Jovens brasileiros revelam os desafios do sonho de ser jogador de futebol na Polônia

Jovens brasileiros revelam os desafios do sonho de ser jogador de futebol na Polônia

Correio do Povo conta a história de atletas que vivem o lado não tão glorioso do futebol

Por
Fabrício Falkowski

Com auxílio de um empresário brasileiro, uma agência polonesa inaugurou neste ano uma rota para levar jovens jogadores do Brasil para times daquele país. Lá, atuam em clubes pequenos, ganham pouco dinheiro e sentem saudades da família e de sua terra natal, mas mantêm o constante desejo de viver da bola.

Qualquer campinho esburacado e careca em Alvorada era capaz de fazer a felicidade de Gabriel Borges da Costa, o Índio. Ele começou a jogar bola na mesma época em que aprendeu a caminhar. Era só uma brincadeira, um passatempo para deixar de lado, pelo menos por breves períodos, a infância precária. Com o tempo, passou a frequentar escolinhas e projetos sociais da cidade sempre com um objetivo: transformar-se em jogador de futebol e, com isso, ganhar dinheiro suficiente para ajudar a família. Mas o sonho não prosperou. Ele fez testes no Grêmio e em clubes menores de Santa Catarina e de Minas Gerais e, apesar do esforço, jamais foi aprovado.

No início deste ano, aos 21 anos, quando o projeto de ser atleta estava prestes a ser abandonado, uma pessoa conhecida disse a Índio que haveria um teste para jogadores de futebol interessados em atuar em clubes da Polônia. Ele não entendeu direito, mas topou o desafio. Juntou alguns trocados para a passagem, reuniu coragem, recolheu a chuteira e o calção e foi até Eldorado do Sul. Foi aprovado e, com a cabeça cheia de esperanças, voou até a Polônia, onde desembarcou em 20 de janeiro, sem saber direito o tamanho da aventura para a qual se voluntariou.

Gabriel Índio é mais um. Mas há outros, muitos outros, jogadores que estão desembarcando no país do leste europeu desde janeiro em busca da realização do sonho da bola. Estima-se que pelo menos 30 jovens jogadores, principalmente do Rio Grande do Sul, mas também de outras regiões brasileiras, já estejam na Polônia ou estão por embarcar nos próximos dias.

A ideia é não concorrer com a Dupla Gre-Nal, mas buscar atletas que não teriam melhores oportunidades na carreira

O esquema é patrocinado pela Premium Wrzos, uma agência de jogadores com atuação naquele país. Associada ao empresário Márcio Polonês, que sempre atuou no ramo do turismo e mais recentemente passou a dedicar-se ao futebol, ela se voltou ao mercado brasileiro, principalmente do estados do sul, em busca de talentos esquecidos pelos grandes clubes nacionais. A ideia não é concorrer com Inter, Grêmio ou mesmo desviar valores cujo destino seria clubes europeus de maior destaque, mas levar aqueles jogadores que, de outra forma, não teriam melhores oportunidades na carreira. É o caso de Gabriel Índio, por exemplo.

O problema é que nem sempre as condições são ideais. Gabriel Índio desembarcou em Varsóvia e, de lá, foi para Debe Wielkie, cidade de cerca de 8 mil habitantes que fica a 40 quilômetros da capital polonesa. “Eu ia parar de jogar futebol. As coisas não estavam dando certo. Estava ficando desacreditado, não tinha empresário, não tinha perspectiva. Foi quando fiquei sabendo da peneira. Eu fui, porque não tinha nada a perder. Passei e estou aqui”, lembra.

