Muito mais que luta

Muito mais que luta

Atletas gaúchos preparam-se para a disputa do Campeonato Brasileiro de Kung Fu, uma modalidade 
bem mais diversa do que apenas um combate de movimentos rápidos e letais

Marcos Tonelo (à frente, com a arma kwan tao) vai disputar o Campeonato Brasileiro pela segunda vez na sua carreira como atleta do Kung Fu

Por
CARLOS CORRÊA

Pouco importa que Marcos Tonelo seja um atleta de Kung Fu há um bom punhado de anos. A cena se repete com tanta frequência que nem surpreende mais o empresário de 29 anos. Toda vez que o assunto surge pela primeira vez em alguma roda de conversa – e em alguns casos, até com alguma reincidência –, o questionamento que vem em seguida é o mesmo: “Você luta então?”. Não necessariamente, mas até poderia. Isso porque ao contrário do que pode imaginar o senso comum, o Kung Fu é uma modalidade com tantos estilos diferentes que tentar reduzir apenas a um deles, nos qual de fato existe uma luta, seria incorrer em um equívoco. Tanto é que Marcos será um dos representantes da Seleção do Rio Grande do Sul no 31º Campeonato Brasileiro de Kung Fu Wushu, que será realizado entre os dias 8 e 12 de dezembro, em Brasília, e suas participações não vão envolver lutas, mas sim apresentações.

A confusão é bastante comum, e de certa forma, compreensível. Ao longo de décadas, a imagem do Kung Fu, uma arte milenar chinesa, tem sido associada a uma luta de movimentos tão rápidos quanto letais. Neste contexto, foi fundamental a influência dos filmes de Bruce Lee, o famoso ator norte-americano de origem chinesa, e da própria série Kung Fu, que foi ao ar durante a década de 1970, estrelada por David Carradine. “Se eu vou no médico para ter um certificado que me libere para a competição, perguntam se vou lutar. Na minha família mesmo, até hoje me perguntam, ficam preocupados. As pessoas ainda associam com isso. E tem tanta coisa, é tão rico”, resigna-se, achando graça, Marcos.

No entanto, se trata de algo bem mais amplo e dividido em tantas subcategorias que nem todas caberiam em um texto como esse. Mas tome-se, por exemplo, a competição na capital federal nesta semana. Nela, é possível dividir a modalidade em dois grandes grupos: combate e apresentação. A primeira, como o nome sugere, envolve dois atletas e tem duas subdivisões: Sanda e Shuai Jiao. A primeira envolve socos e chutes e vai até a queda de um dos lutadores. Na segunda, o combate também é encerrado quando um dos lados cai, mas o ponto de partida é diferente, com os atletas agarrados cada um no uniforme do adversário.>
As subdivisões da apresentação são ainda mais numerosas: Shao Lin do Norte (as referências cardeais estão sempre ligadas à respectiva região na China), Louva-Deus, Choy Lee Fut e por aí vai.

Isso se falarmos apenas daquelas com as mãos livres. Sim, porque ainda existem todas as apresentações com as armas, que abrem um novo e sem fim leque de alternativas. Aí há de tudo um pouco: longas, como o kwan tao; curtas, como o punhal; médias, como o sabre e a espada; articuladas, como o san jie gun; e exóticas, como a faca rabo de peixe. A oferta é tamanha que objetos como uma bengala, uma flauta e um leque também podem ser utilizados.

Se no combate a decisão é bastante subjetiva – o primeiro a cair perde –, na apresentação os critérios são bem mais complexos aos olhos do público. Técnico da seleção gaúcha, Roberto Pedroso puxa por uma comparação de fácil compreensão: “É mais ou menos como na ginástica”. Cada performance acontece em um tablado de oito por oito metros e a duração varia de 40 segundos a 6 minutos. De acordo com ele, cada atleta é avaliado por uma banca que conta com, no mínimo, cinco especialistas, que levam em conta uma série de critérios, desde se os movimentos estão de acordo com os fundamentos da modalidade, até especificidades que podem escapar aos olhares menos atentos, como a posição do punho durante um soco ou o ângulo de um chute. “Um leigo dificilmente vai conseguir diferenciar os movimentos que fazem a diferença”, assegura o técnico.

No caso da seleção gaúcha, a delegação será formada por 25 atletas (17 na apresentação e 8 no combate) e mais quatro treinadores, dois por categoria. Em termos nacionais, o Estado é uma das cinco forças, sendo que o principal polo ainda é São Paulo – a última vez que o Campeonato Brasileiro foi realizado no RS foi em 2005, quando as disputas aconteceram em Santa Maria. Para se ter uma ideia, a delegação paulista na competição de 2019 (em 2020, não houve o campeonato em função da Covid-19) era de quase 200 atletas, o que representava, sozinha, quase que todos os demais somados. Ainda assim, a perspectiva dos gaúchos é boa. “Costumamos trazer bons resultados. A maior parte dos nossos atletas voltou com medalhas das outras vezes”, prevê Pedroso.

O treinador lembra que a delegação poderia ser ainda maior. Mais atletas teriam condições de entrar na disputa com chance de bons resultados. No entanto, o adversário do outro lado, neste caso, é a realidade financeira, que fez com que muitos não tivessem condições de bancar os custos, que incluem passagens e hospedagem em Brasília, além da inscrição. Mesmo fora isso, dependendo da subdivisão praticada, as próprias armas demandam mais custos. Se algumas têm valores mais viáveis, como os R$ 100 de um bastão, outras podem facilmente chegar e ultrapassar a barreira de R$ 1 mil, como o kwan tao e a faca rabo de peixe. Junte-se tudo isso a um esporte no qual nem mesmo a seleção gaúcha conta com qualquer tipo de patrocínio e se tem uma ideia das dificuldades pelo caminho.

O sucesso da modalidade no Estado remonta mais uma vez à década de 1970, mas desta vez sem relação com os personagens de Bruce Lee ou David Carradine e sim a um lugar específico: a academia Kidokan, fundada em 1975, e que ficou marcada por trazer ao país o mestre Lee Chung Deh, hoje com 70 anos, que se tornou uma figura simbólica para os seus alunos e seguidores desde então. Pedroso fala com reverência sobre o mestre e lembra que as lições vão muito além dos resultados em cima do tablado: “Ele costuma falar que o Kung Fu é a arte de viver. Porque, a partir do momento em que tu tens que estar preparado para qualquer movimento do adversário, ele te prepara para tudo”.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895