Histórias de quem teve a vida duramente afetada pelas enchentes no RS

Histórias de quem teve a vida duramente afetada pelas enchentes no RS

Moradores de Muçum e Roca Sales contam como foi passar pela enchente que tirou dezenas de vidas

Por
Vitória Fagundes

Cidades do Interior normalmente tem uma vida mais simples e a economia do município, em grande parte, é local. Em muitos casos, o Interior mantém raízes e tradições familiares, sentimentos de afeto, simplicidade, culinária caseira, conversas e convivência com os vizinhos. A agricultura é um dos pontos marcantes nessas cidades, em especial no Rio Grande do Sul, com diversidade de culturas como uva, fumo, erva-mate, trigo, milho, feijão, flores, arroz e criações de gado leiteiro, de corte, suínos e frangos. 

Os municípios interioranos, também, são grandes pontos turísticos, destinos procurados tanto para quem quer descansar quanto para quem gosta de aventura. 

Esse descanso e essa tranquilidade em algumas regiões do Rio Grande do Sul foram interrompidas com a passagem de fortes enchentes que atingiram o Estado no domingo, 3 de setembro de 2023. O temporal foi ocasionado por uma baixa pressão que provocou chuvas intensas. Foram registradas fortes rajadas de vento e, principalmente, o aumento do nível dos rios, que deixou milhares de pessoas desabrigadas. A vazão do Rio das Antas desencadeou a cheia no rio Taquari, que provocou a maior cheia dos últimos 40 anos. A ponte Santa Bárbara, que faz ligação entre o Rio das Antas e o Taquari cedeu, devido ao alto volume de água da chuva. 

Com a força das águas, muitos municípios sentiram o impacto e chegaram a ficar submersos. Entre eles estavam os municípios de Muçum e Roca Sales, que enfrentaram inundações com a cheia do Taquari. De acordo com o vice-prefeito de Muçum, Amarildo Baldasso, o cenário era de pavor, com famílias nos telhados das casas. As primeiras mortes foram registradas no dia seguinte, 4 de setembro, em Mato Castelhano, Passo Fundo, Ibiraiaras, Lajeado e Estrela. Ao longo de toda semana, foi possível notar que o número de mortos, desaparecidos e desabrigados aumentava. 

A equipe de reportagem do Correio do Povo esteve na região do Vale do Taquari e pôde acompanhar de perto a situação após a tragédia. O cenário em Muçum e Roca Sales era de lama, móveis no meio da rua, pontos de alagamentos e casas tomadas pelo lodo e danificadas pela água. Ao passar pelas ruas mais atingidas pelas chuvas, o silêncio era perceptível. Ouviam-se apenas os barulhos dos maquinários, lama sendo pisada e móveis sendo atirados para o meio da rua. O olhar dos moradores da região era de tristeza e cansaço. Cansaço por ficar horas tirando a lama que tomou conta de suas propriedades e tristeza de perder tudo na enchente. 

Muçum

A cidade é conhecida como Ponte das Princesas pelo trecho de ferrovia que atravessa o rio Taquari e corta o município sobre um viaduto. Segundo o Censo 2022, do IBGE, a população de Muçum é de 4.601 pessoas. A densidade demográfica é de 41,36 habitantes por km², com média de 2,56 moradores por residência.
O nome, segundo a prefeitura, vem de uma cachoeira do rio Taquari chamada Muçum. Ali também abundava uma espécie de peixe chamada Mussum, o que serviu para que viajantes identificassem o povoado com esse nome.

Roca Sales

Conhecida como uma cidade acolhedora e da amizade, que preserva as raízes da cultura alemã e italiana, Roca Sales também está no Vale do Taquari. Segundo o Censo 2022, sua população é de 10.418 pessoas e tem densidade demográfica de 50,06 habitantes por km², média de 2,56 moradores por residência.
Segundo a prefeitura, a economia da cidade é baseada na agropecuária, com o predomínio do cultivo de milho e soja. Na pecuária, suinocultura, avicultura e gado leiteiro e, na fruticultura, pêssego, uva, cítrus e goiaba.

‘Quem não perdeu as coisas no granizo, perdeu na enchente’ 

A região central de Muçum foi uma das mais atingidas. Em vídeo que circulou pelas redes sociais no dia do temporal é possível ver uma casa cinza de dois andares tomada pela água. Lá, mora o atendente de logística João Rodrigo da Silva. Quando a reportagem chegou, estava limpando a moradia cheia de lama. A força da enchente foi tão grande que o segundo piso ficou alagado. João, que mora com a esposa, Daiane Vassen, e o sogro, Ademar Vassen, perdeu tudo o que tinha, desde móveis e eletrodomésticos até fotos da família. 

