Memórias vindas do Japão

Memórias vindas do Japão

Colônia japonesa no Vale do Sinos faz questão de preservar a cultura nipônica

Por fernanda bassôa

Por
Fernanda Bassôa

Quem passa pelas portas do Memorial da Colônia Japonesa, na cidade de Ivoti, é automaticamente transportado para o mundo oriental. Na casa, inaugurada em 2011, são guardadas louças, vestimentas, ferramentas e documentos que contam a história da imigração japonesa na região do Vale do Sinos, retratando a cultura das 26 famílias que chegaram ao município entre os anos de 1966 e 1967, na localidade do Vale das Palmeiras, constituindo mais tarde a chamada Colônia Japonesa. A exposição de objetos recorda o passado destes imigrantes que, após a Segunda Guerra Mundial, vieram para a região em busca de melhores condições de vida e trabalho. Utensílios antigamente usados no cultivo de uva, objetos de uso doméstico, esportivo, itens religiosos, equipamentos que fizeram parte da antiga cooperativa agrícola dos imigrantes, mobiliário, uma infinidade de artesanatos e artigos de arte compõem o acervo do Memorial da Colônia Japonesa, que funciona em um prédio totalmente reestruturado, de 914 metros quadrados, que antes abrigava uma escola. No local também há comercialização de itens produzidos pelos descendentes japoneses, alguns ainda moradores da Colônia, que fica nas proximidades. 

A história milenar da cultura nipônica, extremamente rica e diversificada, ainda influencia a região. A jovem Yumi Sato Makiyama, que trabalha no Memorial, é a responsável por apresentar as relíquias expostas, o que elas representam para os descendentes, e por contar a história deste povoado, que faz divisa com a cidade de Dois Irmãos. Segundo ela, os imigrantes japoneses chegaram ao Brasil, vindos de navio, viagem que levou cerca de 52 dias. “As 26 famílias japonesas vieram para a cidade de Ivoti principalmente das regiões de Gravataí e Viamão, pós-Segunda Guerra Mundial. Elas chegaram aqui com ajuda de uma instituição chamada Jamic (Japan Agency Immigration Cooperation), grupo que auxiliava emigrantes a se estabelecerem em outros países. Eles organizaram a distribuição das terras e dos lotes para essas famílias.” Yumi conta que eles vieram para o Vale do Sinos por conta do espaço e da qualidade das terras. “Mas quando estes imigrantes chegaram aqui perceberam que a qualidade das terras não era tão boa. Então eles começaram a criar galinhas para usar o esterco e reativar o solo, que já estava desgastado, pois as terras já tinham pertencido aos alemães. Foi então que começaram a trabalhar com a agricultura.” Dentro de um sistema cooperativado, as famílias organizaram um aviário e, além da criação de frangos, os imigrantes também se voltaram para a produção de uvas de mesa. A cooperativa criada em 1969 foi de extrema importância para o crescimento econômico e para o estabelecimento de uma relação direta entre o produtor e o consumidor. No início da década de 70 houve safra recorde de produção de uvas de mesa tipo Itália, que foram chamadas de “uvas japonesas” na cidade. “Isso fez com que os trabalhadores e agricultores tivessem uma forma de colocar suas produções no mercado, comercializando-as mais facilmente. As cooperativas foram famosas no Brasil inteiro e aqui não foi diferente.” Mais tarde, a atividade foi substituída pelo plantio de hortaliças, mudas de hortaliças, frutas diversas e flores de corte. 

Todo este antigo sistema de produção que instalou os japoneses no Vale do Sinos é representado através de fotos, kimonos, botinas, chinelos de madeira, chapéu de palha, equipamentos agrícolas e antigas panelas de arroz que estão devidamente espalhadas pelo Memorial. “Quando chegaram aqui, além de fazer uso do solo, também fizeram do local um espaço de moradia. Construíram as próprias casas (de madeira), mas também reutilizaram as casas dos antigos proprietários alemães, as chamadas casas de arquitetura enxaimel”, conta Yumi. 

