Estruturas que permitem pensar no futuro

Estruturas que permitem pensar no futuro

Para muitos graduandos, as casas de estudante da Universidade

Por
Felipe Samuel

Ingressar em uma universidade federal representa um desafio para milhares de brasileiros. E, ao mesmo tempo, a possibilidade de mudar de vida. Para os estudantes de famílias de baixa renda, o acesso à graduação envolve outros obstáculos, como custear moradia, alimentação e transporte. Em alguns casos, por falta de condições financeiras, uma parte dos jovens desiste do sonho de cursar uma faculdade. Para tentar mudar esse cenário, desde 1971 a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) oferece a estrutura da Casa do Estudante Universitário (CEU) na Capital.

As vagas são destinadas a alunos em situação de vulnerabilidade social aprovados na Ufrgs. São três campi: Centro, Saúde e Vale, que oferecem um total de 542 vagas de moradia. 

Sem dinheiro para se sustentar em Porto Alegre, Jackeline de Aguiar, 24, viu na CEU a oportunidade de dar continuidade aos estudos na faculdade de Nutrição. Após garantir um dormitório na CEU Campus Central, localizada na avenida João Pessoa, Jackeline deixou a casa da família em Sapiranga, na região do Vale do Sinos, para seguir o sonho da graduação.

Foram cinco anos morando no prédio oferecido pela Ufrgs. Depois de passar pela seleção e conquistar uma vaga, ela ingressou na CEU em 2018. “Se não fosse pela Casa do Estudante, não teria me formado. Não teria condições financeiras para pagar um aluguel em Porto Alegre, nem transporte, nem nada. Seria fora da minha realidade poder me formar na melhor universidade federal do Brasil. Isso não seria possível se não fosse ter esse espaço, que foi suficiente para os meus estudos e para o meu descanso”, afirma. No final do ano passado, ela concluiu a graduação.

A insistência e o desejo em ingressar na faculdade foram determinantes para a jovem seguir os estudos. Mesmo aprovada em primeiro lugar pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), ela deixou de fazer a matrícula. “Não tinha restaurante universitário e não tinha Casa do Estudante. Então, eu desisti de um sonho. Cinco meses depois, a Ufrgs me chamou na quarta chamada do listão. E daí eu vim porque tinha a estrutura”, lembra, acrescentando que, ao assegurar um dormitório na CEU, o estudante tem direito a três refeições diárias: café, almoço e janta.

Na entrada do prédio, o fluxo intenso de moradores chama atenção. E a maioria se conhece e se cumprimenta. Para ingressar, é preciso identificar-se na portaria, onde é feito um cadastro. Os laços de amizades firmados durante o período de estudos reforçam a importância da moradia estudantil. “Aqui no 8º andar, a gente se dá muito bem, tem muito amigo. Lembro quando tive Covid e meus amigos iam à feira, ao mercado e deixavam tudo na minha porta, me ajudavam”, recorda.

Em época de provas, especialmente no final de semestre, é comum a presença de moradores com computadores em uma mesa no corredor do prédio. “Um passa o café para o outro, traz uma comida e todo mundo está junto nesse momento difícil. Criei uma rede de amigos que considero minha família. Na minha formatura, minha mãe estava junto e eu falei para ela ‘tu achavas que eu estava sozinha em Porto Alegre, mas todo mundo que está nessa mesa é minha família’. Todo mundo chorou.” Mas a rotina também revela problemas comuns nas relações sociais. A falta de cuidado de alguns moradores no cadastro de convidados para acesso ao prédio é um dos pontos críticos. 

“Tem gente que acha que só porque fez o cadastro pode usar esse prédio como se ele fosse de uso público, mas ele é um prédio coletivo de moradores. É uma casa, então isso também é um controle”, observa. Em geral, cada andar tem suas regras de convívio, com um representante de cada andar. “A gente faz ata, faz reunião. Então é para ser mais organizado possível, mas lembrando que coletivo é um coletivo, tem pessoas que vão respeitar e pessoas que não vão respeitar”, frisa.

Moradores relatam fortalecimento de amizades e auxílio recíproco

Com diploma na mão e independência financeira, há um mês Jackeline fez sua mudança para um apartamento no bairro Santana, onde vai dividir o aluguel de R$ 1,3 mil com uma amiga. “Essa ruptura estou tratando na terapia, porque sou uma pessoa muito sentimental. Fiz grandes amigos aqui, a gente passou muita barra junto, uma pandemia junto, a gente se ajudou em momentos muito difíceis. Então, eu estou sofrendo e com muita saudade”, afirma. “Consegui alugar um apartamento sozinha, paguei as minhas contas esse mês sozinha. Eu chorei muito”, destaca Jackeline.