O primeiro passo no novo país foi, junto com os demais brasileiros que haviam desembarcado com ele ou já estavam lá, participar de alguns jogos de demonstração organizados pelos agenciadores contra times poloneses. O objetivo era mostrar os predicados dos recém-chegados atletas aos potenciais novos empregadores. Colocá-los, quase sem figura de linguagem, na vitrine. Alguns receberam propostas logo depois do jogo de pequenos clubes de toda a Polônia. Gabriel Índio, não. Para não precisar enviá-lo de volta ao Brasil, os agentes da Premium Wrzos selecionaram-no para o próprio clube, o Advit Wiazowna, que disputa a sétima divisão polonesa e está no limite da profissionalização.O atleta de 21 anos, que passou a infância sonhando com a carreira na bola, foi transferido para uma casa, que divide com outros três brasileiros, todos do Advit Wiazowna, na pequena cidade polonesa. A rotina é de ociosidade e muita saudade da família e do Brasil. Gabriel Índio aproveita para correr pelas ruas do lugar pela manhã - o que também é uma forma de passar o tempo -, descansa à tarde e, antes da noite, é buscado para, junto com os demais brasileiros da casa, treinar no campo de grama bem cuidada, mas sem arquibancadas, do Advit Wiazowna.

As refeições são entregues todos os dias, perto da hora do almoço. O jantar e o café da manhã são preparados pelos próprios brasileiros, com mantimentos fornecidos pelo clube uma vez por semana.

Gabriel Índio deixou Alvorada no início do ano para tentar a sorte em um clube da 7ª divisão polonesa. Crédito: Arquivo Pessoal

Entre o preconceiro e a saudade

Não há lazer, nem passeios. Também quase não há integração, já que o idioma é uma barreira praticamente intransponível. O que há é estranhamento por parte da população local. Ou preconceito, se for usada a palavra mais exata.

“Eu acho que eles (poloneses) estranham um pouco a gente, até porque quase só se vê branco na rua. Eu nem sou negro, sou moreno (Gabriel tem feições indígenas, com cabelo preto e pele escura) e já senti muito preconceito aqui. Um dia, fui ao mercado e acabei acusado de ter roubado um chocolate. Mas não tinha roubado nada. Fui levado para uma salinha e o cara (dono do estabelecimento) chamou a polícia. Eu tentava puxar o tradutor no celular para explicar para ele que eu não tinha roubado nada, mas ele não queria nem olhar. Fiquei trancado em uma salinha como se fosse condenado, até chegar a polícia. Quando chegou, eles olharam as câmeras e foram obrigados a me liberar, porque eu não tinha feito nada”. O relato de Gabriel Índio sobre uma visita sua a um mercado de Debe Wielkie não é muito diferente do que ocorre no Brasil, o que não deixa de ser grave.

O gaúcho criado em Alvorado tem contrato com o Advit Wiazowna. Voltar para o Brasil é um pensamento que não se esvai, embora o objetivo seja permanecer e perseverar na busca por seu sonho. “A vida está complicada. De vez em quando, a cabeça não ajuda. Ficar longe da família é difícil, apesar de tudo. Família é família. A gente quer parecer forte, não quer chorar. Quando a saudade aperta, eu fico no quarto, com a cabeça cheia”, lamenta.

O ponto baixo de sua até agora trajetória na Polônia ocorreu apenas algumas semanas após o seu desembarque. Por telefone, ele recebeu a notícia da morte de um dos seus irmãos. “Eu nem sei direito como foi. Mas sei que foi por violência. Essas coisas são difíceis. Mataram meu irmão e eu nem pude me despedir”, relata. Índio, por telefone, tentou consolar a mãe e o pai, além das três irmãs e os outros dois irmãos que sobraram em Alvorada, além de se auto consolar. “Doeu muito.” 

Mas, assim como na infância, a bola ainda alivia a rotina do gaúcho, mesmo nos campos poloneses. Até a voz do jogador muda quando ele fala sobre ela. “Sempre treinei como atacante pelos lados. Depois, ainda no Brasil, virei volante. Aqui, sou centroavante, apesar de ter apenas 1,69 metro de altura. Faço gols. Já marquei cinco em nove jogos. Estou indo bem. Acho que eles (poloneses) vão querer ficar comigo. Se isso acontecer, vou querer melhores condições”, diz.