A importância da arte, do artesanato e da arquitetura na cultura japonesa

| Foto: Fernanda Bassôa / Especial / CP

Yumi conta que os imigrantes japoneses trouxeram para o Brasil e para a região, esportes como o softball (similar ao beisebol), o cricket, gateball, o tênis de mesa, o judô e as lutas de sumô, cujas representações também são encontradas no prédio da antiga escola que hoje é o Memorial. Construída em 1971 e desativada em 1997, a instituição chamava-se Escola Municipal Castelo Branco e não atendia apenas japoneses e seus descendentes, mas a todas as pessoas da região.

Além de atividades esportivas e das lutas marciais, difundidas até hoje, o artesanato e a arte faziam parte da vida das famílias, que encontraram na pintura um modo de se diferenciar da produção em série com a chegada da Revolução Industrial. “Há muitas peças em madeira que eram feitas naquela época. Mas hoje temos os omamoris, que são espécies de amuletos de tecido, confeccionados até hoje pelos descendentes e também comercializados. É um tipo específico de arte que retrata muito a cultura do Japão. Aqui, é uma arte bem rara, mas no país de origem é bastante popular.” O omamori é uma pequena bolsinha de tecido com inscrições e outros elementos de cores, imagens e fundos. Na tradição japonesa, eles são usados para abençoar, proteger e afastar o mal de quem os carrega. 

As máscaras de cores carregadas e com ar assombroso, representativas do folclore japonês, muito utilizadas em teatros, bem como as longas espadas de aço, que também estão expostas no local, são doações recentes para o Memorial. Segundo Yumi, as máscaras são peças que compõem o teatro Kabuki, que era formado por danças de oração, com encenações dramáticas e acrescidas de bastante comicidade sobre a vida cotidiana. O teatro Kabuki é algo exagerado, realista, mas ao mesmo de ruptura de padrões. É um teatro produzido e encenado por pessoas comuns e que estão fortemente enraizados na cultura nipônica. 

Nas paredes do Memorial, ha quadros que enaltecem a natureza, mapas, uma réplica do navio de guerra utilizado durante a Segunda Guerra Mundial e uma árvore cerejeira mais ao canto, símbolo da prosperidade, felicidade, fortuna e da bonança. O Hanami, uma das tradições mais populares do Japão, é o momento em que os orientais se reúnem para apreciar a beleza das flores de cerejeira durante o período em que elas florescem (entre março e abril). Isso faz parte do sincretismo religioso que eles mantêm. Um altar com bonecas de cerâmica colorem o centro do Memorial. “As bonecas eram dadas de presente às meninas recém-nascidas, no dia 3 de março, para celebrar o crescimento saudável das crianças”, comenta Yumi, apontando em seguida para documentos como passaportes, autorização de imigração, atestado de saúde e dinheiro utilizado na época, como os documentos necessários para imigrar aqui para o Brasil, considerados os papéis mais antigos daquela década.

Arte oriental e sua popularização no brasil

| Foto: Fernanda Bassôa / Especial / CP

A arte oriental abrange diversas formas de expressão, como a pintura, a escultura, a arquitetura e a cerâmica. A pintura japonesa, por exemplo, é caracterizada por sua delicadeza e sutileza. Descendente do povo oriental, proveniente da segunda geração dos imigrantes do Vale do Sinos, o artesão Igor Hideki Hatanda, que hoje vive na área central de Ivoti, conta que o artesanato mais tradicional praticado no Japão é kokeshi, que envolve técnicas diferentes. Segundo ele, é uma das mais populares naquele país. As kokeshi são bonecas de madeira ou cerâmica originárias no nordeste do Japão, caracterizadas por seus corpos alongados, sem membros, com cabeças desproporcionalmente grandes e delicadas feições pintadas à mão. O kiriê é outra técnica bastante difundida na região do Vale do Sinos. É uma espécie de colagem que, após recorte de papel colorido, é feita montagem sobre o papel branco. “Também tem o origami, que é bem conhecido como dobradura com papel, e o ikebana, a arte japonesa de composição floral, que tem bastante praticantes aqui no Brasil, cujas técnicas tradicionais foram adotadas justamente em razão da imigração japonesa”, comenta Hatanda. 

