Logradouro, substantivo (bem) masculino

Logradouro, substantivo (bem) masculino

Nos espaços públicos, o reconhecimento aos homens ainda é a imensa maioria. Em Porto Alegre, há mais de 10 mil lugares que podem ser enquadrados na categoria logradouro. Desses, apenas 476 homenageiam mulheres

Por
Christian Bueller

Que as mulheres, em situações específicas, são lembradas por sua força, determinação e coragem, não há dúvidas. Estas características, e muitas outras, inspiraram homens a nominarem suas criações através dos tempos em homenagem a elas. De “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci, até “Michelle”, dos Beatles, obras das mais variadas artes ganharam fama mundo afora também por conta de suas musas. Há uma tradição de pescadores e comandantes de navio que batizam suas embarcações com nomes femininos, como forma de companhia nas longas viagens – recurso utilizado por muitos caminhoneiros com os seus veículos. Fenômenos da natureza, como furacões e vulcões, e descobertas de novas espécies de seres vivos ou de estrelas também instigam especialistas a adotarem tal deferência.

Porém, o mesmo não acontece no reconhecimento aos feitos das mulheres no momento de designar espaços públicos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há mais de 800 mil logradouros em 5.570 cidades brasileiras e apenas 20% de ruas, praças, avenidas e demais locais públicos prestam homenagens a pessoas do sexo feminino - para cada espaço público que tem nome feminino, há quatro com nomes masculinos. O cenário não se restringe ao Brasil. Ao se aprofundar em algumas capitais nacionais, o número é ainda mais baixo. Em Curitiba, 7,5% das mulheres são lembradas e, em São Paulo, 7,5%. Em Porto Alegre, o dado cai ainda mais: 4,7%, com 476 nomes de mulheres para pouco mais de 10 mil logradouros.

Os nomes das ruas de uma cidade são definidos pela Câmara Municipal. Em Porto Alegre, a Lei Orgânica determina que compete, privativamente, ao município “criar, organizar e suprimir distritos e bairros, consultados os munícipes e observada a legislação pertinente”, cabendo ao Legislativo dispor, com a sanção do prefeito, sobre denominação de próprios municipais, vias, logradouros e demais equipamentos públicos. Esses nomes são objeto de lei de iniciativa do prefeito ou dos vereadores. Os logradouros podem ser enquadrados entre as categorias estrada, avenida, rua, praça, acesso, largo, rótula, esplanada, travessa, servidão, parque, espaço e mirante. Em 2007, quando era presidente da Câmara, a então vereadora Maria Celeste se aprofundou em uma pesquisa para descobrir a representatividade nos espaços públicos da Capital gaúcha. Seu trabalho “Logradouros públicos em Porto Alegre: presença feminina na denominação” instituiu 379 verbetes com representantes do seu gênero reconhecidas. Ou seja, de 15 anos para cá, apenas 97 mulheres receberam a honra de intitular espaços públicos, em uma antítese à avalanche de homenageados do sexo oposto.

Segundo a ex-vereadora, o número tão reduzido confirmou a “invisibilidade das lutas das mulheres na sociedade” ainda nos dias atuais. “As homenagens prestadas em nomes de ruas e logradouros marca a importância da vida e história delas. São referências educacionais, artísticas, lideranças comunitárias, políticas e defensoras de direitos, cada uma a seu tempo e época. Somos a maioria da população e lamentavelmente não ocupamos os espaços de poder na mesma proporção”, enfatiza. Maria Celeste faz uma analogia com a representação eleita para a Câmara Municipal. “Hoje, a Casa possui a maior bancada de vereadoras na sua história, ainda assim, nesta legislatura, não teremos uma mulher ocupando a presidência. Em 247 anos de existência, apenas quatro mulheres foram presidentas do Legislativo Municipal e nenhuma mulher eleita prefeita na cidade”, lembra.

A dissertação de mestrado em História de Penha Mara Fernandes Nader, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), traz a discussão sobre “A Sutileza da Discriminação de Gênero na Nomenclatura dos Logradouros Públicos”. Conforme a pesquisa, o poder público escolhe majoritariamente nomes de homens para batizar os espaços públicos por conta de um preconceito histórico que retira a figura feminina da construção da memória da cidade. “As mulheres são pouco lembradas com seus nomes nos logradouros como se elas não fossem dignas do recebimento dessa homenagem”, diz a pesquisadora. Para Penha, trata-se de uma reprodução da desigualdade de gênero, uma vez que está revestido de relações de poder.

