Estudo mostra que 24,5% dos gaúchos vivem em pobreza social

Estudo mostra que 24,5% dos gaúchos vivem em pobreza social

Segundo pesquisa recente do PUCRS Data Social, quase um quarto da população no Rio Grande do Sul vive em situação de pobreza social, uma nova forma, proposta pelo Banco Mundial, de mensurar a falta de renda

Por
Kyane Sutelo

Impossível caminhar pelas ruas de Porto Alegre sem ouvir: “compro ouro!”. A frase é a mesma, há anos, dita pela maioria dos divulgadores de lojas que fazem esse tipo de comércio no centro da Capital. Com o passar do tempo, o anúncio ainda ganhou complementos. Quem oferta a compra de ouro agora avisa também a compra de cabelo e a realização de tatuagens. É uma forma de faturar um pouco mais, já que a maior parte do lucro não vai para os divulgadores. Com as tradicionais placas no pescoço, divulgando os serviços, Graciela Aguiar da Silva usa a voz e a simpatia para ganhar a vida há 23 anos, na porta de uma das galerias do Centro Histórico de Porto Alegre. É assim que ela sustenta a casa, onde mora com o marido e os dois filhos adolescentes. O orçamento do mês é incerto. Quando ela sai do bairro Santa Tereza, toda manhã, não sabe quanto vai ganhar naquele dia. Garantido mesmo são R$ 50 da diária, o restante é comissão, caso consiga levar algum cliente à loja, que feche negócio. 

Quase um quarto da população no Rio Grande do Sul vive em situação financeira semelhante a de Graciela, segundo uma pesquisa recente do PUCRS Data Social: laboratório de desigualdades, pobreza e mercado de trabalho. O estudo identificou que 24,50% dos gaúchos estão em situação de pobreza social, vivendo com menos de R$ 696,29 por pessoa no domicílio. No Brasil, são 30,4%. Isso não quer dizer que essa parcela da população viva na miséria, mas são milhares de pessoas que não têm acesso a diversos recursos da sociedade em que estão inseridas. Apesar de ainda pouco conhecida, a Linha de Pobreza Social foi proposta pelo Banco Mundial há seis anos, como uma nova forma de mensurar a falta de renda. Segundo uma das coordenadoras do estudo da PUCRS, a professora da Pós-Graduação em Economia e Serviço Social Izete Pengo Bagolin, a definição se enquadra melhor na realidade do RS. “Infelizmente ainda existem pessoas vivendo em pobreza extrema e pobreza absoluta. Mas existem mais pessoas vivendo em situação de pobreza social”, avalia a pesquisadora.

Em um país heterogêneo como o Brasil, com rendas muito diferenciadas entre regiões e municípios, a professora acredita que é preciso um olhar mais abrangente sobre a situação econômica da população. Os novos parâmetros não excluem das pesquisas as pessoas em situação de pobreza extrema, mas vão além. “A pobreza social está muito relacionada com o fato de estar ou não incluído na sociedade. Ser capaz ou não de aproveitar aqueles benefícios que o desenvolvimento econômico traz”, explica a pesquisadora da PUCRS. E complementa: “Por isso que a gente foi buscar essa metodologia que vale tanto para aquela região que ainda é pobre e não desenvolvida e que tem pessoas passando necessidades básicas, essenciais, mínimas, como também identifica a exclusão naquelas regiões mais desenvolvidas”.

O estudo analisou a pobreza social em todo o Brasil, entre 2012 e 2021, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A nível de Brasil, a Linha de Pobreza Social calculada foi de R$ 502,07, per capita, em 2021. Os R$ 696,29 por gaúcho em pobreza social colocam o RS entre os três valores mais altos no ranking do estudo, ficando atrás apenas de Santa Catarina e do Distrito Federal. Porém, a boa colocação não apaga o fato de que o valor que essas famílias conseguem reunir ainda é insuficiente para manter todas as despesas. Essa parcela da população é invisibilizada pelas políticas públicas, conforme a professora, visto que nem sempre passa fome ou está desempregada. Mas eles têm outras carências. São quase 3 milhões de gaúchos vivendo com pouco mais de meio salário mínimo, atualmente fixado em R$ 1.302 e com previsão de aumento a partir de maio. 

