Greve geral é desafio para reformas de Milei

Greve geral é desafio para reformas de Milei

Opositores do presidente argentino tomam as ruas do país e travam primeira grande disputa com o governo, 45 dias após ele assumir, contra seu rígido ajuste fiscal e um gigantesco plano de reformas de leis e normas em vigor

Manifestações contra o governo reuniram dezenas de milhares de pessoas em todo o país

Por
Leila Macor , Eduardo de Miguel, Tomás Viola e AFP

O presidente argentino, Javier Milei, enfrentou quarta-feira a primeira greve geral, em apenas 45 dias de governo, contra seu rígido ajuste fiscal e um gigantesco plano de reformas de leis e normas. No início da manhã, manifestantes começaram a se reunir, vindos de todos os lados da cidade de Buenos Aires, com faixas que carregavam slogans como “O país não está à venda” para participar da manifestação principal, que acontecerá em frente ao Congresso nacional, observou a AFP. Manifestações reuniram dezenas de milhares de pessoas em todo o país.

Sindicatos de azeiteiros, jornalistas, trabalhadores da cultura, de hospitais, da ciência, além de membros de associações de bairro, de defesa dos direitos humanos e outros setores participaram da manifestação em Buenos Aires, exibindo cartazes com as frases “Não à motosserra”, “Não ao apagão cultural” e “Ciência ou terraplanismo”. “Vim apenas para me solidarizar com os trabalhadores e os aposentados porque querem destruir nossos direitos, temos que detê-los", disse à AFP Andrés Divisio, um aposentado de 71 anos que caminhava com um cartaz que dizia “Milei, fraudador”.

Pelo menos 80 mil pessoas se manifestaram em Buenos Aires, segundo dados da polícia, embora as autoridades discordem deste número. A ministra da Segurança Patricia Bullrich escreveu na rede X que a marcha reuniu 40 mil pessoas e a considerou “um fracasso total”, enquanto o porta-voz da Confederação Geral do Trabalho (CGT), Jorge Sola, informou que 500 mil pessoas participaram na capital e 1,5 milhão em todo o país. A greve contou com o apoio de outros sindicatos, organizações de direitos humanos e organizações de trabalhadores de todo o mundo, que convocaram manifestações, com eventos de apoio em Madri, Londres, Berlim, Paris e em frente à embaixada argentina em Brasília, entre outras cidades. No Uruguai, o PIT-CNT, único sindicato de trabalhadores, convocou uma manifestação de repúdio às medidas antipopulares" de Milei “que ameaçam a vida, os direitos e a liberdade dos trabalhadores e do povo argentino”. 

No ato central do protesto, em frente ao Congresso Nacional, o sindicalista Pablo Moyano, vice-secretário-geral da CGT, fez uma dura advertência ao ministro da Economia, Luis Caputo. “Se continuar com estas medidas, os trabalhadores vão carregar o ministro nos ombros para jogá-lo no Riachuelo”, referindo-se ao rio que demarca o limite sul de Buenos Aires. Moyano fez alusão a um comentário de Milei, que havia dito que, se a inflação em janeiro fosse menor que 30%, seria preciso “carregar nos ombros”. Este, por sua vez, escreveu na rede social X que esperava “o envolvimento da Justiça no assunto” pelo comentário do sindicalista.

A greve geral foi convocada pela maior central sindical da Argentina, a CGT, de orientação peronista, com o apoio da Confederação dos Trabalhadores Argentinos (CTA) e das Mães e Avós da Praça de Maio. A CGT rejeita, principalmente, as alterações por decreto do regime trabalhista promovidas por Milei, que limitam o direito à greve e afetam o financiamento dos sindicatos. “Nenhum sindicato está em posição de ceder nem um centímetro do que foi conquistado”, afirmou Moyano, que também rejeita uma lei de corte de gastos e desregulamentação da economia discutida no Congresso, onde o governismo é minoria.

A ministra da Segurança, Patrícia Bullrich, descreveu os organizadores do protesto como “sindicalistas mafiosos, gestores da pobreza” e incluiu no seu ataque contra parte da oposição “juízes cúmplices e políticos corruptos, todos defendendo os seus privilégios” contra as reformas promovidas por Milei, em publicação na rede social X. 