Antes de morar em Muçum, João vivia no município de Taquari. Há dois anos, decidiu morar com sua esposa na cidade dela. Segundo ele, Muçum já teve episódios de enchentes, mas nunca em uma situação tão aterrorizante como foram as cheias do dia 3 de setembro. Duas semanas antes do temporal, o teto de sua casa foi danificado pelo granizo. “Foi triste, a água veio devagarinho, a grande maioria da vizinhança tentando tirar os móveis das casas e dos mercados, nos ajudando. Eu perdi tudo”, relembra.

Felizmente, João e sua família não estavam em casa no momento das cheias. 

A casa cinza estava coberta com uma lona que se estendia por metade do telhado. Na queda de granizo, João teve apenas perdas no telhado. No entanto, 15 dias depois, sua casa estava tomada por lama. “Quem não perdeu as coisas no granizo, perdeu na enchente”.

Lugar de descanso tomado por desespero e medo

Um dos comentários mais escutados ao longo da cobertura das enchentes no Vale do Taquari foi a de que Muçum havia sido escolhido por ser um município calmo, tranquilo e seguro para morar. Essa foi a resposta de Valdomiro da Rosa, 54 anos, e Cláudio da Rosa, de 58 anos, dois irmãos que nasceram em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, mas escolheram Muçum para descansar. 

“Casas bonitas, gente agradável, pessoas maravilhosas, fazíamos rodas de chimarrão, perdemos tudo nessa enchente”, relembra Valdomiro. Os dois residiam no bairro Centro, perto do Cemitério Municipal e do Rio Taquari. A região foi uma das mais atingidas pela chuva. A água chegou a alcançar o terceiro andar de um prédio. As casas no entorno do rio ficaram destruídas, sobraram apenas os entulhos de concreto, tijolos, portas e grades amassadas pela força da água. 

Cláudio optou por morar com a esposa em Muçum porque um dos seus passatempos preferidos é pescar. “Depois que me aposentei, queria viver ao lado do rio para pescar. Era mais tranquilo, queria descansar.” Ele mora há sete anos na região. Sua casa também foi atingida pelo granizo de semanas antes e todo o telhado precisou ser trocado. Depois, com a força das cheias, seu telhado ficou retorcido e foi levado para o outro lado da rua. “Nem paguei as prestações do telhado e aconteceu tudo isso aqui em Muçum. Em um período curto de 15 dias.” 

No dia da enchente, Valdomiro não estava na cidade, mas Cláudio sim. Ele lembra que precisou dormir no carro porque a região em que ele mora foi tomada pela água em questão de horas e não deu tempo de salvar nada. “A água começou a subir, aquele monte de gente em desespero. Quando cheguei na rua principal, a água batia na barriga e já não tinha o que fazer.” 

Valdomiro, que morava havia 10 anos em Muçum, vê a situação com tristeza. Ele decidiu morar na cidade porque recebeu uma proposta de imóvel. Ele destaca que a vizinhança era acolhedora e tinha espírito de coletividade. “Fazíamos roda de chimarrão aqui na rua, todo mundo se conhecia. Agora não teremos mais essa rotina”. Valdomiro, que é servidor público, conta que nunca tinha visto uma enchente tão avassaladora como a de 4 de setembro. Ele conta que perdeu tudo na enchente de 2020, que afetou milhares de famílias na cidade, mas nunca viu um desastre tão grande como foi neste ano. 

Tristeza, dor e perdas foram as palavras que os irmãos destacaram. Eles buscaram um lugar para viver com tranquilidade e descanso e perderam tudo. Muitos não pretendem mais morar na região por medo, segundo os irmãos. Valdomiro e Claudio pretendem voltar para Bento Gonçalves. Agora, resta apenas limpar o que sobrou de suas casas e retornar para a Serra Gaúcha. “É triste, porque um sonho foi interrompido e talvez não seja concretizado. Os vizinhos da rua não voltam mais para cá. Perdemos uma fotografia que é uma história, uma lembrança que não volta, uma aliança de casamento, que é uma história. Perdemos a identidade. Agora precisamos ter força, levantar a cabeça para recomeçar”, diz Valdomiro.

Casal se salvou ao ficar no forro e socorreu vizinhas

Muitas famílias ficaram ilhadas nos telhados das casas e nas partes altas dos prédios. Essas pessoas precisaram ser resgatadas de botes, canoas ou por helicóptero. O casal Dorli e Vilmar Iohant, de 62 anos, moradores de Roca Sales, conseguiu sobreviver se abrigando no telhado da casa. O filho deles, Jean Iohant, 31, manteve contato constante com os pais. 