Enquanto, no Brasil, o estudo do Data Social da PUCRS identificou que 2021 teve o maior índice de pobreza social (30,4%) nos últimos nove anos, a realidade foi diferente no RS. O Estado registrou o segundo maior percentual no período pesquisado, apontando uma elevação nos últimos anos. Em 2012, eram 26,27% de gaúchos em pobreza social e, no ano seguinte, o dado caiu para 22,12%, voltando a ultrapassar os 24% somente agora. Para a professora Izete, a pandemia de Covid-19 foi um dos fatores que piorou o cenário da pobreza em todo o país. Segundo a pesquisadora, o auxílio emergencial pago pelo governo federal em 2020 ainda segurou o avanço dos índices negativos, mas como não se traduz em investimento, sendo apenas um recurso econômico momentâneo, em 2021 foi registrada a elevação. Letícia Rosa da Conceição esteve entre os brasileiros que precisaram encontrar formas de sustentar a família durante a pandemia. Mãe de três filhos, com dois adolescentes ainda em casa, ela tentou ser motorista de aplicativo, mas um assalto fez com que o medo a deixasse novamente sem renda. Foi quando teve a ideia de se dedicar ao comércio nas sinaleiras. Tentou vender água e não conseguiu retorno financeiro. Encontrou o sustentou vendendo pipoca aos motoristas por seis meses, até conseguir um emprego fixo. “Eu com estudo, segundo grau completo, tenho carteira de motorista e tudo e me vi nessa situação para sustentar a minha casa. Porque eu pago aluguel, tenho filhos. Então, eu tenho muito orgulho disso, sem vergonha nenhuma”, conta ela.

População negra e mulheres são maioria

A população negra está entre as que mais sofre com a falta de renda. O estudo Pobreza Social no Brasil: 2012-2021, do Data Social da PUCRS, registrou alto índice da população negra na pobreza, em todo o país. Em 2021, essa taxa entre os pretos, pardos e indígenas era de 38,9%, enquanto entre os brancos era quase a metade. O dado reflete um país em que a maioria da população é negra, 56% segundo o IBGE. No entanto, no Rio Grande do Sul a lógica é diferente. O IBGE indica que mais de 11,4 milhões de pessoas vivem no Estado, sendo 21% autodeclarada negra, incluindo pretos e pardos, segundo levantamento de 2021 do governo do Estado. Desta população, 35% é considerada pobre pelo estudo da PUCRS. Dado superior, inclusive, ao de 24,50% do índice de pobreza social para todo o Estado. O secretário Estadual de Assistência Social (SAS), Beto Fantinel, afirmou que a pasta monitora a situação da pobreza no RS por meio de um grupo de trabalho que analisa dados colhidos do Cadastro único, que é o principal norteador de sua gestão e do setor de Vigilância Socioassistencial.  “Para além disso, usa vários indicadores do IBGE, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), além de  indicadores de análise econômica e no estado os dados do Departamento de Economia e Estatística (DEE)”, detalha o gestor público.

A professora Izete destaca que, em termos de números absoluto total, a maioria de pessoas em pobreza social no RS é branca, pois a maioria da população se declara desta forma, mas destaca que, mesmo sendo minoria na composição do Estado, a população negra gaúcha tem mais de um terço de seus integrantes em pobreza social. “Um dos dados que chama muita atenção é que entre os não brancos, ou seja, pretos, pardos e indígenas, há uma incidência de pobreza social muito mais elevada do que entre os brancos”, detalha ela. Segundo o secretário da SAS, pelos instrumentos utilizados pela secretaria, o alto índice de pobreza social na população negra do Estado é de conhecimento do poder público gaúcho. “Motivo pelo qual há um olhar especial no desenvolvimento de políticas públicas considerando raça, gênero, faixa etária, sempre observando as especificidades territoriais urbanas ou rurais”, afirma o secretário. Ele destacou que a sua gestão tem poucos meses e que pretende colocar em prática ações nesse sentido.