Uma história de exclusão da vida pública

Em sua dissertação, Penha Mara Fernandes Nader lembra que, mesmo antes da existência da escrita, agrupamentos humanos tinham formas próprias para manter viva a memória coletiva, a fim de que ficassem preservados os conhecimentos sobre a idade e origem do grupo, além do prestígio das famílias dominantes. “Já na civilização da Mesopotâmia vieram monumentos na forma de colunas, obeliscos, lápides e outros, por meio dos quais se pretendeu imortalizar os feitos reais e mesmo as homenagens fúnebres.” Ao longo dos tempos, as civilizações espalhadas por todos os cantos do mundo empreenderam diferentes ações no sentido de assegurar e desenvolver a criatividade no ofício de salvaguardar as lembranças e recordações. “A denominação de logradouros é uma dessas formas diferentes de preservação da memória de um povo, mesmo que ainda persistam práticas sociais de cunho conservador e perpetuador de desigualdades”, explica a pesquisadora em sua dissertação.

No Brasil, a tradição lusitana de denominar lugares com nomes de origem religiosa, de personalidades ou de acontecimentos históricos, chegou junto com os colonizadores. Em Porto Alegre, muitos dos logradouros de nomes femininos não se referem a personalidades, mas a nomes religiosos, como o bairro Santana ou ruas com Santa Isabel e Santa Mônica. Logo, a tradição de denominar logradouros com nomes de pessoas chama atenção e se torna costume. As denominações mais importantes, em sua maioria, são de pessoas que foram ligadas ao poder, como presidentes (Getúlio Vargas), governadores (Borges de Medeiros, presidente do estado do RS), barões (Barão do Amazonas), generais (Flores da Cunha), coronéis (Aparício Borges) e comendadores (Coruja). “Uma vez que os nomes escolhidos para serem homenageados estão no alcance do sistema de poder local, o conjunto de dados reflete a correlação de forças que o mantém”, salienta Penha.

A professora de história Ana Maria Ribeiro frisa que as mulheres não tinham chance de se destacarem na sociedade porque eram relegadas a papéis domésticos. “Durante séculos, as funções predominantes eram a reprodução, amamentação e criação dos filhos”, conta. No período renascentista, entre os séculos XIV e XVI, as atividades laborais delas, centradas na confecção e vistas com algum destaque na comunidade, eram desvalorizadas e mal remuneradas. “Para se ter uma ideia, até o século XIX, não havia registro de mulheres nas universidades, não havia como se especializar. Por exemplo, muitas eram parteiras, mas perderam o lugar para os obstetras que se formavam”, recorda a historiadora.

O preconceito da inferioridade feminina em relação ao masculino foi propagado ao ponto de praticamente instituir que a mulher não pudesse ser protagonista nas conquistas da sociedade, segundo Ana Maria. “Na sua obra ‘A origem das espécies’ (publicada em 1859), o naturalista Charles Darwin diz, com todas as letras, que ‘o homem é mais poderoso em corpo e mente que a mulher e que não surpreende que tenha ganhado o poder de seleção’. Se escrevesse isso hoje, seria cancelado”, grifa. A professora e a pesquisa concordam que o movimento feminista surgido no século passado vem tentando minimizar esta ideia. Para Penha, a força das manifestações em favor da causa obrigou prefeitos e vereadores a mudarem a visão sobre o tema. “Aqueles que possuíam a prerrogativa legal para o exercício do poder de dar nomes aos logradouros públicos passaram a justificar suas indicações com argumentos bem mais compatíveis com toda uma realidade permeada pela obra do movimento feminista”, afirma a pesquisadora.