Na noite do desastre, o casal estava em casa e não deu tempo de salvar nada. Pegaram o viveiro onde estava seu papagaio e se refugiaram no forro da casa. A água começou a subir em questão de minutos. “Não tinha como sair. Ficamos com tanto medo que gritamos. Era um barulho assustador, pior que mar.” Às 3h, o casal notou que a vizinha estava presa na casa ao lado. A água já estava na altura da janela. Dorli e Vilmar começaram a gritar pedindo para que ela saísse. No entanto, ela disse que não podia sair da casa porque a mãe, de 90 anos, estava acamada e não queria deixá-la sozinha.

Foi então que o filho do casal e voluntários tiveram a ideia de quebrar o telhado e o forro de concreto da casa da vizinha. As duas foram salvas por canoa. O casal não queria ser resgatado sem, antes, ajudar as duas. “Ela disse querer que tirassem a mãe primeiro. Depois de muito sacrifício, eles conseguiram quebrar o teto e o forro. A gente foi de barco resgatar elas e colocar um cobertor na vó (senhora de 90 anos). O que aconteceu em Roca Sales nunca foi visto, a gente nunca enfrentou uma enchente dessa proporção. No máximo, a água batia no pátio de casa”, contou Dorli.

O casal contou que ficou das 18h até as 4h do dia seguinte ilhado. “A água já estava encostando no forro da casa. Ficamos presos no forro porque, se saíssemos, poderíamos morrer”, relembra. O casal relata que a maior preocupação era salvar as vizinhas. “Eu estava segura, mas e a minha vizinha e a mãe dela? A gente não poderia aceitar que elas morressem. Está sendo triste”, diz ela. 

Dorli e Vilmar perderam tudo, mas são gratos pela vida e ajuda com a limpeza da casa. Voluntários de Ijuí e Carlos Barbosa foram ajudá-los. “Ficamos sem palavras com toda essa ajuda. Só temos a agradecer a esses anjos que caem na vida da gente. Eu nunca pensei em pedir um pedaço de pão para comer. Estávamos com fome, mas um grupo de voluntários nos ofereceu salsichão com pão.” O casal agora está abrigado com o filho Jean, que mora em uma parte que não ficou alagada. Os dois pretendem voltar para Roca Sales, mas no momento certo. “Nem que a gente tenha que sentar em um colchãozinho. Deus vai dar força para a gente se reerguer. Vamos conseguir”, desabafa Dorli.

“Não tenho mais forças para chorar”, desabafa moradora 

Uma diretora de escola aposentada, que viveu sua vida em Roca Sales, se viu no desespero de ver sua casa sendo tomada pela água. A propriedade dela abrigava seu salão de beleza, no qual se dedicava com muito amor à profissão. 

Felizmente, Cleonice Maria Vargas da Silva, 75 anos, que mora com seus netos e filhos, não ficou ilhada, já que saiu a tempo. “Às 23h, a água estava no telhado. A força e a quantidade eram enormes.” Ela está abrigada, agora, na casa de sua amiga, no município de Encantado. Após a enchente, dona Cleonice, disse que não queria entrar em casa e ver o estrago. “Perdi tudo. Minha vida está no meio da rua.” A lama chegava à altura do joelho. Ela mostrou que colchões, lençóis e móveis não puderam ser recuperados. 

Cleonice saiu apenas com a roupa do corpo, um vestido rosa florido e um par de chinelos. Ao chegar à rua, as mãos e os pés estavam tomados pelo lodo que cobria a rua. Ela conta que não tem mais forças para chorar, apesar do sentimento de tristeza de ver sua casa destruída. A aposentada, no entanto, se sente grata pela ajuda que recebe dos voluntários. “Eles me motivaram a reconstruir minha vida. Tenho gratidão pelas pessoas de fora. Vieram de Guaporé, Canoas, Igrejinha, Viamão, Teutônia, Caxias do Sul, Garibaldi. Cada um passou ajudando um pouquinho”. 

Na mesma rua onde mora dona Cleonice, vive o servente de pedreiro Aírton Walter Alf, de 56 anos. Ele estava em sua residência quando notou que a água subia. Com a ajuda da família, Aírton ergueu os móveis da casa. Quando a água chegou à altura da canela, decidiu sair da moradia levando consigo os animais de estimação, algumas roupas e comida. Ele se abrigou no carro e sua esposa foi para o sobrinho. “Coloquei tudo no carro. Mais à noite, a água batia no teto.” 

Emocionado, Aírton diz que, apesar de ter perdido tudo na casa, agradece por não ter perdido parentes nem a vida. “Estou com minha família, graças a Deus, minha mulher e meus filhos. Tem gente que perdeu tudo e a família.” 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895