Ela afirma que a mudança é um choque de realidade. “Aqui é uma muvuca de gente o tempo todo, não tem solidão”, completa. Mesmo com a mudança, quis o destino que a nova casa trouxesse lembranças da CEU. Com problemas na rede elétrica do apartamento, ela chamou um eletricista. E por coincidência, o profissional contratado lembrou que havia participado de um movimento no final da década de 1970 que reivindicava o direito à assistência estudantil às mulheres, algo que só foi conquistado em 1983.

“Ele morou aqui na casa da gente em 1977 e organizou a invasão feminina da CEU. Me deu os jornais que ele mesmo escreveu, com poemas e tudo mais, com os alunos da casa que na época só podia morar homens. Qual a probabilidade de eu acabar de sair da CEU e ter um curto elétrico na minha casa e o cara falar que ele morava lá e começou o movimento que permitiu que eu morasse na Casa do Estudante? A vida é engraçada às vezes e isso me deixa muito emocionada, porque eu levo essa simbologia a sério”, sustenta.

Jackeline faz residência em saúde coletiva na Ufrgs e trabalha em dois postos de saúde com Sistema Único de Saúde (SUS). “São coisas que eu amo. Não imaginava que eu iria estar aqui hoje, ganhando uma bolsa de um valor muito superior ao meu núcleo familiar”, destaca, lembrando que viveu no prédio por cinco anos ganhando R$ 400,00 por mês. “Me sustentei só com R$ 400,00 por mês, porque graças a Deus eu não paguei aluguel, não paguei água, não paguei a Internet e não paguei restaurante universitário, que para quem mora na casa custa zero”, ressalta.

A profissional da Saúde valoriza as coisas básicas oferecidas pela casa. “Comer, tomar um banho e dormir eu tinha, Internet para estudar eu tinha. Pode não ser a melhor Internet de todas, mas deu para o gasto, conseguia fazer as minhas coisas, me formei. Posso ter demorado um pouco mais porque teve uma pandemia no meio do caminho e algumas intercorrências, mas eu consegui”, salienta. 
Estudante de Fonoaudiologia, Brenda Barros Dias, 23 anos, reside na CEU há um ano e meio. Natural de Cachoeirinha, na Região Metropolitana, ela buscou informações junto à Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE) e conseguiu uma vaga na casa na segunda tentativa, após ter tentado ingresso pela primeira vez em 2019.

“Estou no último ano do curso graças ao auxílio estudantil, à Prae, que sou muito grata. A casa tem seus defeitos, sabemos que não é um hotel cinco estrelas, mas há muita gente atenciosa, com vontade de ajudar os outros. O pessoal se ajuda bastante”, relata Brenda. A moradia no Centro de Porto Alegre facilitou o deslocamento até Montenegro, no Vale do Caí, onde Brenda fez estágio obrigatório não remunerado. “Se estivesse morando em Cachoeirinha, não conseguiria fazer. Consegui realizar o estágio obrigatório para finalizar o curso”, explica.

Apesar de reconhecer a importância da CEU, ela afirma que o prédio sofre com a falta de manutenção. Os moradores também relatam outros problemas. “Aconteceu furto de bicicletas. Há pouco tempo houve um caso em que a bicicleta não foi encontrada”, afirma. Para evitar novos furtos, os corredores contam com bicicletários, onde é comum enxergar uma fileira de bikes com cadeados. “Algumas questões não cabem à administração, mas aos moradores. É complicado para quem mora lá, mas a casa está muito mais segura do que já foi. A segurança não é exemplar, tem segurança na portaria, mas já aconteceu de pessoas não convidadas estarem lá dentro. Tem muito disso, pois os estudantes deixam brechas, não fazem cadastro, liberando a entrada”, destaca a estudante de Fonoaudiologia.

Em dormitórios do oitavo andar, os roupeiros de madeira tomados de cupim revelam a necessidade de melhorias nas acomodações. “Os roupeiros que dividem as paredes também não garantem muita privacidade nos quartos. Mas sou muito grata pela casa, sou feliz de morar aqui”, completa a estudante. Para Brenda, todo mundo que entra no prédio sente um “ambiente pesado”. “Muitas pessoas estão passando por muitas coisas. É bem complicado, mas o aluguel no centro é muito caro, eu não teria condições de pagar. Para muitas pessoas, é a única oportunidade de continuar os estudos”, afirma.

Suporte fundamental

 

Mesmo com as dificuldades enfrentadas no dia a dia, Gabriel Heinzmann Diniz, 20, estudante do quinto semestre de Enfermagem, avalia que a estrutura atende às necessidades de estudantes em vulnerabilidade social. Ele reside há um ano na CEU. Natural de São Luiz Gonzaga, na região das Missões, ele saiu de casa pela primeira vez. “Venho de uma família que tem baixa renda, não teria condições de pagar uma faculdade particular. Tinha preferência pela universidade federal por que a qualidade do ensino é muito boa”, destaca.