Com o passar dos anos, muitas mulheres chegaram a cargos que vão de presidentes de grandes empresas a mandatárias de repúblicas. No entanto, a ex-vereadora Maria Celeste reflete sobre o tanto que ainda é necessário se discutir acerca do tema. “Pesquisas demonstram que cresceu a diferença entre gêneros no mercado de trabalho. As mulheres trabalham em média três horas semanais a mais que os homens, incluindo trabalho doméstico e cuidado com os outros, e continuam recebendo salário menor. O preconceito e a discriminação passaram a níveis absurdos. Ataques e ameaças são cotidianos a vereadoras e deputadas, imagine o sofrimento das mulheres negras da periferia”, pontua. Para ela, a luta por igualdade é permanente. “Só seremos uma sociedade melhor se tivermos homens e mulheres capazes de buscar e construir esta possibilidade”, conclui.

Também nos monumentos

A estátua da cantora Elis Regina, à beira do Guaíba, é uma das poucas que homenageia mulheres na capital gaúcha. Crédito: Ricardo Giusti / CP

Essa mesma desigualdade é verificada, também, em relação a monumentos e esculturas de Porto Alegre. Há apenas cinco obras atreladas à figura feminina. Uma delas ainda sorri nas proximidades da Usina do Gasômetro, de frente para o Guaíba, a estátua da cantora Elis Regina. Inaugurada pela prefeitura no aniversário de 237 da Capital, é confeccionada em bronze e reproduz a intérprete porto-alegrense em tamanho natural sobre uma base formada por círculos em granito verde e preto, lembrando um LP. Visitantes costumam tirar selfies ao lado de um banquinho, do mesmo material, localizado perto da homenagem à artista, tida por muitos como a maior cantora do Brasil de todos os tempos. Furacão no palco, a Pimentinha, como era conhecida, começou a cantar com apenas 11 anos. A carreira de Elis decolou rapidamente e, logo, a cantora se mudou para São Paulo. “Há gaúchos que costumam dizer que ela virou as costas para o Estado. Mentira! Aqui ela não conseguiria fazer sucesso nacional”, diz a fã Valquíria Santos, em visita à estátua, de autoria do artista plástico Joás Pereira Passos. Sucesso de vendas, Elis transitou por vários gêneros, bossa nova, jazz, MPB, rock e samba. Fez parceria com os maiores e não se intimidou quando esteve ao lado de Milton Nascimento, Tom Jobim e Ivan Lins. Morreu aos 36 anos, deixando três filhos, o produtor João Marcelo Bôscoli e os cantores Pedro Camargo Mariano e Maria Rita.

Outra obra feminina é a estátua em homenagem à índia Obirici, concluída em 1975, quando o então prefeito Telmo Thompson Flores inaugurou o viaduto no cruzamento das avenidas Plínio Brasil Milano e Brasiliano Índio de Moraes na zona norte. A escultura foi modelada pelo artista Mário Arjonas e projetada por Nelson Boeira Fairich. Reza a lenda que ela e outra índia, apaixonadas pelo guerreiro Upatã, disputaram o amor pelo rapaz em uma competição de arco e flecha. Quem errasse o alvo, perderia a chance de casar com ele, o filho mais velho do cacique da tribo Tapiaçu. Muito nervosa, Obirici errou e perdeu. Teria saído, então, a caminhar por uma grande planície arenosa, onde hoje se situa o bairro Passo da Areia. Cansada, teria se sentado embaixo de uma figueira e ali ficado chorando. Em meio a preces e choro, teria pedido com os braços erguidos ao céu que Tupã viesse buscá-la. Das lágrimas, teria se formado um pequeno riacho, que corria sobre a areia, entre colinas e vales, árvores e plantas. Por isso, as mulheres indígenas que perdiam seus maridos em batalhas buscavam consolo nas “lágrimas de Obirici”.

Em 1913, a colônia italiana no RS recolheu recursos para homenagear o casal José e Anita Garibaldi, considerados heróis na Região Sul. Artista daquele país, Filadelfo Simi esculpiu em mármore um conjunto de estátuas lembrando o par e instalou na Praça Garibaldi, entre os bairros Azenha e Cidade Baixa. Passados mais de cem anos, a obra que encantou Porto Alegre demonstra sinais de abandono. O nariz e os dedos de Anita foram arrancados, como se tivessem sido decepados pontualmente pelos vândalos. Nascida em Laguna, em Santa Catarina, Ana Maria de Jesus Ribeiro era costureira e, durante a Revolução Farroupilha, se uniu a José (originalmente Giuseppe) Garibaldi, com quem se casou em 1842. Lutou em campanhas no Uruguai e na Itália, onde faleceu. É chamada lá de “Heroína de Dois Mundos”.

