Migração provoca tensão ao redor do mundo

Migração provoca tensão ao redor do mundo

Na Europa, o Reino Unido endurece legislação contra a migração irregular, a Bélgica ameaça repatriar pessoas e a Itália investiga mortes em mais um acidente no mar. Também há vítimas e conflitos no México e na Tunísia

Por
AFP

O governo britânico apresentou, na terça-feira, um projeto de lei contra a chegada irregular de migrantes pelo mar, vindos da costa francesa, garantindo que o texto respeita o direito internacional, apesar das críticas de defensores dos direitos humanos. 

O primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, está determinado a impedir a travessia ilegal através do Canal da Mancha, que causa fortes tensões entre os Executivos de Londres e Paris. “Esta nova lei enviará uma mensagem clara: se você vier para este país ilegalmente, será rapidamente expulso”, disse Sunak ao jornal The Sun. “Quem vem em barcos não pode pedir asilo aqui”, enfatizou. Mais de 45 mil pessoas (principalmente albaneses e afegãos, mas também iranianos, iraquianos e sírios) chegaram ao Reino Unido por essa rota perigosa no ano passado. E já são quase 3 mil até agora em 2023. 

Ao apresentar o projeto de lei ao Parlamento, a ministra do Interior, a ultraconservadora Suella Braverman, afirmou que “diante da crise migratória mundial, as leis de ontem simplesmente não são adequadas”. O texto facilita a detenção de imigrantes até sua expulsão. Também restringe “radicalmente” a possibilidade de recurso contra as expulsões, assegurou. 

O governo de Sunak foi acusado por defensores dos direitos humanos de redigir uma lei contrária ao direito internacional. “Ampliamos os limites do direito internacional”, disse Braverman à imprensa. Mas afirmou aos deputados: “Tenho certeza de que o projeto é compatível com nossas obrigações internacionais”. No entanto, ela admitiu que não pode afirmar “definitivamente” se a legislação é compatível com a lei britânica sobre direitos humanos e anunciou que iniciou negociações com o Tribunal Europeu de Direitos Humanos.

Perseguições e guerras 

As medidas fortemente restritivas visam desencorajar as travessias e acabar com o negócio dos traficantes de pessoas que cobram quantias exorbitantes pela travessia perigosa. Mas as organizações de ajuda a refugiados consideram que o sucessivo endurecimento das regras não surtiu efeito e que os migrantes só abandonarão a rota irregular se as autoridades oferecerem vias legais para buscar asilo no Reino Unido, atualmente muito limitadas. 

A ONU reagiu, assegurando que os planos britânicos equivaleriam a uma proibição do asilo. “Se a legislação for aprovada, equivaleria a uma proibição do asilo, extinguindo o direito a solicitar proteção como refugiado no Reino Unido para aqueles que chegam de forma irregular, sem importar o quão genuína e convincente que possa ser sua solicitação”, respondeu, em nota, a agência da ONU para os refugiados (Acnur). “Se você está fugindo da perseguição ou da guerra, se está fugindo do Afeganistão ou da Síria, e teme por sua vida, como poderá pedir asilo no Reino Unido?”, disse Christina Marriott, diretora da Cruz Vermelha Britânica.

Para Steve Valdez-Symonds, diretor de Direitos dos Refugiados e Migrantes da Anistia Internacional UK, o governo britânico caiu ainda “mais baixo” ao tentar desqualificar em massa as solicitações de asilo. “As pessoas que fogem da perseguição e dos conflitos serão irremediavelmente prejudicadas por estas propostas, enquanto o Reino Unido dá um exemplo terrível a outros países do mundo”.

O Reino Unido aprovou no ano passado uma lei altamente controversa para enviar os solicitantes de asilo para Ruanda, um país africano a 6.500 quilômetros de Londres. Mas o plano foi bloqueado pelos tribunais europeus e continua paralisado. Um porta-voz de Sunak afirmou que seu governo está estudando vias “legais e seguras” para que as pessoas peçam asilo no Reino Unido “uma vez que tenhamos nossas fronteiras sob controle”.

O tema tem estado no centro das disputas habituais entre Reino Unido e França, à qual Londres acusou de não fazer o suficiente. Em plena crise pelo custo de vida, a gestão das solicitações de asilo é fonte de tensões e incompreensão para muitos britânicos. Em meados de fevereiro, uma manifestação de ultradireitistas em frente a um hotel onde se alojavam solicitantes de asilo perto de Liverpool, no noroeste da Inglaterra, gerou confrontos com a polícia. Outros protestos, contra e a favor dos refugiados, foram realizados em todo o país.

Dezenas de acampados na Bélgica

Pessoas dormindo em barracas ao longo do canal de Bruxelas, sob temperaturas abaixo de zero. Esta imagem se tornou o retrato da crise de asilo no coração da chamada capital da Europa. “Isso não é o que sonhei”, diz Moussa, jovem de 21 anos que deixou Serra Leoa em 2020.

Dezenas de solicitantes de asilo que vivem nos acampamentos improvisados vêm do Afeganistão, países da África subsaariana, Palestina e Síria. Algumas dessas pessoas relatam que passam meses vivendo nas ruas durante o inverno, sem poder tomar banho ou lavar roupa, dependendo de ONGs para conseguirem se alimentar.

