Imigração alemã: do início aos dias de hoje

Imigração alemã: do início aos dias de hoje

Um grupo de 39 imigrantes alcançou o que atualmente é o município de São Leopoldo, em 1824, em busca de um sonho. De lá para cá, ajudaram a construir uma relevante parte da história do Rio Grande do Sul

Por
Felipe Faleiro

O mundo mudou muito nos últimos 200 anos. Guerras, revoluções, invenções fizeram a humanidade apresentar, de maneira geral, um desenvolvimento científico e tecnológico como nunca antes visto. As comunicações tornaram-se cada vez mais ágeis e as fronteiras virtuais, salvo raras exceções, reduziram as distâncias entre os povos. Olhando para trás, o planeta, como um todo, ficou menor, na esteira das transformações iniciadas há séculos por homens e mulheres pioneiros em suas áreas de conhecimento.

O Rio Grande do Sul não ficou alheio a estes processos. É consenso que o estado gaúcho se constituiu a partir da mescla de diferentes povos, não muito diferente do que foi visto no restante do Brasil, país tornado destino de pessoas de diversas partes do mundo pela imigração, ainda que também por meio da escravidão. De qualquer forma, esta mistura tornou a nação brasileira exemplo histórico de tolerância pouco visto em outras partes do planeta. Entre os que chegaram neste período, estiveram os alemães.

Um grupo de imigrantes chegou a Porto Alegre, então capital da província de São Pedro do Rio Grande, em 18 de julho de 1824, e, vindos pelo Rio dos Sinos, cujo nome se dá por sua sinuosidade, 39 pessoas alcançaram o hoje município de São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre, no posterior dia 25 de julho, em busca de um sonho. De lá para cá, cresceram, desenvolveram colônias, vilas e cidades, formaram famílias, fundaram negócios e ajudaram a construir uma relevante parte da história do que é hoje o Rio Grande do Sul. O resultado é que, hoje, cerca de 5% da população brasileira, ou mais de 10 milhões de pessoas, tem origem alemã.

Na bagagem, trouxeram seu idioma, seu modo de vida, religião e cultura, mas, especialmente, sonhos, esperanças e incertezas e ainda uma vontade de desbravar, empreender e superar os desafios. Para quem permanecia na Europa, havia angústia. “Era uma viagem muito longa, tanto que as despedidas na Alemanha eram um adeus eterno, como se houvesse um velório mesmo”, conta Sandro Blume, historiador e mestre com ênfase em cultura alemã pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bem como autor de diversos livros sobre a imigração. “Inclusive (isto ocorria) para os parentes, muitas vezes filhos, pais, parentes que ficavam para trás e não se tinha a garantia de que, um dia, se tornaria a vê-los”.

O historiador Rodrigo Trespach, autor, entre outros, do livro “1824” (2023), afirma que a Alemanha da época da imigração não era a mesma da atual. “Eram estados semi-independentes e a nação alemã somente foi criada a partir de 1871. O termo correto para uso, portanto, seria imigrantes falantes do idioma alemão”, afirmou ele. “Quem veio para cá em 1824? Bávaros, ou seja, pertencentes ao Reino da Baviera, hessianos, súditos do Grão-Ducado de Hesse-Darmstadt e prussianos, ou súditos da Prússia. Estes estados, mais tarde, vão formar a Alemanha”.

Em São Leopoldo, desembarcaram grupos provenientes principalmente da região de Hunsrück, então pertencente à Prússia, perto da área entre os rios Reno e Mosela, mas também da Saxônia, Württemberg e Saxônia-Coburgo, à proporção somada de 25%. “Processos de fusão cultural subsequentes faziam com que as formas culturais do Hunsrück absorvessem as demais, deixando assim a impressão de uma homogeneidade que a princípio não existira”, escreveu em 1946 o antropólogo e sociólogo alemão Emilio Willems, radicado no Brasil.

É esta história que o Correio do Povo começa a contar a partir de hoje em uma série de reportagens e conteúdos especiais relacionados ao bicentenário da chegada destes pioneiros em solo gaúcho, acontecimento que mudou a história para sempre. Mensalmente, até o mês de julho, o jornal irá recordar a história da imigração alemã e seu legado no Rio Grande do Sul a partir de assuntos como economia, saúde, agricultura, cultura, literatura, religião e educação.

Entre os séculos XIX e XX, grande número de imigrantes chega ao Brasil


Praça do Imigrante em 1934. Considera-se que o desembarque dos primeiros imigrantes tenha ocorrido onde hoje fica a praça, em São Leopoldo. Foto: Museu Histórico Visconde de São Leopoldo / Divulgação / CP

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 1824 e 1969, ingressaram no Brasil 250.166 alemães. Em 1857, um levantamento apontava que cerca de 15% dos habitantes de Porto Alegre eram teutos. Na mesma época, o território brasileiro também recebeu povos de outras nacionalidades, a exemplo de poloneses, portugueses, espanhóis, japoneses e italianos. Somente entre 1889 e 1930, período da Primeira República, o ingresso no país superou 3,5 milhões de estrangeiros.