Para o professor do Atelier Livre da Prefeitura, José Francisco Alves, autor do livro “A Escultura Pública de Porto Alegre”, pouco importa aos que gostam de danificar bens públicos se a obra é de um homem ou de mulher. “O monumento mais vandalizado é o do Bento Gonçalves. Cara mais conceituado que este nem tem, ícone histórico, ícone do MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho). E está lá, detonado. Sujo, pichado, vandalizado, peças furtadas, esquecido”, observou. Quanto ao número reduzido de mulheres homenageadas em esculturas em Porto Alegre, Alves acredita que, em outras cidades, este dado pode até ser menor. “É um reflexo da sociedade. A mulher sempre foi relegada a uma posição inferior ao homem, com raras exceções vemos mulheres despontando, algo que, com o tempo, vem mudando. É até uma constatação óbvia, já que não era permitido a elas terem papéis que representassem conquistas que resultassem em homenagens com estátuas, por exemplo”, analisa. Segundo o professor, as participações femininas eram pontuais. “A questão, em tempos recentes, é como resolver isso. Mas a própria sociedade não se interessa. Olha todos esses anos que a estátua da Anita está desse jeito e assim continua”, lembra Alves, que ainda cita como descaso o roubo da estátua da Imperatriz Leopoldina, ao lado do viaduto da Avenida João Pessoa.

Luciana

Por volta de 1910, cinco ruas de um loteamento em área nobre do bairro Moinhos de Vento foram batizadas com nomes ligados ao saber e à cultura. Quatro homens homenageados – Hilário Ribeiro, Santo Inácio, Padre Chagas e Barão de Santo Ângelo – e apenas uma mulher: Luciana de Abreu. Pioneira na defesa dos direitos femininos, a poetisa e professora nascida em 1847 lutava pela emancipação das gaúchas e costumava fazer discursos cheios de energia e determinação. Sua história de vida já é de superação, pois foi abandonada quando recém-nascida na Roda de Expostos da Santa Casa de Misericórdia (mecanismo criado na Idade Média e trazido depois para o Brasil para preservar o anonimato daqueles que rejeitavam suas crianças). Com cinco meses, foi adotada por Gaspar Pereira Viana, um reconhecido guarda-livros (contador) da época. Modesta, a família cuidou bem da educação da criança, que demonstrava certa facilidade nos estudos e um gosto especial no trato com outros pequenos da sua idade.

Recitava poesias em saraus, ainda com 5 anos. Ao crescer, casou-se, teve dois filhos e ingressou na Sociedade Parthenon Litterario, associação literária brasileira criada em Porto Alegre, considerada a principal agremiação cultural do Estado no século XIX. Além de ser a primeira mulher brasileira a entrar em uma instituição deste porte, foi pioneira em subir a uma tribuna para expor suas ideias. “Minhas senhoras, nós temos sido vítimas dos prejuízos das preocupações do século; nós temos sido olhadas como seres à parte na grande obra da regeneração social, quando sem nós impossível seria à humanidade aperfeiçoar-se e progredir; porque nós somos mães e o primeiro e mais íntimo vagido da infância do homem recebemo-lo nós em nosso seio, dispensando-lhe os cuidados que são a nossa vigília, as nossas lágrimas, as nossas dores e alegrias, o nosso amor enfim.” Esse foi um de seus discursos. Mulher pequena e de saúde frágil, Luciana faleceu aos 33 anos de tuberculose, em 13 de junho de 1880, “um domingo frio e com chuvisqueiro”, similar ao dia em que foi abandonada ainda bebê, como diz Eloy Terra no livro “As ruas de Porto Alegre”. O nome da professora ficou registrado na cadeira nº 38 da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul e, também, em uma escola pública no bairro de Santana da Capital.