Emerson, 19 anos, é filho de um marceneiro e de uma diarista. Na Polônia, ele tenta construir carreira / Crédito: Arquivo Pessoal

Outros brasileiros

A situação dos demais brasileiros não parece muito diferente, embora possa melhorar ou piorar um pouco dependendo do clube para o qual se joga. Kelvin Pacheco, de 19 anos, divide a casa e o sonho com Gabriel Índio. Ele também está vinculado ao Advit Wiazowna. “Sempre tive a vida vinculada ao futebol. Meu primeiro sonho já foi ser jogador. O seguinte, jogar na Europa”, afirma.

Nascido e criado em Camaquã, no interior do Rio Grande do Sul, acostumou-se desde cedo a buscar oportunidades em outros lugares, ainda que não tão distantes quanto a Polônia. Tentou em Ivoti (RS) e em Santa Catarina. Chegou a parar de treinar em alguns momentos, como durante a pandemia, sem jamais deixar de lado o sonho. “Um dia, fiquei sabendo dos testes para a Polônia. Fui até Guaíba e participei da peneira. Logo depois, já disseram para eu arrumar a documentação que eu iria para a Europa. Fiquei feliz e assustado”, lembra.

“A adaptação foi complicada. Chegamos no inverno. A gente pensa que é só uma nevezinha, mas os pés congelam, as mãos congelam. É bem difícil. Além disso, tem a língua. No começo, a gente não entendia nada do que eles faziam. E o futebol é um pouco diferente, mais tático”, diz Kelvin. De acordo com ele, a rotina é dura, com poucas opções de lazer fora do futebol, mas a motivação para continuar jogando é maior: “Às vezes, a gente não percebe que está vivendo o sonho de jogar na Europa. Isso não é pouco. Pelo menos, o pessoal do clube nos abraçou. Sinto isso. Já passei por lugares piores no Brasil”.

"Quando surgiu a chance de vir para a Polônia, não pensei duas vezes".

Matheus Carvalho Rezende, 24 anos, também está na Polônia desde janeiro. Sua situação, entretanto, é bem melhor que a de Índio e Kelwin. Ele tem 24 anos e nasceu em Mineiros, cidade do interior de Goiás − por isso, é conhecido por Matheus Goiano. Sua iniciação de “carreira” foi aos 10 anos, quando passou em um teste no Inter. Ficou no clube do Beira-Rio até completar 18. Depois, passou pelo Grêmio e, em seguida, foi para o Avaí. Também jogou no Pelotas, onde disputou o Gauchão e a Série B do Brasileirão. Ou seja, conseguiu construir uma carreira, principalmente durante as categorias de base, em clubes grandes, o que é uma vantagem.

“Eu estava me preparando para alguma situação já no final do ano. E a gente queria ir para fora do Brasil, de alguma forma. Quando surgiu a chance de vir para a Polônia, não pensei duas vezes. Aceitei e estou aqui”, afirma Matheus. Ele está no Energia Kozienice, da cidade de Kozienice, que tenta subir para a quarta divisão. Assim como os outros, foi selecionado depois de participar de três jogos de demonstração em times somente de brasileiros. Foi aprovado e ficou, junto com outros dois compatriotas que foram para a Polônia da mesma forma. “Estou buscando me adaptar e abrir uma porta. Depois, vamos ver como fica”, afirma. “Fui bem recebido. No começo, a gente se apavorou com o frio. Aqui, conheci o frio de verdade, abaixo de zero. Mas fui vivendo. O clube tem estrutura boa. Está sendo bom e, se tudo der certo, vou ficar ainda mais feliz.”

Emerson Lucas Santos Piasseski tem 19 anos e, assim como os demais, é filho de família humilde. “Minha mãe é diarista e meu pai é marceneiro. Tento ajudar, porque também tenho uma irmã de 12 anos, da forma como posso”. Nascido em Porto Alegre, começou ainda criança a jogar futsal. Depois, passou pelas categorias de base do Cruzeiro e do São José. Também jogou em clubes de Minas Gerais. No começo deste ano, recebeu o convite para ir para a Polônia. “Meu empresário me ligou perguntando se eu tinha passaporte. Eu disse que tinha. Estava em Minas Gerais e aceitei o desafio.” 

