Incentivo às pulses

Incentivo às pulses

Campanha visa estimular consumo e cultivo destas leguminosas de alto valor nutritivo e com potencial produtivo no país, em meio a tendência mundial de alta na demanda

Por
Camila Pessoa*

A crescente demanda nacional e internacional por pulses pode abrir oportunidades para agricultores diversificarem suas atividades e aumentarem sua renda. Atento a isso, o Sistema Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil e Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (CNA/Senar) lançou uma campanha de incentivo ao consumo e ao cultivo dessas leguminosas em setembro deste ano. A iniciativa inclui a exibição de vídeos, lives e uma página especial com informações sobre os benefícios destes alimentos, considerados nutritivos e ricos em proteínas, fibras, vitaminas e minerais. Além do desafio tecnológico, ampliar o mercado e convencer o produtor a apostar na ideia são metas para o futuro.

O grupo de grãos que adquiriu do latim o nome “pulse” (sopa grossa, na qual se transforma ao ser cozido) é composto por 11 tipos, segundo classificação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês): feijão, lentilha, fava, ervilha, grão-de-bico, feijão de corda, feijão-bambara, ervilha-de-angola, tremoço, ervilhaca e outras pulses não especificadas, produzidas em menor escala. 

Segundo o coordenador de Produção Agrícola da CNA, Maciel Silva, a organização decidiu incentivar o consumo e a produção desses grãos por enxergar uma tendência mundial de aumento da procura. Isso é visível em países como a Índia, com população majoritariamente vegetariana, mas também no Brasil, que importa parte dos pulses que consome. Para mostrar as possibilidades aos agricultores e à população em geral, o projeto de incentivo tem quatro eixos: difusão de informação aos produtores com materiais de aprendizado; acesso ao mercado, com acordos comerciais e resoluções de questões fitossanitárias com importadores; regulamentação, para um maior suporte legal e estabelecimento de padrões; e desenvolvimento científico. “Temos um consumo interno que não atendemos. É preciso supri-lo e garantir uma estrutura sem promover desbalanços”, analisa Silva. 

O coordenador de Produção Agrícola da CNA reconhece que há obstáculos como a estruturação do mercado, pois as cadeias produtivas no país são novas; necessidade de encontrar variedades e técnicas adequadas; estabelecimento de uma regulamentação robusta; e acesso a químicos. “São culturas com área plantada pequena e que não despertam interesse da indústria de agroquímicos”, complementa. Uma alternativa para o produtor é produzir esses grãos como uma segunda safra, uma vez que os pulses não têm capacidade de competir com o mercado da soja, mas podem ser complementares a ela.

Com a gradual resolução dessas questões, a produção tende a crescer no país. Segundo Silva, os cultivos do grupo com maior potencial no Brasil são o feijão (produzido em três safras por ano, vantagem que poucos países têm) e suas variedades ainda pouco consumidas no país, como a caupi e azuqui; o grão-de-bico, que é importado pelos brasileiros; lentilha e ervilha. 

A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) já desenvolve estudos para aprimorar o cultivo de algumas variedades. O chefe-geral da Embrapa Hortaliças, Warley Nascimento, admite que, além do feijão, os pulses ainda são pouco consumidos pelos brasileiros. Ele lembra que o feijão faz parte dos costumes nacionais, mas os demais ou são desconhecidos da grande maioria da população ou são caros porque vêm de outros países. Nascimento estima que aproximadamente 100% da lentilha, 50% do grão-de-bico e 70% da ervilha ainda sejam importados. A Embrapa faz pesquisas para desenvolver a cultura local desses três grãos.

Em meio a esse contexto, há um grupo de brasileiros que tem crescido e demandado cada vez mais pulses. “A população vegana, vegetariana ou flexitariana consome muito e no Brasil a demanda por essas leguminosas altamente proteicas está aumentando”, comenta Nascimento. O pesquisador cita a elaboração de produtos similares a hambúrgueres, salsichas, farinhas e até ovos a partir desses grãos para substituir a proteína animal ou para pessoas com restrições alimentares, como os celíacos. 