Rafaela

Pouca gente sabe, mas a rua Pinto Bandeira, no Centro de Porto Alegre, se refere a uma mulher. Filha do brigadeiro Rafael Pinto Bandeira, envolvido nas campanhas militares em defesa das possessões portuguesas no Rio Grande do Sul, Rafaela, nascida em 1792, era proprietária da “Chácara da Brigadeira”, alcunha pela qual era conhecida, nas proximidades da Santa Casa de Misericórdia. Ela ofereceu à Câmara Municipal terrenos para abertura de uma nova rua, com 60 palmos de largura, “que desemboque em frente à Caridade (hospital)”. Na época, o Código de Posturas proibia a abertura de ruas com menos de 80 palmos (17,60m) de largura, mas o Legislativo Municipal aprovou a Lei Provincial n° 1085, de 1877, revogando a norma e autorizando a abertura da via para que os terrenos pudessem ser postos à venda. Em 1881, a rua já aparece traçada na planta municipal. Os donos de terrenos com lotes vagos no Centro precisavam ter suas áreas muradas. As exceções eram justamente a ruas Pinto Bandeira, São Rafael (hoje Alberto Bins) e Coronel Vicente (Ferrer da Silva Freire), esposo de Rafaela.

Hoje em dia, muitas mulheres frequentam a rua que tem inúmeras lojas de costura de tecido e aviamentos entre as ruas Voluntários da Pátria e Alberto Bins. Foi primeira via a homenagear uma mulher na Capital, mas raras pessoas dos milhares que passam por ali sabem. “Não fazia ideia. Mas por que não colocaram Rafaela Pinto Bandeira, então?”, questiona a aposentada Giselda Prata, 65 anos, cliente contumaz dos estabelecimentos da região. Segundo a historiadora Ana Maria Ribeiro, era uma “forma velada de exercer o machismo da época”. “Deixaram somente o sobrenome para que se pensasse se tratar de uma homenagem à família, quando era de uma terra pertencente a ela. Seria constrangedor para a época ter um nome de mulher em uma zona central”, afirma a professora.

Curiosamente, antes disso, outra rua era associada a Rafaela. Em 1834, o coronel Vicente manifestou em requerimento à Câmara sua intenção de abrir uma rua por dentro de sua chácara, para ligar a Estrada dos Moinhos de Vento (atual avenida Independência) com o Caminho Novo (atual Voluntários da Pátria). Porém, devido à Revolução Farroupilha, a abertura só foi concretizada em 1845 e a rua foi denominada Rua da Brigadeira. A via virou Rua da União e, depois, como é agora, Rua da Conceição.

Palmira

Em uma via do bairro Humaitá, na zona norte de Porto Alegre, Ismael Pedroso aproveita o tempo bom para levar as cadelinhas Mariah e Tchuca para passear. Ele não sabia, mas a avenida Palmira Gobbi remete a uma das principais defensoras de animais do RS. Nascida na Capital em 1909, filha de um italiano e de uma espanhola, tinha um temperamento forte, mas extremamente afável com pessoas que respeitavam gatos e cachorros, seus primeiros amigos. Aos 8 anos, presenciou um homem maltratando um cão, que apanhava de relho e quase desfaleceu. A menina Palmira apenas chorou. Mas prometeu a si mesma que, quando crescesse, defenderia os bichinhos, nem que precisasse agir com os malfeitores com a mesma moeda. E assim o fez. Em 1949, fundou, 40 anos depois, a Associação Riograndense de Proteção aos Animais (Arpa), que funcionava na sala 23 do Mercado Público, no Centro.

“Quem maltrata animais é mau caráter”, disse Palmira, certa vez, à Folha da Tarde, em 1974. Ela costumava participar de programas de rádio – muitas vezes na Guaíba – para relatar maus-tratos que presenciava ou descobria e pedia punições aos infratores. Toda terça-feira, se reunia com a Brigada Militar que, por meio da rádio-patrulha, conduzia os malfeitores a prestarem depoimento. Na maioria dos casos, eles eram processados. Mas nem sempre a defensora esperava pela lei. Houve casos em que ela arrancava os relhos e chibatas das mãos de carroceiros que agrediam cavalos e fazia o mesmo com os indivíduos. Certa vez, parou na delegacia, com um dedo quebrado ao tentar se defender do agressor. Além de adotar diversos animais sem dono e machucados, ela adotou 13 crianças abandonadas pelos pais. Faleceu em 1979 e virou nome de avenida dois anos depois. A defensora também deu nome ao minizoo que funcionou no Parque da Redenção até 2011.

