Intensa crise marca eleições argentinas

Intensa crise marca eleições argentinas

Na frente das pesquisas estão Javier Milei, Sergio Massa e Patricia Bullrich

Por
AFP

Os argentinos elegerão seu presidente neste domingo atormentados por uma inflação de quase 140%, com os nervos à flor da pele pela crise cambial e as contas públicas exauridas por falta de divisas, uma bomba que o governo que assumirá em 10 de dezembro tentará desarmar. A situação demandará um ajuste cuja dimensão começará a ser definida nas urnas. O favorito nas pesquisas, o ultraliberal Javier Milei, propõe diretamente dolarizar a economia; a conservadora Patricia Bullrich, diminuir o Estado e liberar o mercado de câmbio; enquanto o peronista Sergio Massa, atual ministro da Economia, faz campanha prometendo impulsionar as exportações e o desenvolvimento com inclusão social. Todos falam de ordem fiscal. Abaixo, os cinco desafios econômicos que enfrentarão. 

Inflação Descomunal

"Dá calafrios fazer as compras, do carrinho (de supermercado) passei para a sacola e agora com uma mão sobra", disse à AFP Lidia Pernilli, uma aposentada de 73 anos que acaba de comprar duas bananas por 1 mil pesos o quilo, 1 dólar no câmbio paralelo que quase triplica a cotação oficial. A inflação, de 12,7% em setembro e 138% ao ano, é uma das mais altas do mundo. Saltou para os dois dígitos em agosto, quando o governo desvalorizou o peso em 20%. Praticamente, não há crédito no país. Em outubro, o Banco Central elevou as taxas de juros para depósitos de 118% para 133% ao ano, para desestimular a fuga para o dólar. 

Desequilíbrio Cambial

Após décadas de alta inflação, os argentinos desconfiam do peso. Os controles cambiais estão em vigor desde 2019, resultando em uma série de restrições. O dólar blue, ou paralelo, pulou de 850 pesos para 1.050 na semana passada. No final de julho, sua cotação estava pela metade. A diferença com o dólar oficial, em 365 pesos, é um abismo. “O dólar pode seguir subindo porque não há âncora política”, apontou Elizabeth Bacigalupo, economista-chefe da consultoria Abeceb. O mercado “pensa que Bullrich ou Massa podem impor um plano de estabilização, mas o que Milei propõe é perturbador e há medo”. Lorenzo Sigaut Gravina, economista e diretor da consultoria Equilibra, indicou que “a economia não cresce” e avaliou que, em 2023, a atividade diminuirá 2%. 

Sem Reservas

Este ano, a Argentina sofreu com uma seca histórica que atingiu o campo, o principal setor exportador. Deixou de receber cerca de 20 bilhões de dólares (cerca de 3 pontos do PIB). Esse golpe levou o Fundo Monetário Internacional (FMI) a relaxar as metas do programa creditício de 44 bilhões de dólares (quase R$ 161 bilhões à época) que a Argentina realizou em 2018. 

Para cumprir com seus compromissos, o país recorreu a um empréstimo do Catar e aos yuanes de um swap (troca de moedas) com a China. As reservas totais do Banco Central rondam os 25 bilhões de dólares (quase R$ 127 bilhões). “Mas as líquidas são negativas em 5 bilhões de dólares (quase R$ 26 bilhões) e segue queimando os últimos cartuchos para sustentar a taxa de câmbio, porque Massa ainda tem chances de ganhar”, avaliou Bacigalupo. 

O Banco Central absorve a forte emissão monetária para financiar o déficit fiscal, com títulos de curto prazo a taxas muito altas. “Será necessário um plano de estabilização e quem o aplicar deverá ter poder político, porque as medidas irão gerar mais inflação até que os dólares da safra entrem em abril”, advertiu Sigaut Gravina. 