Tanto Graciela quanto Letícia são mulheres negras em busca do sustento diário da família. Inclusive, as mulheres também aparecem como maioria em situação de pobreza social no estudo, sendo 31,2% em 2021, enquanto a taxa para os homens era de 29,6%. No entanto, a coordenadora da pesquisa explica que, por ser uma diferença de percentual pequena entre os gêneros, é um dado que precisa ser melhor aprofundado. A teoria inicial dos pesquisadores é de que a desvantagem das mulheres se deve à “formação de famílias monoparentais chefiadas por pessoas do sexo feminino, entre as quais a vulnerabilidade social tende a ser maior”. No entanto, a professora Izete acredita que devem ser realizados levantamentos futuros sobre a pobreza a partir do recorte de gênero, para compreender se essa percepção se sustenta. 

Falta de renda impacta na saúde

Entre as preocupações das famílias que ganham menos de R$ 700  por pessoa em casa está a saúde. Julia Andren Weimer Godinho, de 32 anos, descobriu, no ano passado, uma tuberculose. A doença a impede até hoje de conseguir um emprego de carteira assinada. O tratamento dura aproximadamente seis meses e os medicamentos foram fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na Unidade Básica de Saúde (UBS) de referência da região da Vila Cruzeiro, onde Julia mora. “Foi bem difícil, eu cheguei a ficar 20 dias internada. Mas agora faltam só dois meses para terminar o tratamento”, conta ela. Enquanto o emprego fixo não chega, Julia faz o mesmo percurso todos os dias: deixa os filhos de 8 e 3 anos no colégio, no bairro onde mora, e parte para o centro da cidade em busca do sustento, ao lado do marido, Eduardo Liscano Varera. Com uma caixa de torrones nas mãos, eles oferecem os doces e pedem ajuda para alimentar as crianças. Normalmente, começam às 9h e se dirigem para a zona Norte de tarde, para continuar o serviço até às 17h, já que ambas as crianças ficam na escola em turno integral. 

A divulgadora de compra de ouro, cabelo e confecção de tatuagens Graciela também tem problemas de saúde que complicam o dia a dia da família. Ela aguarda ansiosa a liberação do benefício do governo ao marido, de 48 anos, em função da doença inflamatória conhecida como gota, ou artrite gotosa, que o impede de trabalhar. O problema de saúde é caracterizado pela elevação de ácido úrico no sangue, fazendo com que cristais de monourato de sódio fiquem depositados nas articulações, o que causa inchaço e dores. No caso dele, são afetados os joelhos e os pés. A trabalhadora conta que foi um processo longo até identificarem a doença. Inicialmente, ele foi tratado para uma sinovite, inflamação popularmente chamada “água no joelho”. Somente após cirurgias, a gota foi identificada. Conforme a esposa, já ingressaram com a documentação junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), mas o marido segue sem receber o auxílio-doença. “Ele já fez duas perícias, daí só estou eu trabalhando até sair o dinheiro dele”, explica Graciela. 

Foi também uma doença inflamatória que tirou do mercado de trabalho a esposa de Clairton e, após o nascimento da filha Amanda, há 21 anos, a impediu de ter mais filhos. Ela foi diagnosticada com artrite reumatóide e faz tratamento contínuo, segundo o marido, com medicamentos que custariam mais de R$ 500 mensais à família se não fossem disponibilizados pelo SUS. O porteiro viaja 60 quilômetros todos os dias entre Charqueadas e Porto Alegre, há 30 anos, para garantir sua renda. Ele viu na Capital mais oportunidades com salários maiores. A esposa chegou a receber benefício do INSS, mas Clairton conta que foi retirado. Apesar das dificuldades, as viagens diárias deram frutos: em três décadas nesse percurso, conseguiu tirar a família da pobreza social, somando mais de R$ 696,29 por pessoa na residência. “Eu agora vou para casa em um ônibus com ar-condicionado, posso dormir uma horinha também. Tudo isso ajuda para a gente ter mais tempo pra família”, observa o trabalhador. 