Curiosamente Hatanda cita como outra técnica que está se popularizando, e é muito praticada pelos brasileiros, e se firmando como trabalho, a marcenaria. “Para alguns, é um hobby sofisticado. Geralmente praticado por pessoas que tem uma vida estável e são bem sucedidas. Outros, acabam levando a marcenaria a sério.” 

Arquitetura

A questão da arquitetura, segundo Hatanda, está ligada mais com o lugar e com os materiais disponíveis do que com a estética propriamente dita. “Eles precisam se proteger. No Japão tem pouca madeira. A alma da estrutura das casas é de bambu, mas por se localizar no chamado Círculo do Fogo, por conta dos terremotos que ocorrem diariamente, as casas devem ser construídas de forma maleável, que possam ‘dançar’ de acordo com o tremor da terra”, diz ele, falando que por isso as casas no Japão se diferem muito das construídas no Brasil, feitas de tijolo e concreto. “O estilo da arquitetura do Japão é inspirado nas construções chinesas, consideradas uma grande potência quando se fala em edificação. Mas o Japão também sofisticou suas construções, pois trata-se de um povo detalhista e metódico. Em alguns lugares, as construções são padronizadas e tem a questão espiritual, levam muito em consideração o feng shui chinês. A casa deve estar em uma localização pacífica e em harmonia com a natureza.” 

Sabores e temperos 

| Foto: Fernanda Bassôa / Especial / CP

No Brasil, a gastronomia japonesa se popularizou de forma muito focada no peixe cru, no sushi. “Para nós orientais, no Japão, se come pouco o peixe cru, porque é um alimento caro. O Japão tem uma infinidade de comida, de temperos, ingredientes e sabores, que não se limitam apenas ao sashimi. É igual ao Brasil. No Japão, cada região tem uma particularidade, um ingrediente específico da localidade, de acordo com a sazonalidade. Tem comida fria e comida quente”, explica Hatanda. Ele admite que pelos japoneses serem uma das últimas imigrações que vieram para o Brasil, trouxeram através da gastronomia um aspecto muito forte culturalmente. Segundo ele, o saquê também se popularizou e o próprio chá verde. “Em todos os mercados tem um molho shoyo e o arroz japonês. É linda essa mistura cultural e o fato de conseguirmos conviver em harmonia com uma variedade de temperos e diferenças. O fato de no Brasil não ter o ingrediente para determinados pratos é o que engrandece ainda mais a culinária. O japonês quando veio para o Brasil teve que se adaptar não só à língua, mas ao clima e também à culinária daqui.” 

A feira japonesa de Ivoti 

A feira acontece sempre no último domingo do mês e começou em 2012. Ela teve início com a intenção dos próprios colonos de trocarem alimentos e comercializarem produtos entre si. Segundo Hatanda, que também atua como vice-presidente da feira na Colônia Japonesa, hoje mudou muito o foco. “Comercializam-se produtos da cultura japonesa. A prioridade é focar em produtos do Japão. Gastronomia, artesanato e arte. São cerca de 30 feirantes e a intenção é ampliar o número. É um evento muito atrativo no município, apesar de ainda ser considerada bastante familiar.”

‘Dekassegui’: o retorno 

Em busca de conhecimento, qualificação e melhores condições de vida, descendentes dos imigrantes que se instalaram em Ivoti decidiram ir embora da colônia japonesa para frequentar cursos técnicos e universidades. Muitos deles voltaram para o Japão, no movimento chamado dekassegui, que significa voltar para sua terra, com a intenção de trabalhar nas fábricas. 

Os pais vieram para Brasil para trabalhar em busca de melhores condições e os filhos retornaram para o Japão para fazer o mesmo. “Os filhos dos imigrantes, a segunda geração, praticamente voltaram todos para o Japão em busca de qualidade de vida melhor, de mais poder aquisitivo, de condição de consumo, que aqui no Brasil é muito difícil. O Japão é um país com uma economia mais estável e lá os japoneses trabalham dentro de fábricas, oferecendo mão de obra pesada, que compensa e paga bem”, diz Hatanda. Ele conta que existe outra parcela desta mesma geração que foi em busca de estudo e qualificação, tornando-se médicos, advogados e engenheiros e, da mesma forma, deixaram a colônia para viver em metrópoles, como Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro. 