Fragilidade Social

O maior desafio será equilibrar as contas sem que aconteçam grandes protestos, em um país cuja taxa de pobreza está em 40,1%, enquanto a de indigência é de 9,3%. Milhares de pessoas recebem subsídios nas tarifas de água, gás, eletricidade e transporte, além de auxílios econômicos. “Esses subsídios deverão ser reduzidos. Haverá um custo social elevado”, disse Bacigalupo. Milei prometeu dolarizar a economia e eliminar o Banco Central para acabar com a inflação. Segundo Lorenzo Sigaut, “é impossível porque não há dólares e iria requerer uma maxidesvalorização ou financiamento externo”. Para Bacigalupo, "são necessários valores tão exorbitantes por dólar - cerca de 4 mil pesos por cédula - para dolarizar, que seria socialmente inviável". 

Energia e Nova Safra

A Bolsa de Cereais de Buenos Aires projetou que a safra de soja aumentará em 138% na colheita 2023-24 depois da forte da seca e a de milho, 61%. O próximo governo economizará divisas em importação de energia, graças ao funcionamento de um novo gasoduto. "Se aproveitarmos, isso pode aportar mais de 10 bilhões de dólares (quase R$ 51 bilhões) por ano e somado à reversão da seca, a exploração de lítio e energia renováveis, chegarão dólares cruciais para as transformações da estabilização", opinou Bacigalupo. 

Principais candidatos, Milei, Massa e Bullrich encerram suas campanhas 

O candidato presidencial de extrema direita Javier Milei encerrou quarta-feira sua campanha para as eleições prometendo que a Argentina deixará de ser “uma terra fértil para os políticos corruptos”.

“Teremos no domingo a oportunidade de voltar a ter uma pátria, que o nosso solo deixe de ser uma terra fértil para os políticos corruptos e seja uma terra de oportunidades para todos aqueles que quiserem progredir com base em seu esforço”, proclamou o candidato.

Vestindo paletó e gravata e sem a sua clássica motosserra, com a qual percorreu o país para simbolizar os cortes de gastos que pretende realizar caso ganhe as eleições, Milei voltou a atacar “a casta de políticos ladrões”, “os empresários prebendários” e os jornalistas.

Ele aposta em uma vitória no primeiro turno, no qual precisaria obter 45% dos votos, ou 40% com uma vantagem de 10 pontos sobre o segundo candidato mais votado.

Milei, 52 anos, foi o candidato mais votado nas primárias dos partidos em agosto e as pesquisas o apontam como favorito para este domingo. No ato de encerramento da campanha, que lotou a Arena Movistar, com capacidade para 15 mil pessoas, o público exibia notas de dólar gigantes com o rosto de Milei e máscaras do candidato. Milei foi ovacionado ao defender a propriedade privada e “a cooperação social, onde só é possível ter sucesso servindo ao próximo com bens de melhor qualidade a um preço melhor”.

Seu projeto contempla dolarizar a economia e reduzir drasticamente os gastos públicos.

O economista Alberto Benegas Lynch, referência do liberalismo na Argentina, abriu o evento mencionando o projeto do candidato de “dinamitar” o Banco Central: “O que Javier Milei está fazendo para mim é um orgasmo intelectual”.

“Por que não tenho medo da dolarização? Porque o nosso peso não serve mais. Temos que mudar esta moeda”, disse a funcionária pública Sonia Acosta, 60, que dançava enrolada na bandeira nacional.

Bandeiras venezuelanas tremulavam entre as amarelas do partido de Milei, A Liberdade Avança. “Ele representa esse conjunto de pessoas que querem abraçar as ideias da liberdade, precisamente em um momento histórico, em que a esquerda assumiu tantas posições na América Latina e causou tantos danos”, apontou o venezuelano Luis Sambrano, 36, que imigrou para a Argentina há sete anos e participava do evento com um grupo de compatriotas.

Com promessas de união nacional e garantias de que o pior da crise argentina “está passando”, o candidato presidencial e ministro da Economia, Sergio Massa, encerrou terça-feira, no "Dia da Lealdade Peronista", sua campanha para as eleições deste domingo. “Busquem os argentinos que confiam em nós, mas, principalmente, aqueles que estão em dúvida. Diga a eles que o pior já passou, que o que está por vir é muito melhor e que precisamos fazer isso juntos”, declarou Massa para a multidão, ao lado de Axel Kicillof, governador da província de Buenos Aires e candidato à reeleição.