Quem não tem os mesmos “luxos” é Isabel Vedoy, a Bela. Aos 30 anos, ela descobriu uma artrose crônica que não teve tempo de tratar, pois precisava sustentar os três filhos. Com o passar dos anos, a situação foi piorando e os trabalhos como doméstica e cozinheira foram ficando praticamente impossíveis de serem realizados. Ela não consegue mais trabalhar, pois o joelho não suporta esforço sequer para subir uma escada. Assim como o marido de Graciela, ela também aguarda a permissão do INSS para receber o benefício por incapacidade. Mas Bela afirma que já faz mais de um ano que tenta encaminhar os valores deste auxílio, sem sucesso. “Já fiz três perícias e não consigo o benefício. Dizem que está na mão do juiz”, conta ela. 

Pobreza extrema também é realidade

A situação de Bela está em uma camada mais profunda do estudo do Data Social da PUCRS, a de pobreza extrema. Conforme as definições do Banco Mundial, atualizadas em setembro do ano passado e utilizadas no estudo, essa linha compreende a renda de até R$ 182,82, por pessoa no domicílio. De acordo com a coordenadora da pesquisa da PUCRS, o Rio Grande do Sul tem 18,87% da população na parcela que eles classificam como “absolutamente pobres”. Dos 10 anos que o levantamento compreende, essa taxa variou, mas sem ficar abaixo de 15%, o que na população atual do Estado representa mais de 1 milhão de gaúchos. E cada um deles tem uma história repleta de motivos que o fizeram chegar até aqui. Bela cria quatro netos menores de idade e agora abriga também uma neta de 20 anos, que está grávida e desempregada. O compromisso de cuidar dos netos veio após a morte de uma das filhas, mãe das crianças, há cinco anos.

Para se manter durante o mês, o orçamento da casa, atualmente com 6 ocupantes, conta apenas com os R$ 600 do Bolsa Família, benefício pago pelo governo federal, que chamava-se Auxílio Brasil durante o último mandato, mas retomou o nome original na atual gestão. No entendimento do governo, a linha de pobreza extrema é ainda mais baixa que a versão utilizada no estudo da PUCRS. O auxílio considera situação de extrema pobreza renda familiar mensal per capita de até R$ 105 e situação de pobreza renda familiar mensal per capita entre R$ 105 e R$ 210, de acordo com dados disponibilizados no site do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

O fato é que, independentemente de qual dos dois valores seja utilizado, a família, moradora do Sarandi, na zona Norte, acaba tendo um orçamento menor do que o necessário para se manter, mesmo recebendo o Bolsa Família. Dividido entre eles, atualmente, o valor por pessoa da casa é de R$ 100. Em poucos meses, quando o bisneto nascer, a renda ficará ainda menor. “Ou tu paga o aluguel e fica sem comer ou, se tu comprar comida, não tem onde morar”, lamenta Bela. Inclusive, garantir um teto sobre a cabeça dela e dos netos é um dos desafios atuais da rotina dela, pois a casa que alugam atualmente, pagando 100% do benefício governamental que recebem, foi vendida e o proprietário solicitou que a família deixe o imóvel. Porém, ela relata dificuldade em encontrar outro local no mesmo preço e não pode pagar mais do que os R$ 600 do auxílio. O valor médio do metro quadrado para locação de um imóvel em Porto Alegre é de R$ 28, conforme dados de janeiro deste ano do Índice FipeZap+, da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas. Isso significa mais de R$ 800 por uma residência de 30m². Totalmente inviável para Bela, ainda mais que o aluguel está longe de ser a única despesa deles.

Convivendo com a insegurança alimentar

Diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos que todo ser humano tem direito a “um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação”, entre outras garantias. Mas colocar comida na mesa não é fácil na casa de Bela e dos outros milhares de gaúchos em situação de pobreza. “Tenho um pequeno que faz tempo que não sabe o que é tomar um café com leite, porque não tem leite em casa”, desabafa a avó. O valor da cesta básica na Capital em fevereiro deste ano foi calculado em R$ 757,33, conforme o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), fazendo com que pessoas em situação de pobreza como Bela não consigam ter o direito à alimentação, que também é previsto na Constituição Brasileira, assegurado. Com a única renda da família sendo gasta integralmente com o aluguel, a comida vem por meio de doações. “Estou cadastrada em duas ONGs que dão um ranchinho por mês. Arroz, feijão, farinha, açúcar. É complicado, tu não tem acesso a uma carne, uma fruta, uma verdura”, lamenta. 