Nascimento destaca ainda as vantagens na produção dos pulses, em especial do grão-de-bico, que não exige muita água e, por ser um cultivo novo, tem menos pragas. Como esses grãos não são tropicais, a adaptação se torna ainda mais importante. Assim, os pesquisadores estão desenvolvendo cultivares adaptadas ao Brasil e mais tolerantes ao déficit hídrico, por exemplo. A Embrapa também faz pesquisas relacionadas à industrialização e comercialização desses alimentos

* Sob supervisão de Danton Júnior

Virando a chave

Brasil ainda depende da importação de grãos como ervilha, lentilha e grão-de-bico, mas a iniciativa de alguns produtores da região Sul mostra que existe potencial para que a área plantada cresça

Ziembowicz cultiva 400 hectares de ervilha em Porto Lucena e vê mercado promissor. Foto: Fábio Stefanelo / Divulgação / CP

João Elias Ziembowicz, de Porto Lucena (RS), começou a produzir ervilha há três anos, quando percebeu o quanto o produto é importado no país. “Você vê lá na prateleira ‘ervilha importada’ e você vê que o custo é muito alto, se você for comparar com outras culturas”, conta o produtor. 

Foi então que surgiu a ideia: “temos clima, temos solos e temos consumidores. Por que não incrementar essa cultura aqui?”, ressalta. A partir de então o agricultor, que trabalha majoritariamente com alimentação para pássaros (girassol, linhaças, canola, entre outros), decidiu plantar sementes que trouxe da Argentina, chegando a produzir cerca de 60 toneladas de ervilha em 2020. Hoje, o produtor está com 400 hectares plantados e tem expectativa de produzir cerca de mil toneladas do grão, dos quais 90% serão vendidos para empacotadoras como Yoki e Fritz & Frida.

Ziembowicz espera que o Brasil dependa menos de importações de pulses no futuro. “O maior desafio hoje é convencer o produtor a mudar a ideia de soja, trigo e milho”, diz. Para ele, o desenvolvimento do cultivo é uma questão de adaptação de variedades: “como é uma planta nova, um cultivo novo, temos que saber como produzir para não errar mais na frente”, resume. O produtor afirma que o cultivo tem uma adubação simples e a planta não é muito exigente. “Você só entra duas vezes para a aplicação de fungicida e inseticida e é uma planta que você colhe natural ou faz a parte de secagem química, mas hoje estamos fazendo secagem natural”, explica. 

Além disso, ele comenta que há um bom mercado no Brasil, porque deixar de importar é vantajoso para os empacotadores. “Temos uma logística em que o empacotador vai ligar para mim na sexta-feira, e na segunda-feira a mercadoria que ele encomendou estará na porta”, complementa Ziembowicz. 

Alternativa para o inverno

Airton Cittolin, produtor de lentilha e grão-de-bico de Cascavel (PR), diz que estas são alternativas para o cultivo de inverno, já que o grão-de-bico resiste mais que o trigo na estação, assim como a lentilha. O produtor começou há dois anos e hoje produz 120 hectares de grão-de-bico. Ele diz que a cultura está se adaptando bem: é uma planta diferente para a rotação de culturas e tem um mercado certo. De lentilha, ele tem uma área de aproximadamente 5 hectares. O produtor afirma que optou pela produção maior de grão-de-bico pois o grão pode ser colhido facilmente com máquinas que trabalham com soja. “Como a lentilha é um grão pequeno, as máquinas estão menos adaptadas”, conta. 

Plantação-teste em Cascavel (PR): segundo a Embrapa, a totalidade da lentilha consumida no Brasil é importada. Foto: Arquivo Pessoal / Divulgação / CP

Cittolin produz 30 sacas de grão-de-bico por hectare. Ele ainda não começou a comercializar o grão, mas afirma que há mercado interno, em lugares como São Paulo e Foz do Iguaçu (PR). Para ele, o maior desafio dessas produções é a falta de pesquisas com herbicidas e variedades de grãos adaptadas. 

Mesmo com uma produção crescente desses grãos, o foco do produtor é o feijão. Inclusive, ele pretende começar a produzir os chamados “feijões gourmet”, da classe “feijões especiais”, para exportação. 

Cultivos ancestrais

No Rio Grande do Sul, o pulse mais produzido é o feijão preto. Segundo o coordenador da Área de Culturas e de Defesa Sanitária Vegetal da Emater-RS/Ascar, Elder Dal Prá, o cultivo de feijão no Estado é feito em duas safras, sendo a primeira um pouco maior que a segunda. A perspectiva de área plantada da primeira safra de 2021 foi de aproximadamente 35 mil hectares e o grão é cultivado principalmente nas regiões de Caxias do Sul e Frederico Westphalen, com 14 mil e 5 mil hectares plantados, respectivamente. 

