é comemorado em uma era de revisitação da História para desmistificar as imagens que representam grito às margens do Ipiranga

Artista Pedro Américo buscou tornar cena às margens do Ipiranga mais ‘inspiradora’

Por
Christian Bueller

Havia de ser quatro horas da tarde, mais ou menos. Vinha o príncipe na frente. Diante da guarda, que descrevia um semicírculo, estacou seu animal e, de espada desembainhada, bradou: ‘Amigos! Estão, para sempre, quebrados os laços que nos ligavam ao governo português. E nos topes que nos indicam como súditos daquela nação, convido-vos a fazerdes assim’. E, arrancando do chapéu que ali trazia a fita azul e branca, e arrojou ao chão, sendo nisso acompanhado por toda a guarda (…). ‘E, viva o Brasil, livre e independente!’, gritou Dom Pedro I. Desembainhando, também, nossas espadas, respondemos: ‘Viva o Brasil, livre e independente! Viva Dom Pedro I, seu defensor perpétuo’. E bradou o Príncipe: ‘Será nossa divisa, de ora em diante! Independência ou morte’”.

O relato foi feito pelo coronel Manoel Marcondes de Mello, o Barão de Pindamonhangaba, que esteve presente ao ato, em 7 de setembro de 1822, que marcou a ruptura entre Brasil e Portugal, às margens do riacho Ipiranga, em São Paulo. A descrição foi colhida pelo seu genro, historiador João Marcondes e apresentada apenas em 1914, no Primeiro Congresso de História Nacional.

Na interpretação oficial, D. Pedro I, rodeado por soldados vestidos em seus uniformes de gala, aparece como o príncipe regente que rompeu com a dominação de Portugal, erguendo sua espada e decretando a independência do Brasil a partir daquela data. Dois séculos depois, a Independência do Brasil como a conhecemos nos livros didáticos passa por um processo de revisão histórica. Uma corrente de especialistas, desde os anos 1970, chamada de Nova História, capitaneados pelos franceses Jacques Le Goff e Pierre Nora, busca desvendar a maior fidelidade possível do ocorrido, derrubando alguns mitos que eram sinônimo de verdade até então. “Há muitos ‘fakes’ nessa história, né? Recheada de feitos que não se sustentam mais. A história que vem sendo pesquisada recentemente é mais abrangente e menos literária, trabalha mais em cima de fatos e de exemplos”, conta o jornalista Nelson Adams Filho, autor do livro “A Independência do Brasil pelas províncias de Santa Catarina e São Pedro do Sul”.

Segundo Adams, a mitificação da Independência do Brasil é calcada na criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em outubro de 1838, para publicar e arquivar os documentos relevantes sobre a trajetória do país, com expressa ajuda financeira de Dom Pedro II, filho do príncipe tido como protagonista da façanha. “Era uma forma de enaltecer o que o pai dele fez. Há uma frase do historiador Lucien Febvre que diz: ‘a história é filha do seu tempo’, ou seja, naquele momento, precisavam de grandes homens para fazer grandes feitos. Como o Brasil estava se construindo como nação, era preciso construir esses mitos para unir todo o país em torno de uma história”, explica. 

LICENÇAS POÉTICAS

É o caso do quadro “Independência ou Morte”, também conhecido como “O Grito do Ipiranga”, do pintor paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Melo. A obra, referência para a propagação do momento histórico, foi concebida em 1888, 66 anos depois da Independência do Brasil. O artista, então com 45 anos e de carreira renomada, retratou uma cena gloriosa e solene para Dom Pedro I. E, claramente, buscou inspiração no quadro do pintor francês Jean Louis Ernest Meissonier, que retratava Napoleão Bonaparte na Batalha de Friedland (“1807, Friedland”). O quadro francês foi pintado em 1875 e a do brasileiro, apresentada na Academia Real de Belas Artes de Florença, na Itália, 13 anos depois. Há licenças poéticas na obra, que mede 4 metros de altura por 7 de largura, inclusive o fato de substituir as mulas por cavalos de raça. “Dom Pedro I não estava com espada e estava sentado em uma besta gateada, pois transitava na Calçada do Lorena, que ligava São Paulo a Santos, que era dificílimo de transitar por ali a cavalo. Aliás, cavalos não andavam por ali. Tinha que ser um animal de carga como uma mula ou uma besta”.

A coautora do livro “O Brado do Ipiranga”, historiadora Cecília Helena de Salles, corrobora as informações colhidas por Adams. “Foi uma cena produzida pela imaginação do pintor. O próprio Pedro Américo reconheceu que seria impossível fazer uma relação entre a pintura e o episódio. Não apenas porque havia uma grande diferença de tempo, já que a tela foi pintada em 1888, e a Independência ocorreu em 1822, mas também porque não seria possível reconstituir minuciosamente o acontecido, faltavam relatos”, contou a professora. Os guardas não estavam usando uma farda tão pomposa. Os Dragões da Independência só adotaram o uniforme da pintura mais de 100 anos depois. Sua comitiva também era de 14 pessoas. 

Ainda assim, o retrato oficial passou a ser este, como se tivesse sido feito no momento exato, às margens do Ipiranga, em 7 de setembro de 1822. “É uma obra de arte, mas como História, não foi daquele jeito. Havia uma disputa de beleza entre Rio de Janeiro, que tinha a Corte e o poder, e São Paulo, que já era uma potência econômica, então, tinha que ter essa participação na história do Ipiranga”, ressalta Adams. Pelo trabalho, Pedro Américo ganhou 30 contos de réis do Império brasileiro. Sinal de que sua idealização, gloriosa e solene, agradou em cheio o Imperador Dom Pedro II, que, junto do governo de São Paulo, encomendou a obra.

O original

O Museu do Ipiranga, em São Paulo, reabriu ontem. É lá que está abrigado o quadro original de Pedro Américo, cuja obra testemunhou a transformação do museu. Originalmente montado dentro do prédio, tem dimensões superiores a qualquer porta ou janela do Salão Nobre, razão pela qual ficou impossibilitado de ser retirado do local. Em um processo bastante singular, o restauro da peça foi realizado simultaneamente à reforma. Para protegê-la, um tecido especial foi instalado, além de um anteparo metálico que garante um afastamento de 1,5 m. O Correio do Povo registrou este processo no ano passado. Para relembrar, clique aqui.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895