Ele desembarcou na Europa em 17 de janeiro e passou pelos jogos de demonstração. O time que se interessou pelo zagueiro foi o Sadownik, da cidade de Waganiec. Assim como nos casos anteriores, são localidades pequenas, no interior da Polônia. “Estou tentando aproveitar. Tem uma cidade maior aqui próximo e alguns pontos turísticos. Tento conhecer coisas novas, passar o tempo”, relata Emerson. “No Brasil, estaria na base, jogando em algum time sub-20. Aqui, é um começo”, acrescenta.

Promessas não cumpridas

Em geral, o salário dos jogadores que estão trocando o Brasil pela Polônia no esquema patrocinado pela Premium Wrzos é baixo, segundo ele, menor do que o prometido antes do embarque, ainda no Brasil. Por outro lado, a empresa banca os custos de transporte, inclusive das passagens aéreas até a Polônia, e a alimentação dos atletas enquanto ainda não estão vinculados a algum clube.

Segundo o relato dos entrevistados pelo CP, o salário médio dos jogadores gira ao redor de 1 mil złotys (cerca de R$ 1,2 mil) ou menos, dinheiro que não dá para quase nada, mas, como a maior parte das despesas é custeada pela empresa agenciadora, é suficiente para a subsistência. Em grande parte dos casos, os jogadores recebem em dinheiro vivo das mãos dos dirigentes. 

Mesmo ganhando menos, eles aceitam o desafio na esperança de evoluir na carreira. “Não vou te mentir. Eles (empresários) falaram que a gente iria receber pelo menos 1 mil euros por mês. Daí, eu fiz os cálculos. Vai dar para ajudar a família e se manter na Polônia. Pensei: ‘Beleza, vou ficar de boas’. Quando a gente chegou aqui, começou uma confusão. Ficamos sabendo que a gente não ia receber em euros, mas em złotys, e a quantia era mais baixa. Ficamos meio brabos, mas não tinha o que fazer. Tinha que aceitar ou virar as costas e voltar para o Brasil”, lembra Gabriel Índio.

"Estou recebendo menos do que me prometeram e menos do que imaginei. Nunca ganhei tão mal, tão pouco"

A situação se repete mais ou menos igual com todos. “Estou recebendo menos do que me prometeram e menos do que imaginei. Em todos os clubes que eu passei, nunca ganhei tão mal, nunca ganhei tão pouco. Acho que prometeram mais para todo mundo que está aqui. A conversa era essa. Agora, a realidade é outra”, continua Matheus. 
Todos os jogadores entrevistados pelo Correio do Povo encaravam o primeiro estágio na Polônia, apesar das promessas não cumpridas, como um investimento. “A gente está em um primeiro clube aqui. A grana não é alta, mas acho que é uma porta que estamos abrindo. A minha intenção é ficar, apesar de a saudade bater de vez em quando”, continua Kelvin, que segue: “Estou conseguindo juntar um pouco. Até mando um pouco para casa. Não é muito, porque o salário não é alto, mas consigo ajudar”. 

A promessa é que eles recebam dos empresários a passagem de volta para o Brasil, quando for o momento de voltar. Até porque, com os rendimentos atuais, é quase impossível juntar dinheiro suficiente para adquirir o bilhete. “Eu já falei para os meninos aqui: ‘Mano, se a gente trabalhar o ano inteiro e tiver que pagar a passagem para ir embora, não vai adiantar nada. Vamos treinar e jogar um ano inteiro, apenas para juntar dinheiro para pagar a passagem. Tomara que não seja assim”, suspira Índio, que, apesar das dificuldades, manda metade dos 720 złotys que ganha por mês para a família em Alvorada.