Segundo o coordenador, as características do cultivo do feijão têm mudado, com aumento das áreas das plantações e uma maior presença da colheita mecanizada. Por isso, o desafio é fazer com que essa produção, mesmo com a mudança de cenário, continue nas pequenas áreas, para a preservação da segurança alimentar. Outros desafios citados são a descoberta de cultivares melhor adaptadas aos períodos de estiagem no Rio Grande do Sul e o alcance de uma rentabilidade superior à da soja, o que, segundo o coordenador, pode ser conseguido com o aumento do nível tecnológico e melhores técnicas de adubação e tratos culturais. 

50 Anos de experiência

Em Ibarama (RS), a Emater/RS-Ascar realizou a implantação de Unidades de Referência Técnica (URT) – propriedades em que ocorre capacitação para melhorias na produção – em cultivo de feijão crioulo. Na safra de 2021/2022, foram implantadas sete URTs no município.

Aldori Scota foi um dos produtores que recebeu uma URT em sua propriedade. Ele conta que sempre teve esse interesse, principalmente em produzir sementes e resgatar sementes crioulas. Ele afirma que essas são mais resistentes, saborosas e cozinham mais fácil. O trabalho na preservação dessas variedades vem de seus antepassados. “O meu pai sempre produziu e trabalhou na preservação da semente crioula”, diz o agricultor de 63 anos. O rendimento é de 45 a 50 sacas por hectare, mas pode chegar a 60 sacas. O produtor divide o feijão que produz entre a venda por meio de cooperativas e no mercado institucional, a partir do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). 

Para ele, os maiores desafios são as variações do clima e as doenças, por isso há sempre uma tentativa de seleção das variedades que melhor se adaptam à região. Atualmente, o produtor está trabalhando com cinco variedades e avaliando cada uma delas com a Emater. As variedades são campeiro, carioca, vagem larga, londrina paraná e amendoim. 

Scota produz feijão desde os 12 anos e mantém preservação de variedades crioulas. Foto: Lilian Alessandra Rodrigues / Divulgação / CP

Scota trabalha com o grão desde os 12 anos, quando, junto aos 13 irmãos, ajudava seu pai. Ele diz que o pai priorizava a produção de alimento para consumo próprio. Assim, o feijão sempre esteve presente. Além do feijão, segundo ele, 99% crioulo, Aldori produz mandioca, milho, batata e amendoim. Ele comenta sobre a tradição de armazenar o feijão na tuia junto com sua própria palha, o que conserva e confere um sabor especial ao grão. O produtor costuma vender toda a sua produção.

“Não tem necessidade de veneno”, diz o produtor sobre o feijão crioulo. Aldori ficou encarregado de observar o desenvolvimento das sementes trazidas pela Emater, ele vai observar a formação do pé, da raiz e a resistência das variedades na lavoura. “É 1 kg de cada variedade, eu devolvo para a Emater, anoto quais foram as melhores e repasso para os outros produtores”, explica o produtor. 

Cooperativa estimula plantio

Guilherme Grein, produtor experimental de grão-de-bico – também produtor de soja, trigo e milho, majoritariamente – e presidente da Cooperativa Agrícola Campo do Tenente (Cooperante), do município paranaense de mesmo nome, está desenvolvendo, junto à cooperativa, um projeto de introdução de pulses e outros grãos funcionais. Depois de alguns experimentos na Cooperante, Grein iniciou sua produção de grão-de-bico em julho deste ano, com três hectares.

Os estudos e trocas de experiências da cooperativa com produtores e pesquisadores confirmaram que há mercado e que o cultivo é uma opção para a janela de ociosidade (outono e começo de inverno) dos produtores de grãos, que são o foco da Cooperante. “É isso que estamos buscando: ter alguma coisa que consiga diminuir os custos fixos da propriedade, usar melhor os recursos e ter uma alternativa de cultura que vai atender os nichos de mercado e ter um preço relativamente atraente”, afirma Grein. “Precisamos aprender ainda toda a parte agronômica dessa cultura para se tornar uma grande atividade, um grande negócio para o futuro”, acrescenta. 