A situação se repete em outros municípios do Estado. Em Pelotas, todos os domingos, Alexandre, de 33 anos,  a esposa Andressa, de 27 anos, os dois filhos do casol, Alipher, de 4 anos, Max Cristopher, de 1 ano, além de Mariana, filha de Andressa, de 12 anos, vão  até o Parque Dom Antônio Zattera em busca de uma marmita com comida feita pela ONG Alimentar. O objetivo é garantir que todos tenham almoço de domingo. Eles comem por ali mesmo, embaixo das árvores, felizes por terem conseguido um almoço de qualidade. Ele conta que atualmente trabalha em uma loja de pisos, ganhando um salário mínimo, sem carteira assinada, mas confessa que é insuficiente para sustentar a família. Por isto acaba tendo que recorrer às doações, pois as contas não fecham.  Atualmente, a família vive em uma casa pequena composta por um quarto, uma cozinha e um banheiro. Após pagar o aluguel, sobra R$ 600 para passar o mês. Santos lembra que na época da pandemia a situação era bem pior. “Não trabalhava e morava em uma casa cuidando dos animais em troca de moradia. Para comer, eu catava ferros e vendia. Já passei fome, deixando de comer para dar para eles, ou todos tendo que dormir para a fome passar”, relata. Hoje, os dois mais velhos estudam em escola pública, Andressa leva os filhos um de manhã e outro à tarde, a pé, para economizar na passagem de ônibus que hoje custa R$ 5 em Pelotas. Ela conta que mesmo com as aulas já tendo iniciado, os filhos ainda não tem todo o material escolar. “Eles precisam de lápis de cor, folhas e canetinha para poder estudar”, diz. A família passa por muita dificuldade, mas não perde a esperança. “Espero que  as coisas melhorem, mas não tenho ideia de como isto vai ocorrer. Eu vivo um dia após o outro, mas nunca perco a esperança que tudo melhore”, garante Santos.

A insegurança alimentar também é realidade na região da Fronteira. A história de Roselaine, 52 anos, é um relato solitário, mas que revela o drama semelhante ao de centenas de outros espalhados pelo Estado. É a sucessão de dificuldades agravadas pela pandemia de Covid-19.

Desde 2017, Roselaine tinha um pequeno comércio na área periférica de Uruguaiana, período em que faturava em média R$ 1,5 mil por semana. O suficiente para manter o empório, pagar suas contas, com o apoio do marido, e atender as necessidades da filha de 14 anos. A partir de março de 2020, o cenário se modificou, com o rendimento passando a cair gradativamente, ficando sem condições de repor as mercadorias, quitar as dívidas contraídas e assegurar o bem-estar da filha. “E ainda, os grandes estabelecimentos aproveitaram para quebrar os menores”, comenta. No início de 2022, a crise se instalou em definitivo e Roselaine fechou as portas de seu comércio.

A agora dona de casa parte para atividades alternativas de sustento, fazendo pão caseiro para vender na redondeza. Porém, como muitas pessoas passaram a fazer o mesmo, não obteve lucro suficiente para continuar. Também coletou reciclados. Passou a se desfazer do mobiliário do empório. “Comecei a vender balcões, expositores, prateleiras e freezer como única saída para ter o que comer e pagar água e luz”, desabafa. Além da crise financeira, surgiram os problemas conjugais, depois de 21 anos de casada, que resultaram em divórcio, há um mês. Ela atribui ao estresse da relação, às preocupações, às contas que vieram, tudo virando uma bola de neve, que resultaram na falta de entendimento, “a gente vai conversar com o companheiro e acaba falando coisas que magoam” diz. O ex-marido  também ficou desempregado devido à pandemia. Atualmente Roselaine tem um brechó de donativos recebidos. “Na verdade, eu vivo de doações de parentes, amigos, do CRAS, auxílio emergencial e fazendo ‘bicos’, como limpezas e faxinas, o que surgir.” Para passar a receber uma cesta básica do município, ela teve que superar a vergonha que diz ter de viver deste tipo de ajuda. Relata que se sente fraca por pouca alimentação e que irá buscar se alimentar melhor para ter forças de realizar os trabalhos que surgirem, já que tem sua filha para sustentar.

