Estiagem atinge todas as regiões do Rio Grande do Sul

Estiagem atinge todas as regiões do Rio Grande do Sul

Em questionário respondido por 121 municípios ao Correio do Povo, metade deles relata que esta é a pior seca, em termos de prejuízos econômicos, já observada em suas localidades

Por
Felipe Faleiro

Um total de 121 municípios do Rio Grande do Sul declarou ao Correio do Povo um prejuízo superior a R$ 6,2 bilhões em perdas econômicas em todos os segmentos com a estiagem na temporada 2022/2023. As informações foram encaminhadas pelos próprios entes públicos, por meio de respostas a um formulário encaminhado pelo veículo a gabinetes de prefeitos, secretarias municipais, escritórios da Emater, assessorias de Comunicação, entre outros. São localidades cujos moradores, de maneira geral, lidam diretamente com a seca e, por isso, estão mais familiarizados com as realidades locais.

As informações disponíveis foram compiladas em um mapa e estratificadas em diversos levantamentos estatísticos. As cidades em questão, além de responderem a perguntas diretas, também foram livres para relatar situações específicas de seu município que julgassem convenientes ou importantes. O resultado permite realizar um recorte de parte significativa do Estado, que inclui os quatro municípios mais populosos, Porto Alegre, Caxias do Sul, Canoas e Pelotas, além de 86,8 mil quilômetros quadrados de área geográfica, equivalente a quase um terço do total gaúcho, e quase 5,7 milhões de habitantes, ou 52% da população do Rio Grande do Sul.

O Correio do Povo encaminhou e-mails aos 497 municípios do RS convidando ao preenchimento do formulário, mantendo a pesquisa aberta durante pouco mais de um mês, do final de janeiro ao início de março. As cidades que efetivamente responderam ao convite são de todas as regiões gaúchas e de grande parte dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes), com destaque para a Região Metropolitana de Porto Alegre, que registrou mais respostas em relação aos demais.

O levantamento iniciou algumas semanas antes de o governo do Estado lançar, ou mesmo anunciar, em cerimônia no Palácio Piratini, em Porto Alegre, com a presença do governador Eduardo Leite, o chamado Monitor da Estiagem, ferramenta interativa hoje disponível on-line com informações mais amplas sobre a seca. De qualquer forma, mesmo que o Monitor também traga informações desagregadas a respeito dos municípios, apurados pela Defesa Civil Estadual, os relatos das cidades são o diferencial da ferramenta desenvolvida pelo Correio do Povo.

As respostas ao formulário permitem uma desagregação por região do Rio Grande do Sul, assim como uma multiplicidade de relatos que permite montar um raio-X de resultados impactantes a respeito das perdas atuais em diferentes localidades. Municípios da Campanha, Fronteira-Oeste e Missões responderam com valores significativos. Hulha Negra, por exemplo, vizinho a Bagé, disse estimar R$ 90 milhões em prejuízos.

Planos de governo

No último dia 23 de fevereiro, estiveram no município os ministros do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), Paulo Teixeira, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), Wellington Dias, e da Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República, Paulo Pimenta, além do governador Eduardo Leite. Na ocasião, os ministros anunciaram o repasse de R$ 430 milhões para mitigar os efeitos da seca nas cidades gaúchas afetadas.

O governo federal também recentemente instituiu um Grupo de Trabalho Interministerial para avaliar os danos causados pela seca e propor medidas a fim de mitigar seus impactos. Enquanto isso, o governo do Estado relatou, na mesma apresentação em que exibiu pela primeira vez o Monitor da Estiagem que, em 2022, que o Valor Adicionado Bruto (VAB) da agropecuária caiu 50,5% no RS, impactando no PIB estadual, que registrou queda de 6,6%, enquanto a economia nacional cresceu 3,2%.

Um dos grandes objetivos do formulário foi entender como os municípios estão lidando com mais um ano de estiagem, que segue de forma recorrente desde o final do ano passado. Outro deles foi procurar apurar o volume de perdas econômicas município a município e o que está sendo feito para reduzir os danos consequentes. A fim de diminuir o risco de informações desatualizadas, perguntamos às cidades, por exemplo, o quanto elas haviam apurado de prejuízos efetivamente até o momento da resposta e o valor estimado até o final da atual seca. 