Grein iniciou produção de grão-de-bico com três hectares semeados em julho, como um teste para o cultivo. Foto: Arquivo Pessoal / Divulgação / CP

Segundo o produtor, a Cooperante tem 500 associados e 70% deles são pequenos produtores. Existem outras produções para o período de outono e inverno, como o trigo e a cevada, mas elas têm suas desvantagens. “São opções que têm custo de produção alto e exigem conhecimento técnico muito aprofundado para ter resultado”, conta Grein. Enquanto isso, o produtor destaca vantagens no grão-de-bico, como baixa exigência de agrotóxicos, pouca incidência de doenças foliares e relativamente poucas pragas. “O que é mais caro é o fertilizante e a semente, mas não tem tratamento fitossanitário muito intensivo, assim como tem o trigo hoje e assim como tem a cevada, que exige mais de cinco aplicações de controle fitossanitário para doenças e insetos”. 

Grein destaca a importância da diversificação de culturas para os pequenos produtores. “A cadeia da soja está muito organizada e está deixando dinheiro para o produtor, mas as outras opções são importantes: não podemos ficar com uma cultura só na mão, precisamos ter uma diversificação maior, precisamos ter quatro, cinco culturas dentro da propriedade”, diz. Segundo ele, pelo menos seis associados da cooperativa se candidataram para começar a produzir grão-de-bico no ano que vem.

Sem glúten e ricos em proteína 

As leguminosas, grupo que inclui os pulses, são conhecidas como ricas fontes de proteínas. “São grãos ricos em proteínas, em fibras, em minerais, em vitaminas e têm baixo nível de gordura” explica Leila Guizzoni, nutricionista da Emater/RS-Ascar. Ela também destaca o fato de que esses grãos podem ser usados para produzir farinhas e não contêm glúten, vantagem para pessoas que têm intolerância ao composto ou seguem dietas especiais. “Então são opções interessantes para a complementação da parte de proteínas na alimentação”, resume. 

Essas ricas fontes de proteína podem ser consumidas de diversas formas. “Às vezes pensamos só no molho e um caldo de feijão, mas também podemos fazer salada, fazer bolo, fazer doces, então tem também essa diversidade de tipos de preparo, e podemos também pensar na questão cultural, de trazer esses saberes e de como preparar essa alimentação”, diz Guizzoni. 

A nutricionista explica que, num momento de pandemia e insegurança alimentar, os pulses também podem ser uma fonte de proteína mais barata que alimentos de origem animal. 

Cardápio diversificado

Versatilidade faz com que grãos caiam no gosto do público vegetariano ou vegano, que usa as leguminosas no preparo de diversas receitas, incluindo lanches como cachorro-quente e hambúrguer

A estrelense Betina Beuren é vegetariana por motivos éticos e compaixão pelos animais. Ela conta que seu consumo de pulses aumentou depois que ela começou a seguir a dieta. “Antes de me tornar vegetariana não tinha o hábito de consumir leguminosas. Depois que tive conhecimento das propriedades e dos benefícios das leguminosas, principalmente para quem é vegetariano/vegano, passei a incluir em quase todas as refeições”, conta. Para ela, os pulses mais saborosos são feijão, lentilha, grão de bico e tremoço. “Como as leguminosas são versáteis costumo fazer bolinhos e empadinhas de feijão, hambúrguer de lentilha crua, curry de grão-de-bico com legumes, patê de grão de bico, tremoço assado, e até mesmo brownie de feijão”, relata.

Linguiça de grão-de-bico

Bolzoni utiliza pulses como grão-de-bico, feijão e lentilha, na produção de lanches vegetarianos. Foto: Lau Baldo / Divulgação / CP

Também vegetariana, Giovanna Bolzoni, de Porto Alegre, tem um serviço de entrega de lanches vegetarianos chamado Bota Fé Rango Furioso. Um dos lanches mais populares é o “El Catioro Fake”, cachorro-quente com linguiça feita de grão-de-bico e soja. Bolzoni diz que o empreendimento tem crescido. “Toda semana temos novos clientes muito empolgados, inclusive uma galera que come carne. De acordo com as nossas pesquisas, mais de 50% do nosso público não é vegetariano ou vegano”, relata. Os pratos preferidos de Bolzoni com pulses na receita são feijoada e combinações árabes com tahine. 

Bolzoni utiliza grão-de-bico e outros pulses, como feijão e lentilha, na produção de lanches vegetarianos.

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895