Roselaine já distribuiu vários currículos, porém, entende que a idade, a falta de experiência e a impaciência da maioria dos patrões, dificultam cada vez mais a chance de conseguir uma colocação no mercado de trabalho, do qual ela está afastada a pelo menos 20 anos.

Para superar o abalo psicológico que sofreu, Roselaine garante que vai levantar a cabeça e dar a volta por cima, tendo como sonho conseguir um emprego fixo com carteira assinada. “Vencer na vida, ter um bom trabalho, digno, que a gente ganhe um salário todo fim de mês para poder pagar as contas. Fiquei com muitas dívidas pessoais e do empório. Mas, vai dar tudo certo, eu creio em Deus que tudo vai se encaminhar”.

Na Região Metropolitana o cenário se repete. “No desespero, já procurei comida no lixo”, disse Laudemir, 58 anos, morador de Sapucaia do Sul, casado e pai de cinco filhos. Laudemir conta que foi garçom durante 8 anos em um bar considerado bem badalado, no Centro da cidade. Com a chegada da pandemia e com a imposição das medidas restritivas, como o isolamento social, o movimento caiu, o local ficou às moscas, o estabelecimento fechou e Laudemir ficou desempregado. A esposa Silvia, que trabalhava como faxineira três vezes na semana, também teve agenda cortada pela clientela e sem trabalho, ambos se viram sem renda. A esposa ainda tentou fazer pães e cucas para vender para a vizinhança. “No início deu certo, mas depois ficou apertado. Com aqueles trocados, a gente conseguiu pagar a luz, mas o aluguel não. Aí veio o desespero. O pior foi a fome. É triste ver a família não ter o que comer. Nunca pensei que passaríamos por isso. Teve uma vez que fui pedir comida em uma padaria. A mulher do outro lado do balcão não quis me dar um pedaço de pão. Era para as crianças. Diante do não, fui procurar comida no lixo, achei três pães amanhecidos na lixeira e levei para casa chorando. Foi triste, mas fiquei feliz em ver meus filhos comendo.”  

Depois disso, Laudemir e a família foram despejados da casa em que alugavam. Hoje, eles moram de favor na casa do irmão. “É constrangedor. É uma casa pequena, de apenas dois quartos. Dormimos todos juntos. Meu irmão dorme com a esposa no outro quarto, com os dois filhos. Meu irmão trabalha de pedreiro e, quando tem muito serviço, me chama. Enquanto isso, eu junto latinhas de alumínio.” Silvia voltou a fazer faxinas, mas o dinheiro ainda não dá para a família sair da casa do irmão, apenas para ajudar na alimentação da família e no material escolar das crianças, que nunca deixaram de estudar. “A educação é a base de tudo. Temos fé que este ano as coisas vão melhorar.”

Oportunidades para virar o jogo

Assim como Laudemir, a divulgadora Graciela também acredita na educação como caminho de futuro. Ela não vê a hora do benefício do marido ser autorizado para que a filha mais velha volte para o curso de técnico de enfermagem que fazia. Todo mês, a mãe tirava parte da renda para pagar as aulas, mas, com as oscilações do movimento de clientes, teve que suspender o pagamento. Graciela parou de estudar na sexta série, após a morte da mãe. Aos 15 anos começou a trabalhar como catadora e nunca mais teve tempo para dedicar aos estudos. Mas quer para os filhos um futuro bem diferente. As preocupações de ambos têm embasamento acadêmico, pois, conforme a professora Izete, as dificuldades impostas pela pobreza social impactam na educação. “As crianças são privadas do acesso à tecnologia da informação, ao bom computador, às facilidades no remoto, à leitura de e-book e à todas aquelas coisas que hoje em dia são importantes para desenvolver as habilidades cognitivas”, analisa a pesquisadora da PUCRS Izete Pengo Bagolin. 

De acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano, o IDH, o Rio Grande do Sul é o 6º estado melhor desenvolvido do Brasil, com 0,746 conforme dados IBGE de 2010. No ranking, no entanto, os gaúchos estão atrás dos outros dois estados da região Sul: Santa Catarina (3º) e Paraná (5º). O IDH é um dos principais parâmetros econômico e social usado internacionalmente pela Organização das Nações Unidas (ONU) para classificar o desenvolvimento de países a partir dos quesitos renda, saúde/longevidade e educação. Conforme o secretário Estadual de Assistência Social, Beto Fantinel, dentre as ações do governo do RS em busca de melhorias, em 2022, o Estado fez um repasse de R$ 36 milhões para os municípios, dentro do programa Avançar na Assistência Social. Mas, a nível municipal, no chamado IDHM, o índice ainda é díspar. Enquanto Porto Alegre possui 0,805, os municípios com pior colocação tem entre 0,587 e 0,616. São eles: Chuvisca e Herveiras (0,616),   Jaquirana (0,614), Lajeado do Bugre (0,613), Barão do Triunfo (0,61) e Dom Feliciano (0,587). Comparando com o Produto Interno Bruto (PIB), nenhum destes municípios aparece entre os seis menores PIBs, mas também não figuram no topo do ranking, sequer entre os 200 maiores. Questionadas sobre como combatem a pobreza, as prefeituras não retornaram.

Benefícios do governo federal como Bolsa Família e vale-gás auxiliam quem está em extrema pobreza, mas estão longe de ser uma solução, visto que os valores sequer atingem as médias de aluguel e cesta básica de uma Capital como Porto Alegre, por exemplo. Outro fator que torna complexa a extinção da pobreza é que a maior parte da população na Linha de Pobreza Social no Brasil e no RS, segundo o estudo, tem uma renda superior à estipulada para conseguir os benefícios, mas ainda assim inferior para manter os direitos básicos de uma existência digna. Muitos, conforme a professora Izete, estão empregados e, ainda assim, a renda familiar não é suficiente. De acordo com a Secretaria de Trabalho e Desenvolvimento Profissional do RS (STDP), o Estado tinha, ano passado, 2.661.604 empregados formais e 1.852.000 informais, o que representa menos da metade da população gaúcha. Entre desempregados, o anseio é por uma oportunidade, enquanto os que têm um trabalho, buscam melhores condições. Para a coordenadora da pesquisa, é preciso que o governo do Estado invista na “promoção de um crescimento econômico inclusivo que gere oportunidades para a população mais pobre”. 

A assessoria de Comunicação da STDP afirmou que realiza ações para melhorar o cenário da geração de renda, atuando “de forma permanente com informações sobre mercado de trabalho e intermediação de mão de obra, por meio das Agências FGTAS/Sine”. Para além das vagas de emprego, a pasta afirma estar desenvolvendo um programa de microcrédito, “alinhado com entidades financiadoras, que possibilitará fornecer crédito para microempreendedores individuais (MEIs), pequenas e médias empresas”, o foco, nesse caso, seria “fomentar o aumento da empregabilidade e incentivar o empreendedorismo”. Dentre as ações listadas, está ainda uma “tratativa com entidades do Sistema S com foco em qualificação profissional, considerando que o número de vagas no Estado é constante e falta capacitação adequada”, problema que se cruza com as histórias contadas aqui, de gaúchos que interromperam a vida escolar para trabalhar. 

Atualmente, o secretário de Assistência Social afirma que, nessa área, o Pró-social é a única iniciativa em vigor, porém, pretende iniciar um programa de atenção à pobreza no segundo trimestre deste ano. Segundo Fantinel, é preciso de suplementação orçamentária e aprovação de conselhos para colocar a ideia em prática, mas o tema é prioridade da gestão. “O governador nos pediu que o enfrentamento à pobreza seja uma das cinco principais pautas de governo”, relata o secretário, que destaca ainda que a região da Fronteira é a mais afetada. Fantinel diz que a secretaria “busca uma aproximação com as universidades, justamente por estudos como este da PUCRS, que podem ser de muita ajuda na construção de políticas públicas para a assistência social”. Segundo a professora, é fundamental que hajam mais políticas públicas de redução da desigualdade e geração de empregos para diminuir esses índices que, para além de números, se traduzem em mãos que abrem a porta do elevador, vozes que gritam “compro ouro, cabelo e tatuagem” e rostos que tentam disfarçar a exaustão de batalhar para sobreviver.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895