Salma

Apaixonada pela dança em uma época em que a atividade não era bem-vista na sociedade, Salma Chemale foi uma das pioneiras desta arte no país. Nascida em Porto Alegre, em 1908, filha de pai libanês, convenceu a família a aprofundar seus estudos com Lia Bastian Meyer, a primeira bailarina clássica gaúcha, e se tornou sua pupila na Escola Oficial de Ballet do Estado do RS do Theatro São Pedro. O seu legado permaneceu nas gerações seguintes, em sua filha Denise Chemale Berger e suas netas Marcia (em atividade), Leila e Suzana. Formou inúmeras bailarinas pelo Estado todo. Em 1989, recebeu o título de “Cidadã Emérita” de Porto Alegre pela sua contribuição e destaque na área da dança no Estado. Falecida em 1990, aos 82 anos, denomina a Esplanada Salma Chemale, no bairro Praia de Belas.

“Minha mãe foi exemplo para muita gente. Mulher de fibra, dinâmica, além do seu tempo. Aprendi com ela o ofício da dança e tenho orgulho de ela ser referência para sociedade gaúcha, através dos seus feitos e sua determinação. Ser sua sucessora direta me orgulha muito e trago comigo o amor à arte tão vivido por ela e agora sigo neste caminho e assim minhas filhas”, conta Denise. “Minha avó nos passou muita determinação, força de trabalho, uma ética fenomenal, algo que carrego até hoje”, lembra a neta Marcia. Entre suas recordações, está a de Salma ouvindo as canções nos discos vinil para escolher o repertório que usaria nas danças. “Depois, quando nós começamos a dar aula, a consultávamos. Ela fez muito sucesso com ‘El Amor Brujo’, balé de Manuel De Falla, nos anos 50, que era muito contemporâneo para época, era uma pessoa de vanguarda. Uma das primeiras mulheres a dirigir carro conversível”, diz Marcia. A neta, orgulhosa, vê o legado de Salma se perpetuar com homenagens que a avó recebeu. “Ela construiu tudo de forma muito importante para a nossa vida. Pena que não foi em vida.” Uma exposição, em abril, no Memorial do RS, homenageará Salma.

Mariana e Malane

Era para ser um dia de festa, mas as irmãs Mariana Franco Casagrande, 18 anos, e Malane, 14 anos, não voltaram para casa após um acidente de trânsito que tirou suas vidas em 27 de setembro de 2003, no município de Charqueadas. O casal Diógenes e Jaqueline carregam a dor da perda das filhas mais velhas e os sonhos não realizados das jovens. "Uma saudade do que vivemos e do que não vivemos. Dos 15 anos que a Malane não festejou. Da formatura que a Mariana não teve. Dos netos que não curti", escreveu o pai em um blog dedicado às duas. Moradoras do bairro Jardim Vila Nova, as irmãs eram bastante ativas em movimentos comunitários, ambas voluntárias da associação Aldeia da Fraternidade, que ajuda crianças em situação de vulnerabilidade social. A mais velha era, ainda, atleta do Grêmio Náutico Gaúcho, campeã de judô em sua categoria por diversas vezes.

O falecimento das irmãs - junto de outras três vítimas, incluindo o motorista -, após colisão com um ônibus, afetou, não só a famílias e amigos, como também a comunidade da região que elas tanto ajudavam. "Os moradores fizeram um abaixo-assinado pedindo que a Praça da Figueira, como era chamada, mudasse de nome para homenageá-las", lembra o pai. Desde outubro de 2004, o local se chama Praça Mariana e Malane Franco Casagrande. "Elas sempre frequentavam. A Mariana desde os 2 anos de idade e a Malane praticamente nasceu lá. Fizeram muitas amizades na região", recorda Jaqueline. Atualmente, o casal mora com a caçula Maria Gabriela (que tinha 2 anos na época da tragédia) em Viamão. “A ferida não fecha, a casa ficou vazia. Como fomos pais novos, éramos muito amigos delas também. No início, era muito complicado ir no mercado e voltar com as sacolas vazias porque sempre compramos o que os filhos comem”, diz a mãe que criou, ainda, a página no Facebook "Histórias de Vidas - Mariana e Malane" com lembranças e fotos da trajetória das irmãs.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895