Suleyman Camara chegou a Bruxelas janeiro após árdua viagem de quatro anos da Guiné à capital belga, em trajeto que passou por Mali, Argélia e Tunísia, antes de seguir para a Itália em um barco. Sob temperaturas abaixo de zero, o jovem de 24 anos divide uma barraca e alguns cobertores com Moussa, que não quis revelar seu sobrenome. Ambos pedem às autoridades um abrigo temporário enquanto esperam seus pedidos de asilo serem analisados. “Comer e dormir ao ar livre é difícil, quero me capacitar e trabalhar”, contou Suleyman, que é aprendiz de pintor.

Esta semana, a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) alertou sobre as condições indignas dos migrantes e instalou banheiros químicos e uma pia com acesso a água corrente nas proximidades. A entidade enfatizou que os imigrantes merecem ter “higiene e dignidade básicas” e criticou a “gestão desastrosa” da Bélgica. David Vogel, do MSF, contou à AFP que as tendas apareceram pela primeira vez no final de 2021, perto do prédio federal conhecido como Petit Château (pequeno castelo), que havia sido utilizado para guiar os solicitantes de asilo a um alojamento temporário após se registrarem. No entanto, desde 2021, o local, com cerca de 33 mil lugares, está lotado. O acampamento improvisado cresceu de cerca de 60 tendas para mais de 120 atualmente.

De acordo com dados oficiais, a Bélgica registrou 37 mil pedidos de asilo em 2022, 11 mil casos a mais em relação ao ano anterior. Este aumento no número de chegadas é registrado em toda a União Europeia.

Ano passado, houve quase um milhão de pedidos de proteção internacional, atingindo nível visto pela última vez durante a crise de refugiados de 2015-2016. As autoridades belgas dizem que a meta é acelerar o processamento das solicitações para devolver os chamados “migrantes econômicos” a seus países de origem. “Em nosso país, muitas pessoas entram, mas não têm esse direito”, afirmou o primeiro-ministro belga, Alexander De Croo.

Autoridades investigam demora em resgate no sul da Itália

Promotores italianos investigam o tempo de resposta de equipes que atuaram no resgate a um naufrágio que deixou 68 migrantes mortos no sul da Itália, no dia 26 de fevereiro, mesmo dia em que outro barco transportando centenas de pessoas foi resgatado. De acordo com informações a que as autoridades tiveram acesso, o tempo entre o momento do naufrágio na costa da Calábria e o resgate foi de seis horas.

O navio, que havia saído da Turquia, transportava cerca de 180 pessoas e se partiu devido a uma tempestade não muito longe da costa. Os ocupantes, entre eles muitas crianças, caíram no mar. A Promotoria de Crotone abriu investigação que irá reconstituir os avisos recebidos pela guarda costeira e suas ações posteriores.

A Prefeitura anunciou que já havia identificado 54 das vítimas: 48 afegãs, três paquistanesas, uma síria, uma palestina e outra da Tunísia. Três supostos “coiotes” (dois paquistaneses e um turco) foram presos, confirmou um porta-voz da polícia. Segundo a agência italiana AGI, eles são suspeitos de cobrar entre 5 mil e 8 mil euros (entre 28 mil e 45 mil reais) para cada migrante embarcado. Trata-se um dos naufrágios mais letais ocorridos na região central do Mediterrâneo, que dezenas de milhares de pessoas tentam atravessar todos os anos para chegar à Europa, colocando suas vidas em perigo. 

No mesmo dia, a agência europeia de fronteiras Frontex disse que uma de suas patrulhas localizou um outro navio sobrecarregado vindo da Turquia com direção à Itália e alertou as autoridades do país. A guarda costeira chegou a enviar dois barcos, que tiveram que retornar ao porto devido ao mau tempo. Por outro lado, informou um dia antes que resgatou, a cerca de 15 quilômetros da ilha de Lampedusa, um barco de pesca no qual viajavam 211 migrantes. De acordo com o Ministério do Interior italiano, 14.432 migrantes desembarcaram na Itália em 2023, em comparação aos quase 5.000 no mesmo período do ano passado.

Situação grave na Tunísia

Quatorze migrantes da África subsaariana morreram afogados e 54 foram resgatados depois que os barcos que os transportavam viraram na costa da Tunísia, em um momento de tensão para estrangeiros devido às declarações do presidente, Kais Saied, contra a imigração irregular. 

Muitos migrantes de países subsaarianos querem deixar a Tunísia após os comentários do presidente. Em fevereiro, Saied afirmou que a presença de "hordas" de clandestinos era fonte de "violência e crimes". Após este discurso, condenado por ONGs, muitos cidadãos de países subsaarianos foram alvo de ataques e tentaram ser repatriados. 

No dia 4, cerca de 300 malineses e marfinenses deixaram a Tunísia em dois aviões de repatriação. Segundo o governo marfinense, 1,3 mil cidadãos daquele país pediram para ser repatriados da Tunísia. Os estudantes que decidiram sair têm residência legal, mas sua situação se tornou insustentável. “Quase todos os dias há agressões, ameaças ou eles são expulsos de casa", contou à AFP o presidente da Associação de Estudantes Marfinenses da Tunísia, Michaël Elie Bio Vamet.

Muitos dos 21 mil subsaarianos registrados na Tunísia, a maioria em situação irregular, ficaram de um dia para o outro sem casa e emprego. Dezenas foram detidos em controles policiais. Outros citaram a ação de “milícias” que os perseguem e saqueiam.

 

 

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