A Premium Wrzos não cobra valores adiantados dos jogadores. Ela investe nas passagens e demais despesas, mas retém parte dos direitos econômicos dos jogadores levados por ela. Ou seja, se algum deles realmente “vingar” na Europa, ela ganhará um percentual de uma futura venda − em euros.

Em alguns casos, virar jogador de futebol é um projeto de família. E o projeto de craque leva consigo o peso da responsabilidade / Crédito: Ricardo Giusti

Um sonho que raramente se torna realidade

A formação de jogadores no Brasil e em qualquer parte do mundo é um grande funil. Muitos milhares de jovens sonham em se tornar profissionais em um grande clube da Europa desde os primeiros chutes, mas a esmagadora maioria não consegue sequer chegar a um clube médio, que consiga proporcionar um meio de subsistência digno quando ele atingir a idade adulta. Trata-se de uma seleção injusta e altamente excludente, que gera uma legião de descontentes.

O antropólogo Arlei Sander Damo, que é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, estudou a formação de jogadores no Inter há alguns anos. “Em grandes clubes, esse funil é muito parecido com o vestibular para o curso de Medicina, por exemplo. De cerca de 30 ou 40 jovens que começam na categoria infantil (cerca de 14 anos), apenas um chega ao profissional. Alguns outros poucos, vão para clubes menores, já com estrutura precária. A grandíssima maioria, entretanto, abandona o futebol ou empreende jornadas absolutamente arriscadas, como nesse caso da Polônia”, observa o professor. 

Outro problema é que os clubes não oferecem uma formação complementar que poderia ser útil aos “futuros jogadores” se a trajetória, no futuro, não o transformar de fato em um atleta. Ao priorizarem o futebol, o normal é que os adolescentes releguem a escola a um segundo ou terceiro planos. O resultado é uma formação precarizada.

"Em geral, são jogadores com uma formação cultural precária, se não encontram chances de atuar no Brasil, viram presa fácil" 

“Na França, quem concluiu a instrução como jogador, mas não consegue se profissionalizar, tem uma preparação auxiliar como técnico de futebol. Ele pode trabalhar em escolas ou equipes em bairros ou cidades pequenas. No Brasil, ele não consegue converter os seus conhecimentos sobre o futebol em outra profissão. Ou é jogador ou é nada. Eles precisam começar do zero, fazendo outra coisa, e ficam em uma situação muito vulnerável”, continua Damo.

Há, por fim, uma expectativa familiar. Quando os pais detectam em um filho o dom para jogar futebol, jogam sobre ele a esperança de um futuro melhor, principalmente em famílias de renda mais baixa. Eles creem que o “projeto de craque”, além de alcançar a fama, terá o poder de retirar seus familiares do ciclo de miséria que dura, muitas vezes, várias gerações. Não é incomum, inclusive, que famílias inteiras priorizem a alimentação do dia a dia ao futuro jogador, deixando outros integrantes do clã desassistidos. Ou seja, joga-se sobre uma criança ou um jovem uma responsabilidade imensa, que ele acaba levando consigo por muitos anos, o encorajando e empreender e aventurar-se onde houver uma chance de sucesso. 

“Como, em geral, esses jogadores têm uma formação cultural precária, se não encontram chances de atuar em um clube do Brasil, viram presa fácil e são mobilizados e levados para outros países mesmo sem dominar a língua ou saber, minimamente, onde estão. Esses jogadores estão em uma situação análoga a qualquer tipo de migrante que está destinado a trabalhos precários, também conhecidos como ‘trabalhos sujos’. Isso acontece pela situação de vulnerabilidade a que estão submetidos”, observa o professor.