A terça-feira foi especial para os peronistas, que celebram o dia em que, em 1945, milhares de trabalhadores conseguiram a libertação do fundador de seu movimento, Juan Perón, que estava preso pelo governo de fato da época. “O sangue que corre em mim é peronista, é genético; eu apoio tudo o que tem a ver com este projeto”, disse emocionado à AFP Daniel Durán, 45, desempregado.

Assim como ele, dezenas de milhares de pessoas, de todas as idades, agitavam bandeiras no estádio Arsenal de Sarandí, subúrbio ao sul de Buenos Aires. Do lado de fora, bandeiras com os rostos dos ex-presidentes Néstor e Cristina Kirchner (agora vice-presidente, que não compareceu ao evento), assim como de Che Guevara e Diego Maradona, tremulavam entre barraquinhas de sanduíches de linguiça. “Vim porque concordo com todas as leis de Perón, que não devem desaparecer deste país. Tenho esperança de que o companheiro Massa vença as eleições, porque é a única solução para a Argentina", comentou Estela Díaz, uma aposentada de 64 anos.

Massa reivindica a soberania das Ilhas Malvinas, defendeu a luta pelos direitos humanos e reafirma o número de 30 mil desaparecidos deixados pela ditadura estimado por organizações humanitárias, temas questionados por Milei durante a campanha eleitoral, ao propor para as Malvinas uma solução semelhante à de Hong Kong e considerar que os desaparecidos foram pouco mais de 8 mil.

"Eu não gosto do Milei porque ele tem um sentimento de ódio pelo país. Para ele, a Argentina é uma porcaria, mas ele quer governar este país. Eu não gosto, a Argentina é o melhor país do mundo. Tomara que muitas pessoas venham nesta tarde para defender todas as leis que Perón e Evita nos deram", continuou a simpatizante Estela Díaz.

No entanto, Massa, atual ministro da Economia, é acusado por seus oponentes de ser responsável pela atual crise econômica. A Argentina enfrenta uma inflação anual de quase 140% e 40% de pobreza. Desde 2018, o país tem um programa de crédito de 44 bilhões de dólares (R$ 221 bilhões) com o FMI.

"Queremos discutir com o Fundo Monetário Internacional um programa que envolva o crescimento e o desenvolvimento da Argentina, e não um programa relacionado ao crescimento e ao acúmulo de reservas para que eles possam cobrar sua dívida", disse Massa.

Já a conservadora Patricia Bullrich, da coalizão de centro-direita Juntos por el Cambio, afirma que a proposta de Milei de dolarizar a economia seria feita "com salários da fome". Ex-ministra da Segurança, Bullrich também criticou-o por sua posição sobre o assunto. "Milei quer liberar as armas, e as armas liberadas caem nas mãos de criminosos", disse ela.

Com 67 anos e envolvida na política desde a adolescência, quando militou na Juventude Peronista nos turbulentos anos 1970, em plena atividade da guerrilha Montoneros. Patricia Bullrich se apresenta como linha-dura, sem meias palavras em um país em crise. 

A história de sua família se entrelaça com a da Argentina. Seu bisavô, Honorio Pueyrredón, foi um dirigente radical renomado (social-democrata). A família Bullrich foi proprietária da mais importante casa de leilões de gado de Buenos Aires no século XIX.

Patricia foi ministra de Segurança no governo Macri (2015-2019) e ministra do Trabalho no de Fernando de la Rúa (1999-2001). Atual presidente do partido PRO, cultivou a imagem de mulher decidida e intransigente. "A coragem, a decisão e a firmeza a caracterizam. Tem grande capacidade de avaliação política", disse à AFP Fernando Iglesias, dirigente muito próximo dela.

A luta diária dos catadores em uma Argentina em crise

Com passos rápidos e firmes, Ayelen Torres percorre as ruas de La Matanza, onde, junto com sua amiga Sabrina Sosa, coleta papelão e plásticos que habilmente empilha e compacta em um carrinho. Esses resíduos são o tesouro com o qual elas alimentam seus filhos. A pobreza afeta 40% dos argentinos e é um tema central na campanha para as eleições presidenciais deste domingo em um dos países mais ricos do mundo há um século, que hoje sofre com uma inflação anual de quase 140%.

