Grupos disputam o domínio territorial da fronteira entre Brasil e Uruguai

Grupos disputam o domínio territorial da fronteira entre Brasil e Uruguai

Há um castelo no lado uruguaio, onde funciona um cassino, atividade proibida no Brasil, mas liberado no lado de lá.

Por
Felipe Faleiro

Uma linha artificial corta ao meio Santana do Livramento e Rivera, mas a mancha urbana é única. Situar onde termina uma cidade e começa a outra é tarefa difícil mesmo para quem se detém a prestar atenção, principalmente longe da Praça Internacional, onde apenas as bandeiras de Brasil e Uruguai, respectivamente, aparecem desfraldadas, balançando ao vento. A praça em si, marco da cultura pacífica entre os povos, é ponto turístico, mas também reduto de pessoas em situação de rua.

Há um castelo no lado uruguaio, onde funciona um cassino, atividade proibida no Brasil, mas liberado no lado de lá. Moradores de Livramento dizem que a ausência de limites fronteiriços cria uma situação curiosa, na qual a Brigada Militar não avança para o Uruguai, tampouco a polícia daquele país cruza para cá. Isto muda quando, por exemplo, alguém comete um assalto e foge para a nação vizinha, situação que exige certa tolerância na perseguição das autoridades policiais. Este é o cenário por onde circulam as facções criminosas da Fronteira da Paz, notadamente, Os Manos.

“Eles são uma organização criminosa que se aproveita de vários esquemas que sempre existiram na fronteira. A única diferença é que eles não têm uma sede na fronteira, mas esquemas de venda de drogas e contrabando de armas e agrotóxicos”, afirma a professora da Universidade da República (Udelar), no Uruguai, e doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Leticia Núñez Almeida. Ela estuda segurança pública desde 2006 e, desde 2010, a questão fronteiriça.

É incerto o período em que a facção começou a atuar entre Brasil e Uruguai, mas o jornalista uruguaio Washington Pereira afirma que os homicídios em razão do tráfico aumentaram na região já desde 2018. “É clara a disputa por território que as facções têm na fronteira. A grande maioria das mortes é por acerto de contas”, diz ele, que é coordenador do jornal local A Plateia em espanhol.

O veículo de comunicação circula em português e espanhol na Fronteira da Paz. Por “as facções”, entendem-se Os Manos e os Bala na Cara, cujas presenças em Livramento e Rivera repetem o mesmo padrão de enfrentamento que há em outros lugares do Rio Grande do Sul, como a Região Metropolitana de Porto Alegre.

Os Bala na Cara chegaram primeiro, segundo Pereira. Liderados por Ernesto Andres Vargas Villanueva, conhecido como “Cachorrinho Vargas”, hoje detido no Brasil. Eles até então dominavam os negócios ilícitos, mas foram subjugados pelos Manos, que tinham “mais poder de fogo” e que mantinham ao menos duas lideranças: Luan Barcelos da Silva, o “Gui”, brasileiro, acusado de assassinar seis taxistas em Livramento, Rivera e Porto Alegre, em 2013, e Jesús de Mello, “El Piojo”, também de Rivera. Embora pertencentes à mesma facção, ambos disputavam o domínio territorial da fronteira e ordenavam ações a partir de dentro do sistema penitenciário, onde estão reclusos.

“Nos últimos dois anos, Os Manos começaram a expandir-se também ao interior do departamento de Rivera, em cidades como Tranqueras e Minas de Corrales, e regiões vizinhas, como Tacuarembó”, afirma o coordenador de A Plateia em espanhol. O resultado deste choque entre grupos foi, e continua sendo, sangrento para ambos os lados.

Rivera teve, entre 2021 e 2022, 16 homicídios por 100 mil habitantes, o maior índice entre os 19 departamentos uruguaios. Em números absolutos, foram 18 mortes no ano passado, 17 em 2021, 16 em 2020 e sete em 2019. Foi o segundo maior índice entre todas as regiões, exceto Montevidéu, que concentra cerca de um terço da população do Uruguai.

No ano passado, 47% dos homicídios no Uruguai, ou 181 dos 383 ao todo, tiveram relação com “conflitos entre grupos criminais, tráfico de drogas e acerto de contas”, de acordo com estatísticas do Observatório Nacional sobre Violência e Criminalidade uruguaio. Em todo o país, houve um aumento de 27% no uso de armas de fogo nas mortes violentas entre 2021 e 2022. E, entre 2011 e 2022, o crescimento nestes homicídios foi de 138%. O Correio do Povo pediu um posicionamento formal do Ministério do Interior uruguaio a respeito do combate às facções, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. A Jefatura de Policía de Rivera e a própria Prefeitura de Santana do Livramento também não responderam aos questionamentos.

Poucos são os que falam sobre o assunto. O interesse expansionista das facções em direção ao Uruguai parece ter seguido uma lógica simples de oferta e procura, afirma a professora Letícia, reforçada por uma segurança relativamente porosa. “Qual o melhor lugar para receber estas mercadorias de forma segura para a facção? Livramento e Rivera sempre foram lugares propícios para isto, então, não creio que tenha sido algo estratégico. Agora, existem nomes. Os Manos sempre existiram, mas não eram nomeados.

Armas, drogas e contrabando sempre passaram por aqui e, provavelmente, daqui a pouco, não serão mais eles, terão outros nomes, e tudo vai seguir passando”, comenta.

As pichações 14-18-12 que caracterizam Os Manos nos muros da fronteira são uma forma de provocação, não necessariamente uma demarcação de território, opina Letícia.

“Neste caso, elas provocam as pessoas que moram ali e também alertam a polícia de alguma forma. O que ganha um movimento em avisar que ele está naquele lugar? É muito mais interessante para ele estar na virtualidade, ou seja, em todos os lugares e em lugar nenhum”.

Outra questão que chama a atenção é que a facção recruta crianças e jovens em situação de pobreza extrema como novos agentes, atraídos pela promessa de crescimento no grupo. À exceção de um homicídio ocorrido há cerca de 15 dias, os demais foram solucionados pela Direção de Investigações da Polícia riverense, conforme Pereira. O delegado regional de Polícia Judiciária da Polícia Federal (PF) no Rio Grande do Sul, Thiago Delabary, reforça que o modo de operação destas organizações em geral é criar uma via dupla de envio e recebimento tanto de armamento como entorpecentes.

“Observamos que há interesse e ações destes grupos para se estabelecerem em cidades da fronteira, com o objetivo estratégico de enviar cocaína para o Uruguai e facilitar o ingresso de armas no Brasil a partir daquele país”, comenta Delabary.

A PF tem quatro unidades na fronteira com o Uruguai, no Chuí, Jaguarão, Bagé e Livramento, bem como uma adidância policial em território uruguaio e demais unidades de apoio. Somadas, elas apreenderam no ano passado 144 quilos de cocaína, 82 quilos de maconha, 47,3 quilos de skunk e mais de 301 mil unidades de ecstasy. “Nossa ação no combate ao tráfico internacional de drogas se dá em investigações que têm por objetivo desarticular organizações criminosas a partir da identificação e da prisão das lideranças e da descapitalização dos grupos, com o bloqueio de valores e apreensão de bens”, diz o delegado.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895