De acordo com ele, esses aventureiros da bola cumprem um tipo de perfil que pode ser identificado. Eles sentem uma pressão, geralmente familiar, por ganhos econômicos, têm disposição de se expor ao risco e não possuem formação profissional fora do futebol. “Esses jovens buscam um sonho, mas talvez eles precisem acordar desse pesadelo. Eles precisam chegar à conclusão: ‘Deu. Tentei, mas não deu. Agora, vamos buscar outra coisa, desta vez fora do futebol’. O fim dessa ilusão é doloroso, mas necessário em muitos casos”. 

Eduardo de Oliveira comanda a escolinha que formou Gabriel Índio e outros jogadores que estão na Polônia / Crédito: Ricardo Giusti

O treinador

Eduardo de Oliveira, 72 anos, também tinha o sonho de jogar bola profissionalmente. Não conseguiu, como a maioria. Dedicou-se a outras atividades e, há mais de duas décadas, mantém a Super Craque, que é uma escola de futebol, misto com projeto social, em Alvorada.

Foi lá que Gabriel Índio começou a jogar. “Ele é uma das crianças carentes que sempre trabalhou comigo. Eu já coloquei ele no Grêmio, em vários lugares, mas não deu certo. Aí surgiu essa oportunidade. Fizeram uma seletiva em Guaíba. E eu levei ele e mais dois meninos. Ele passou e foi. Até agora, tudo que o pessoal da Polônia me prometeu, cumpriu”, afirma Eduardo, que também ficou com um porcentual dos direitos econômicos de Gabriel Índio. 

Eduardo entende as dificuldades enfrentadas por Índio na Polônia, mas acredita que ele deva perseverar na busca de uma carreira fora do Brasil. “Foi o que eu sempre disse para ele: ‘Cara, vai atrás de seus sonhos para que amanhã ou depois tu possas tirar teu pai e a tua mãe de onde tu morava’”, finaliza.

Márcio Polonês é a ponta do esquema da Premium Wrzos no Brasil / Crédito: Arquivo Pessoal

O empresário

As condições encontradas pelos jogadores brasileiros na Polônia não são muito diferentes daquelas que eles encontrariam − ou já encontraram − em clubes menores do interior do Brasil. Os salários são igualmente ruins, assim como a instabilidade no emprego. A maioria dos times menos importantes dos rincões brasileiros impõem contratos curtos para os jogadores, muitas vezes de apenas três meses, fazendo com que eles joguem em dois ou mais lugares por ano, sempre com medo de não receber o próximo salário.

Ou seja, o tipo de jogador que opta pela aventura na Polônia está em menor ou maior grau acostumado às dificuldades. Em entrevista ao CP em junho, o empresário Márcio Polônes, que serve como ponta de lança no Brasil da Premium Wrzos, apresentou valores de salários diferentes daqueles relatados pelos próprios jogadores. Depois, em novo contato com reportagem, no início de julho, relativizou os rendimentos dos atletas, reconhecendo que alguns ganham menos de R$ 1 mil por mês, mas disse que todos sabem, antes de sair do Brasil, quanto receberão na Polônia.

A seguir, trechos da entrevista como empresário Márcio Polonês.

Como é que começou esse esquema?

O futebol brasileiro é muito bem visto na Polônia. Então, como eu trabalho com turismo desde 2005, conheci algumas pessoas que me pediram a indicação de jogadores. E eu acabei enviando alguns, que acabaram se destacando. Não era uma coisa profissional, mas para ajudar os meninos. E o que aconteceu? Dois anos atrás, eu conheci uma agência de futebol que estava buscando jogadores em início de carreira. Então, em uma conversa dessas, percebemos que no Brasil há grandes jogadores que não têm oportunidade. Então, nós buscamos jogadores que estão sem clube ou que, por algum motivo, não foram para frente. Nós captamos e levamos esses jogadores para a Polônia. Hoje, nós temos 14 jogadores jogando e aproximadamente mais 12 embarcarão em julho daqui do Rio Grande do Sul. Esses jovens recebem a passagem aérea, o visto de trabalho, toda a documentação necessária, clube, treinamento, moradia, alimentação e salário.