A colônia e o seu legado 

A diretora de Cultura da Secretaria de Turismo, Cultura e Desporto de Ivoti, Letícia Schneider Pohren, explica que, conforme o censo do IBGE de 1960, no RS havia 709 residentes japoneses. “Podemos estimar que, em Ivoti, havia em torno de 70 a 80 pessoas naquela época.” Segundo ela, hoje, o cotidiano da Colônia Japonesa é calmo, uma vez que a maior parte é formada por idosos, que costumam se comunicar apenas em japonês. “Eles acabam misturando o japonês com palavras do português e formando uma mescla entre os dois idiomas. Alguns jovens conseguiram manter a língua e hoje são bilíngues, experiência comum entre imigrantes e filhos de imigrantes. Porém, a partir da terceira geração (sansei), é mais comum que não saibam falar japonês e se comuniquem apenas em português.” Hoje o dado é inexato de quantas famílias vivem na colônia, mas Marco Ushida, sociólogo na Associação dos Professores de Língua e Cultura Japonesa do RS, estima em 33 famílias japonesas, não computando os óbitos recentes. Letícia diz que a principal fonte de sustento das famílias que residem ali é o trabalho agrícola. Aos sábados, os moradores costumam se encontrar para jogar gateball e alguns jovens treinam softball. Muitas atividades acontecem através da Associação Cultural e Esportiva Nipo-Brasileira de Ivoti, fundada na década de 70. 

De acordo com Letícia, a Colônia Japonesa de Ivoti é a maior do RS e o Brasil é o lugar com o maior número de nikkeis do mundo fora do Japão. “Há um enorme legado da cultura japonesa tanto no Brasil, como em Ivoti. Aqui no município, a diversidade cultural e os hábitos alimentares foram apenas alguns dos aspectos que marcaram a influência da cultura japonesa. Desde 1966, os japoneses e os nipo-brasileiros estão intimamente ligados com a agricultura.” Além disso, segundo ela, a escola de língua japonesa proporciona educação de línguas, o Memorial da Imigração Japonesa promove o intercâmbio de culturas e a conscientização histórica e a Associação Cultural e Esportiva Nipo-brasileira a preservação e promoção da cultura, além de servir como espaço de atividades sociais, esportivas e culturais. 

Influência na sociedade atual

A cultura japonesa tem muita influência sobre nossos costumes e pode ser observada em diversos aspectos da sociedade atual. Na moda (as sandálias de dedo), na gastronomia, nas artes marciais, nas lutas de defesa pessoal (como o jiu-jítsu), na tecnologia e até no entretenimento, como o divertido karaokê. Os animes e os mangás, por exemplo, conquistaram fãs no mundo inteiro. Sem falar na culinária japonesa, que se tornou uma das mais apreciadas e hoje está totalmente incorporada à rotina de sofisticados restaurantes e jantares à luz de velas. Na área da tecnologia, o Japão é conhecido por sua avançada indústria, sendo um dos líderes mundiais em inovação, pioneiro em áreas como robótica, inteligência artificial e eletrônicos.

Brasil acolhe mais de 2 milhões de descendentes 

A comunidade nipodescendente (nikkei) no Brasil é de mais de 2 milhões de pessoas – a maior população de origem nipônica fora do Japão. Esse vínculo é um dos principais patrimônios das relações Brasil-Japão e fomenta o diálogo e a cooperação entre os dois países. A cooperação em ciência, tecnologia e inovação é ponto prioritário da agenda bilateral. Dentre as áreas mais promissoras, destacam-se tecnologias da informação e das comunicações, tecnologia aeroespacial, robótica, novos materiais, ciências médicas e saúde, energia renovável (hidrogênio), inteligência artificial, supercomputadores, startups (empreendedorismo tecnológico) e internet 5G. Atualmente, o Japão, terceira maior economia do mundo, é o 12º maior investidor direto no Brasil em termos de estoque e 16º maior em termos de fluxo. 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895