O transporte aéreo foi um dos primeiros setores a sentir os efeitos sobre sua atividade, já que a estatal Aerolíneas Argentina, a maior companhia aérea do país, aderiu à greve e cancelou 196 dos seus voos, o que, segundo a Presidência, afetou cerca de 20 mil passageiros. “Estou indignado, já perdi dinheiro vindo para cá e a noite no hotel. Não sei se me devolverão”, disse Sergio González à AFP no aeroporto local Jorge Newbery, ao saber que havia perdido seu voo reservado para Mendoza (oeste).

O governo afirmou que irá descontar o dia parado do salário de funcionários públicos que se uniram à greve. O Executivo também criou uma linha telefônica gratuita e anônima para “aqueles que se sentirem extorquidos, ameaçados ou obrigados a parar” por seus sindicatos. Um a cada quatro trabalhadores é sindicalizado no país. Bullrich, que testou em dezembro seu chamado “protocolo antipiquetes” reiterou antes da greve que o mecanismo está em vigor. Entre outras coisas, o protocolo impede o fechamento de ruas e exige que os manifestantes se limitem a permanecer em calçadas e praças.

Pacotes do governo geram insatisfação

Essa é a primeira manifestação nacional contra o governo e suas drásticas medidas para conter uma inflação anual de 211%, recorde em 30 anos. Em dezembro, em relação ao mesmo mês no ano anterior, o consumo caiu 13,7%, e a produção nas pequenas indústrias 26,9%, segundo a câmara empresarial Came. Além disso, a desvalorização de 50% e a liberação dos preços dos combustíveis, entre outras decisões de Milei, reduziram drasticamente o poder de compra dos trabalhadores e aposentados e a insatisfação foi parar nas ruas. 

O “mega” Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), com 366 artigos, introduz várias mudanças na antiga e consolidada legislação trabalhista argentina, em especial sobre o direito à greve. Juntos, o DNU e a chamada “Lei Ómnibus” somam mais de mil medidas, que buscam revolucionar o sistema econômico argentino, levando a ideia do livre mercado a praticamente todos os setores. Entre outras mudanças, revogam as regulações dos aluguéis, favorecem as privatizações e reduzem fortemente o financiamento da cultura e da ciência. As normas regulam temas muito variados, como o lítio, o divórcio, a revenda de entradas para grandes espetáculos e as togas dos juízes.

A multiplicidade de regulações gerou também uma infinidade de memes e brincadeiras, como a de uma rádio que recentemente “promulgava” a revogação do despertador das 7h da manhã.

O megadecreto está em vigor enquanto não é rejeitado por uma das câmaras do Congresso e é também alvo de diversos recursos que o acusam de ser inconstitucional. O projeto da “Lei Ómnibus”, por sua vez, está sendo discutido em nível das comissões parlamentares e pode ser votado na Câmara de Deputados na próxima semana.

Em relação à greve, Milei exige coberturas mínimas de 75% em serviços essenciais como educação, transporte e alimentação, entre outros, e incentiva demissões de grevistas por justa causa. O DNU também regulamenta assembleias trabalhistas, condiciona a arrecadação de fundos sindicais e reduz indenizações por demissão.

A CGT questionou a constitucionalidade do capítulo trabalhista do megadecreto na Justiça, que suspendeu seus efeitos provisoriamente. O governo recorreu da decisão e o caso foi levado à Suprema Corte, atualmente em recesso.
O constitucionalista Félix Lonigro criticou a extensão do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU), apesar de concordar com ele, em parte, porque considera muitas de suas medidas banais. “Chama minha atenção como Milei acredita que algumas coisas possam ser tão urgente, como a reforma dos clubes de futebol. Acredito que tenha a ver com o personagem, com sua intemperança, sua ansiedade, que se traduz na gestão do governo”, comentou.

E enquanto tudo isso é discutido entre as paredes do Congresso, os noticiários dedicam grande parte de seu espaço a relatar a perda do poder aquisitivo dos argentinos. Exibem cenas de supermercados, açougues e farmácias, com zooms nos preços dos produtos, e informam as diferenças nos preços das bolas de praias e dos alfajores. “A única coisa que as pessoas entendem é que os preços estão subindo; todos os demais debates não são entendidos. Querem saber em quanto a alface vai subir, quanto vão pagar de aluguel, quando vai subir o gás, o telefone, a luz”, disse Amadeo.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895