Houve 124 respostas, já que pelo menos três municípios responderam às perguntas duas vezes, e, portanto, foram considerados apenas os números mais recentes. Embora a cada município participante haja a atribuição de um responsável pelo preenchimento, os números e dados informados são utilizados nesta reportagem de maneira impessoal, refletindo apenas a realidade da cidade em si conforme a informação cedida espontaneamente e de acordo com as diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). 

Todos os municípios que responderam concordaram em utilizar os números e relatos fornecidos apenas para fins jornalísticos, conforme informado no formulário, e poderiam a qualquer momento ser contatados para caso de esclarecimento. O número de respostas é evidentemente menor do que as 356 cidades gaúchas com decretos ativos de situação de emergência, bem como as 362 que encaminharam solicitações ao Sistema Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID), do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, números referentes à manhã do último dia 13.

Seca é a maior da história para quase metade dos municípios da pesquisa

Nas respostas informadas ao Correio do Povo, 47,9% dos municípios disseram que nunca haviam visto estiagem com tamanhos prejuízos à economia local e 57% do total declarou que não havia sido contemplado com nenhum incentivo estadual ou federal por conta da seca. “Os recursos dos programas governamentais de combate à estiagem, principalmente do governo do Estado, como o Avançar, não chegam aos municípios em tempo necessário para que se tomem as providências que se fazem urgentes”, relata a secretária municipal de Agricultura de São Pedro do Sul, na região central gaúcha, Regina Santarém Hernandes. O município, incluído nos 17,3% que disseram ter recebido valores apenas do governo do Estado, declarou também projetar perdas de mais de R$ 95 milhões até o final da estiagem.

Do final de 2022 até o momento, Regina afirma que foram levados 750 mil litros de água potável para famílias do interior do município em situação de necessidade e mais de 1,4 milhão de litros para dessedentação animal. “Sofremos com estiagens recorrentes desde o final de 2020, o que tem acarretado sérios problemas às culturas, criações e produção de subsistência da agricultura familiar, principalmente pequenas hortas e pomares”, observa a secretária.

“É preciso entender por qual motivo alguns municípios receberam os recursos e outros não, mas certamente são questões técnicas e burocráticas”, afirma o presidente da Comissão de Assuntos Municipais (CAM) da Assembleia Legislativa, deputado Joel Wilhelm (PP). Outras 6,6% das cidades afirmaram ter recebido recursos financeiros somente do governo federal, enquanto somente 5,7% obtiveram de ambos. Quase 10% dos municípios preferiu não responder este questionamento do formulário.

De acordo com Wilhelm, “o assunto é tão sensível e importante” que a Assembleia criou uma Comissão de Representação Externa para tratar especificamente da seca. “Quem está sofrendo com isso quer e precisa de ajuda imediata. Em qualquer situação de desastre natural, o socorro financeiro precisa ser mais ágil", pontua ele, acrescentando que “a CAM irá participar ativamente da Comissão de Representação Externa” e que o esforço conjunto “precisa encontrar respostas definitivas” para que o problema não se repita em períodos de estiagem.

Ao todo, 15 cidades informaram ser abastecidas por empresas públicas municipalizadas, das quais sete não relataram falhas e outras oito sim. Oitenta municípios responderam ser atendidos pela Corsan e, destes, 44, ou 55%, relataram não haver falta de água recorrente. Outros 36, ou 45%, afirmaram ter problemas de abastecimento. Procurada, a companhia afirmou manter o “abastecimento pleno em todas as cidades que atende”, com exceção de “questões pontuais”, e citou o município de Restinga Sêca como exemplo.