Esses 14 que estão jogando lá são só do Rio Grande do Sul ou são de todo o Brasil?

Não, eles são do Brasil, mas alguns passaram pelo Rio Grande do Sul. Então, de alguma forma, eles têm algum tipo de vínculo com o Estado. Importante dizer que ninguém paga absolutamente nada para fazer as avaliações.

Há algum tipo de preparação antes da ida à Polônia?

Nós, nessas avaliações, conversamos com o atleta sobre a carreira dele, sobre onde ele jogou. Tentamos entender também a questão mental. Tentamos ver se ele tem noção de onde fica a Polônia, a Europa.

Bom, deixa eu ver se eu estou certo. Já falei com quatro atletas que estão na Polônia. Eles participaram das peneiras, passaram na peneira e viajaram. Chegando lá, fizeram uns jogos de demonstração, para aparecerem. Esse é o sistema de seleção?

Sim, alguns também mandam vídeos, mas eles (clubes poloneses) gostam de assistir aos jogadores ao vivo. Então, nós levamos e organizamos esses jogos. No último, teve a presença de representantes de mais de 60 clubes da Polônia. A Polônia tem dez ligas de futebol, com quase 2 mil times participando dessas dez ligas. É comum um jogador receber três, quatro propostas.

Quem paga despesas de transporte, hospedagem, etc?

Nós pagamos a passagem aérea e a legalização deles lá. Todos eles viajam legalizados, com visto. E eles recebem, até chegarem a algum clube, alimentação, academia e treino. Tudo é pago pela agência Premium.

Como é a adaptação dos jogadores lá?

A Polônia tem muitas ligas (divisões), elas são muito organizadas. Um time de quinta, sexta liga, tem uma estrutura equivalente a uma segunda divisão no Brasil em termos de qualidade de estádio, de gramado. O jogador precisa de um período de adaptação, porque muda a alimentação, o idioma. Ele fica seis meses jogando em algum time que dá, além da estrutura, moradia, alimentação, salário. Depois de seis meses, o clube pode assinar com esse atleta em definitivo.

"Não baixa de 500 euros, podendo chegar a 1.000 euros nesse começo. Não é um salário muito bom, mas levando em consideração que têm..."

Como o sistema se financia?

O negócio se financia no momento que há uma transferência de um jogador para um grande clube (por isso, a agência mantém parte dos direitos econômicos dos atletas). Por isso que nós buscamos a excelência. Ou seja, eu pego um jogador como o Matheus Goiano, que jogou no Grêmio e no Inter, e ele faz quatro jogos e três gols. É um jogador que era uma grande promessa do Brasil. Em determinado momento, por problemas que não vem ao caso, não conseguia mais atuar no Rio Grande do Sul. Nós levamos esse atleta lá. O Gabriel (Índio) também marcou dois gols em um mesmo jogo esses dias. São jogadores que vêm se destacando rápido. Então, a nossa projeção é que em dois anos esses jogadores, que chegaram no zero aqui, estejam na Superliga da Polônia em dois anos.

Quem define o salário dos jogadores? E quando esse valor é definido?

O jogador, quando saí do Brasil, sabe que nos primeiros seis meses vai receber moradia, a alimentação, as passagens, a documentação e um salário equivalente a 600, 700 euros. Pode ser mais, mas essa é a média. Não baixa de 500 euros, podendo chegar a 1.000 euros nesse começo. Não é um salário muito bom, mas levando em consideração que têm...

E se o jogador chegar lá, não se adaptar e quiser voltar? O que acontece?

Já aconteceu com duas pessoas. E a agência pagou a passagem de volta e está tudo certo. Mas eles desistiram na primeira semana, antes de começarem a jogar. Depois que eles começam a jogar, não desistem mais. De qualquer forma, hoje, os novos contratos preveem que o jogador deverá ficar pelo menos seis meses na Polônia. Ninguém é obrigado a ficar, mas a agência se dispõe a oferecer a passagem desde que ele fique seis meses na Polônia.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895