No Censo de 1872, o primeiro da história do Brasil, São Leopoldo tinha a segunda maior população entre os municípios da província, com mais de 30 mil habitantes, inferior apenas a Porto Alegre, com 44 mil. Para começar a compreender o contexto geral, deve-se voltar bastante no tempo. O intercâmbio teuto-brasileiro surgiu ainda na esquadra de Pedro Álvares Cabral, no século XVI, e o primeiro livro em língua alemã sobre o Brasil é de Hans Staden, arcabuzeiro aportado em solo brasileiro por volta de 1550, quando se tornou prisioneiro dos índios tupinambás, porém conseguiu escapar.

Em 1806, o conquistador Napoleão Bonaparte dissolveu o chamado Sacro Império Romano-Germânico, surgindo, assim, a Confederação Germânica, abrangendo territórios de diversos atuais países europeus. Enquanto isso, a situação social no continente não era boa. “Havia muita miséria e fome. Os estados alemães estavam devastados, a moral deles era baixa e muitas vezes o alistamento militar era forçado. Esse pessoal sofria bastante, de forma que comiam batatas, alguma fruta e cereal. Praticamente não tinham carne para comer. Faltavam muitas coisas”, conta Blume.

Nessa época, a população começou a saber do sonho brasileiro prometido pelo Império português, com a garantia de que receberiam ferramentas, terras e sementes, já que o imperador Dom Pedro I buscava, entre outros aspectos, incentivar o desenvolvimento de pequenas manufaturas. Aos poucos, a intenção é de que se transformassem em médias e grandes indústrias, substituindo, aos poucos, a mão de obra escrava africana e fornecendo homens às guerras travadas no Brasil ao longo do século XIX. O responsável por relacionar os primeiros colonos e espalhar a palavra da “terra prometida” foi o Major Jorge Antônio von Schaeffer, nomeado para tal pelo Império.

“Temos, na origem destes povos, uma complexidade tal que não podemos dizer que vieram apenas do território alemão. Onde hoje estão Áustria, Luxemburgo, mesmo Polônia e outros países do centro da Europa, foram os locais de procedência destes imigrantes”, diz o presidente da Comissão Oficial do Bicentenário da Imigração Alemã no RS, Rafael Koering Gessinger. Os primeiros colonos alemães chegaram à Bahia, em 1818. Em 1824, o navio Germânia, capitaneado por Hans Voss e com 401 passageiros a bordo, entre soldados e colonos, partiu da cidade alemã de Hamburgo em 9 de maio daquele ano e chegou ao Rio de Janeiro, capital do Império, em 14 de setembro.

Reforçando esta atração, a corte portuguesa havia instalado diversas colônias, com destaque para o sul do Brasil. Em São Leopoldo, havia a chamada Real Feitoria do Linho-Cânhamo, criada para o tratamento da planta, essencial à indústria naval da época. A antiga Casa da Feitoria foi, então, adaptada como sede temporária dos recém-chegados, pois era o único local com condições para isto. Considera-se que o desembarque tenha ocorrido no antigo Porto das Telhas, hoje Praça do Imigrante, na região central leopoldense.

“Eles vão se acostumando aos poucos, e eram destinados aos seus lotes de terra nas colônias. A selva subtropical é uma coisa nova para estes migrantes, que foram praticamente confinados ali”, prossegue Blume. Construíram choupanas e abriram picadas ou linhas, estradas que contemplavam vários pedaços de terra. O território de São Leopoldo, primeira cidade fundada pelos imigrantes alemães no Brasil, e de nome homenageando a Imperatriz Leopoldina, era superior a mil quilômetros quadrados, incluindo desde os atuais municípios de Taquara a São Sebastião do Caí, no sentido leste-oeste, e de Caxias do Sul a Esteio, no sentido norte-sul.

Dentro dele, as fundações das colônias ocorreram gradativamente, com destaque para Novo Hamburgo, com origem no hoje bairro histórico de Hamburgo Velho, ou Hamburgerberg, e muitas outras cidades com traços tão proeminentes da imigração quanto o exemplo de Ivoti, Dois Irmãos e Santa Maria do Herval. Municípios da mesma área, como Linha Nova e Picada Café, preservam ainda hoje a nomenclatura das antigas estradas feitas pelos imigrantes.

Houve conflitos entre os europeus com os indígenas locais, os quais, para todos os efeitos, eram vistos pela elite imperial como um obstáculo ao processo de aculturação trazido pelos imigrantes, segundo historiadores. “Era necessário extirpar suas (indígenas) próprias características genéticas, através de miscigenação, ou então, da exterminação”, registrou o pesquisador Nathan Ferrari Pastre em um artigo acadêmico apresentado em uma edição do Simpósio Nacional de História. Blume conta ainda que houve a morte de colonos a partir do encontro das etnias.

Entre os imigrantes pioneiros, estiveram presentes soldados, religiosos e médicos, responsáveis por manter a segurança e a fé inabalada diante das adversidades, mas também profissionais que tornaram, mais tarde, a economia local próspera, como artesãos, tecelões, carpinteiros, escultores, ourives e ferreiros. Do final do século XIX ao início do XX, destacam-se, entre outros, as famílias Mentz, Ritter, Oderich e Trein, todos descendentes dos pioneiros e que alicerçaram seus negócios em grande parte em Porto Alegre e na região metropolitana, alguns dos quais existem até hoje.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895