Ele pesquisou e buscou informações com amigos sobre as condições do local. “A rotina é muito boa para quem estuda, porque a gente não precisa ter muita preocupação em relação a, por exemplo, limpeza, pois tem uma equipe de limpeza que dá todo apoio para gente. E também possibilita que eu consiga fazer as minhas atividades acadêmicas com tranquilidade. Muitas vezes, a gente não consegue arrumar um emprego porque não consegue conciliar horários com a faculdade”, observa.

Como os moradores da CEU vêm de contextos sociais diversos, Diniz afirma que sua experiência é boa na casa. “Vivia sob condições péssimas de moradia. Quando entrei na Casa do Estudante, minha qualidade de vida até melhorou consideravelmente. Foi muito bom, porque pude ter convívio com muitas outras pessoas, fazer amizades. Há pessoas com algumas limitações sociais, que não conseguem se adaptar muito bem ao ambiente, mas, no meu caso, foi muito positivo, porque consegui criar contato com várias pessoas e criar muitos vínculos.”

Apesar do clima amistoso, o convívio em grupo impõe desafios. “Muitas pessoas ainda não têm noção da coletividade. Isso prejudica bastante quem mora aqui. Por exemplo, acontecem muitos furtos. E o pior de tudo é que são furtos que acontecem dentro da casa. As pessoas, às vezes, por exemplo, deixam roupas na máquina ou deixam roupa estendida. Muitas vezes, alguém vai lá e rouba e a gente não tem uma cobertura de segurança boa para isso”, relata.

Embora não seja o lugar perfeito, a CEU pode ajudar na transformação das pessoas. “Eu não estaria agora cursando uma graduação e construindo o futuro se não fosse pelo básico, que é uma moradia, alimentação e saúde. São coisas que a universidade proporciona. Muitas pessoas, acreditam que isso é um privilégio, mas acaba sendo um direito nosso também, conseguir chegar até aqui e fazer tudo isso, fazer a graduação, que não é nem um pouco fácil. A gente tem que abdicar de muitas coisas, de ficar com a família”, observa.

Pró-reitora: “Sem essa moradia, estudantes teriam desistido da formação superior”

Pró-Reitora de Assuntos Estudantis da Ufrgs, Ludymila Barroso Mallmann explica que a seleção para ingresso na Casa do Estudante ocorre através de editais semestrais, que determinam as regras para a concessão do Benefício Moradia Estudantil na Casa do Estudante Universitário (CEU). Entre as exigências, o estudante deve estar regularmente matriculado em curso de graduação presencial da universidade e atender a um perfil socioeconômico com a comprovação de renda familiar bruta média mensal de até 1,5 salário mínimo nacional por pessoa, o que corresponde à renda média bruta de até R$ 1.818,00 por pessoa da família.

Ela destaca a importância da CEU como parte da formação das pessoas de baixa renda. “A CEU é uma das ações de assistência estudantil que permitem à diplomação de inúmeros estudantes em vulnerabilidade socioeconômica. Muitas vezes, sem essa moradia, os estudantes teriam desistido da formação superior”, afirma. A pró-reitora explica que muitos estudantes não conseguiriam se manter financeiramente em Porto Alegre sem a Casa do Estudante porque muitos têm a moradia de origem distante da universidade e/ou seus familiares não possuem condições de propiciar seu sustento. Conforme Ludymila, nos últimos 20 anos, de 2004 a 2023, 452 estudantes moradores da CEU se diplomaram.

No mesmo período, 1.063 estudantes residiram na CEU. Atualmente, a CEU conta com uma taxa de ocupação de 78%, contando com 91 vagas disponíveis. “As condições são boas: há colchões e camas bons e novos em todos os quartos, 56 banheiros com chuveiros e vasos sanitários, 13 máquinas de lavar roupas, uma cozinha compartilhada, água, luz, gás, internet. Há manutenção frequente nessas instalações e equipamentos. A estrutura que mais carece de reforma é a parte interna dos dormitórios, pois os roupeiros e a rede elétrica são antigos, da época da inauguração”, relata.

Entre as melhorias previstas está a reforma de todos os dormitórios que engloba a rede elétrica, os roupeiros, as janelas e o piso. A construção do projeto ocorreu através de consulta aos moradores e está em fase de finalização (projeto elétrico) e orçamentação (projeto arquitetônico). Após a orçamentação dos dois, a reforma será encaminhada para processo licitatório. Segundo Ludymila, 25 estudantes estrangeiros residem na CEU, a maioria do continente africano. A Ufrgs reforça que são disponibilizadas três refeições por dia (com auxílio-alimentação para os finais de semana), vale-transporte para deslocamento aos outros campi, atendimento de saúde gratuito, além de outros benefícios para estudantes que ingressaram em modalidades de renda inferior.

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895