No local, “foi executada uma transposição e hoje a barragem já registra nível que afasta riscos”. Ainda conforme a companhia, apenas os municípios de Santiago, Itaara e Canguçu, que não responderam ao formulário, estão em monitoramento. “Para cada um deles, a Corsan está tomando todas as medidas cabíveis para minimizar os efeitos da estiagem e manter a normalidade do abastecimento.” Além destes, houve ausências notáveis no formulário, como o município de Bagé, que, a partir do dia 21, terá ampliação do racionamento para 15 horas diárias, devido à falta de chuvas significativas desde setembro de 2022.

O maior prejuízo estimado até o final da estiagem foi informado por Joia, na região Noroeste. Com população de 7,1 mil habitantes, o município projetou R$ 800 milhões em perdas com a seca, apesar de um PIB de R$ 430 milhões, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou ainda R$ 112 mil por habitante, também liderando este índice. Além dela, Caibaté, Campos Borges e Itacurubi estimaram mais perdas do que o próprio valor da economia local.

Lugares onde a estiagem mais prejudica a população

No ranking do prejuízo per capita, a vice-liderança entre os municípios que responderam ao questionário é de Espumoso, no Alto da Serra do Botucaraí, com R$ 77,5 mil, seguido por Lagoa Vermelha, com R$ 57,9 mil, e Caibaté, com R$ 53,1 mil. O grande destaque de Joia é a agropecuária. Em 2021, ainda conforme o IBGE, os produtores do município plantaram 122,4 mil hectares, principalmente soja, com 81 mil hectares. Naquele ano, a cidade produziu 295,2 mil toneladas do grão. O município decretou situação de emergência ainda em 29 de dezembro de 2022 e, até o final de fevereiro, havia recebido R$ 542,2 mil de recursos federais. 

O prefeito de Joia, Adriano Marangon, afirma não se recordar de outra estiagem com prejuízo tão significativo. “Esta justamente pegou bem na safra de soja, e o pessoal investiu bastante nesta planta. Aqui as pessoas colocam tudo o que precisam para a semente produzir no nível máximo. E acabou faltando a chuva nos momentos principais do crescimento e formação do grão. Neste ano, a expectativa era muito grande, porque o ano passado castigou muito”, afirma ele. Conforme Marangon, “a frustração foi enorme”. “Havia a expectativa de que tivéssemos 50, 60 sacas por hectare, que agora reduziu para dez a 15”, lamentou ele. Em fevereiro, ele esteve em Porto Alegre, onde se reuniu com o tenente-coronel Santiago Soares Dias de Castro, representante da Casa Militar, para debater o assunto. 

Ainda segundo Marangon, a administração está investindo na melhoria de redes hídricas, novos reservatórios de água e bebedouros para o gado. “Porém, com o longo período sem significativo volume de chuvas, os bebedouros abertos não estão acumulando água”, afirmou o prefeito. Por isso, os caminhões-pipa estão circulando pelo Interior levando água para consumo humano e, em algumas propriedades, também para os animais. O município relatou no formulário que não é atendido por rede de água da Corsan ou autarquia específica, mas sim pela própria prefeitura.

No interior de Joia, um dos produtores duramente afetados é Jailson Pillat, que cultiva soja em sua propriedade de 700 hectares. Ele estima que 85% da safra está perdida. “A seca nos atingiu em cheio. Mas o pior é mesmo são os animais passando sede, não tem mais pasto para alimentar o gado. Praticamente não há mais cultivo. Tem muita gente que está buscando água nos rios próximos, comprando caixas d’água, para tentar reduzir os efeitos”, pontua.

Jailson relata não ter investido em irrigação por ter adquirido uma nova propriedade recentemente. “O que eu iria ter de lucro acabou comprometido com o pagamento das parcelas”. Afirma também que as duas secas anteriores trouxeram danos inestimáveis ao cultivo do grão. 

Em seguida no relato dos prejuízos em valores, aparece Júlio de Castilhos, na região central, com perdas superiores a R$ 380 milhões até o momento do preenchimento das informações. A cidade de 18,1 mil habitantes encaminhou decreto de situação de emergência em 14 de dezembro de 2022 e recebeu do governo federal, por meio do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, em fevereiro, R$ 511,8 mil. O município é atendido pela Corsan e a prefeitura relatou não ter estimativa de perdas até o final da atual estiagem.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895