“Eu me sinto como uma heroína. É preciso ter força e coragem para se dedicar a isso”, afirma Ayelen, de 25 anos e mãe de duas meninas, que sempre viveu em La Matanza, um dos centros de votação mais cobiçados da Argentina, com 1 milhão de eleitores. Sobre as eleições - disputadas no primeiro turno entre o libertário de extrema-direita Javier Milei, o ministro da Economia peronista Sergio Massa e a conservadora Patricia Bullrich - ela não tem grandes expectativas. “Seja lá quem vença, ainda vou ter que me levantar às seis da manhã para catar papelão.”

Em algumas horas, as duas mulheres vestidas com camisetas ou coletes azul-marinho que as identificam como parte da cooperativa coletaram 76 quilos de materiais que agora serão classificados no centro de reciclagem de La Matanza. Em um bom dia, podem dobrar essa quantidade, assim como o pagamento que as ajuda a enfrentar a crise econômica da Argentina. “O papelão é nosso pão de cada dia”, diz Sabrina, de 29 anos, mãe de um menino de 7 que cria sozinha. Está grávida de três meses e pretende continuar trabalhando na cooperativa Construyendo, da qual faz parte há quase três anos. Anteriormente, trabalhou em uma pizzaria, como vendedora em uma feira e também como babá. Nunca teve um contrato formal.

Cerca de 120 pessoas trabalham em turnos na organização, que também possui uma creche infantil a poucas quadras dali. Ayelen e Sabrina vão à planta cinco dias por semana para classificar e embalar. Recebem um pagamento equivalente à metade do salário mínimo através de um auxílio do Ministério do Desenvolvimento Social. A cooperativa fornece os equipamentos. “Este trabalho estabilizou minha renda. É a primeira vez que tenho um trabalho reconhecido. É um trabalho digno”, explica Ayelen, que era vendedora ambulante e agora se sente feliz. O material reciclável que coletam nas ruas mais movimentadas de La Matanza é vendido à própria cooperativa.

Os “cartoneros”, como são conhecidos os catadores de materiais recicláveis na Argentina, surgiram em 2001, quando o país enfrentou a pior crise econômica, social e política de sua história recente. Depois, em 2020 e 2021, durante a pandemia, muitos mais se juntaram a eles. “Muitos que tinham empregos garantidos perderam tudo, perderam direitos e muitas coisas”, lembra Santiago Brítez, catador desde o início dos anos 2000 e agora responsável pelo centro de reciclagem de La Matanza. Em todo o país, eles são mais de 150 mil, de acordo com a Federação de Catadores, Carroceiros e Recicladores.

Argentina amplia troca de moedas com a China

  • O governo argentino chegou a um acordo com o governo chinês para fortalecer as reservas do Banco Central através da ampliação de uma troca de moedas, pela qual a Argentina terá acesso a 6,5 bilhões de dólares (R$ 33 bilhões), anunciou o presidente Alberto Fernández às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais.
  • O montante representa 1,5 bilhão de dólares (R$ 7,6 bilhões) a mais do que a Argentina tinha negociado com a China. "A China ampliou o uso do swap que já tínhamos concedido, tínhamos solicitado 5 bilhões de dólares e eles concederam 6,5 bilhões de dólares, o que representa um grande alívio para a Argentina", declarou Fernández.
  • Em um comunicado, o Banco Central argentino informou que, segundo o acordo, esses fundos "podem ser aplicados a objetivos de desenvolvimento do comércio bilateral e à estabilidade dos mercados financeiros na Argentina".
  • As reservas do Banco Central estão em 24,99 bilhões de dólares (R$ 126,35 bilhões), de acordo com o balanço oficial divulgado terça-feira, mas as reservas líquidas estão negativas em cerca de 5 bilhões de dólares (R$ 25,3 bilhões), segundo analistas.
  • O fortalecimento das reservas é vital em um cenário de grande volatilidade, com uma corrida cambial que levou a cotação do dólar paralelo a ultrapassar a marca dos 1 mil pesos por dólar, enquanto no mercado oficial, controlado pelas autoridades, o dólar está cotado a 365 pesos.

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Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895