Negócios buscam voltar à "normalidade" após a pandemia

Negócios buscam voltar à "normalidade" após a pandemia

Diminuição do número de casos de Covid-19, principalmente de internações e mortes, faz com que empreendedores tenham mais confiança na retomada de suas empresas

Por
Christian Bueller

Uma pessoa encontra outra, conhecida, em um estabelecimento de Porto Alegre. As duas se abraçam carinhosamente e o sorriso transborda nas máscaras que, aliás, deixam os rostos e repousam à mesa em que as duas vão ocupar. O uso da peça fundamental de proteção contra a Covid-19, que se transformou parte integrante dos vestuários do cotidiano mundial desde março de 2020, atualmente é opcional em muitos estados brasileiros, tanto em locais abertos e fechados, como acontece na capital gaúcha. Após um total que pode varias de 13,3 a 16,6 milhões de vidas perdidas pelo planeta, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS) (663 mil somente no Brasil, quase 40 mil no Rio Grande do Sul, de acordo com o dados oficiais brasileiros), os hospitais começaram a receber menos pacientes internados pela doença e, consequentemente, alguns dos impactos da pandemia dão sinais de arrefecimento. A normalidade não chegou ainda e, segundo especialistas, talvez, nem volte da forma que todos a conheciam, mas alguns índices demonstram esta impressão. Um deles é o retorno de muitos desempregados aos postos de trabalho que surgiram depois que a vacina chegou a mais de 70% da população.

Foi um pouco antes de a OMS decretar a pandemia que Gisele Capovilla se viu sem o seu emprego em uma imobiliária de Porto Alegre. A ideia era tirar um mês para absorver o impacto e, em seguida, retomar a vida. Mas, com a propagação da Covid-19 pelo mundo, veio a incerteza e as dificuldades para conseguir outro trabalho. “Na época, morava com a filha e precisava encontrar uma alternativa para nosso sustento”, contou a moradora do bairro Humaitá de 54 anos. O namorado, o engenheiro químico Alexandre Fantinel, que investia em produção de cerveja artesanais, foi um incentivador para a guinada que ela necessitava. “Sou uma pessoa extremamente ativa. Quando comecei a entregar currículos e não vi retorno, pensei: ‘Vou pegar essa cerveja, colocar embaixo do braço e vender’. Despertou em mim um lado comercial que desconhecia”, lembra.

NOVA CHANCE

Uma manicure da região sugeriu que Gisele concebesse os seus próprios produtos já que experiência não faltava: ter um restaurante foi seu cotidiano por nove anos. Primeiro, veio a torta de bolacha em pote. “Divulgamos em grupos de mensagens de WhatsApp e redes sociais. Começaram a pedir lanches mais variados e fui para os pastéis feitos de massa caseira”, lembra. Atualmente, os carros-chefes são os “xis” e hambúrgueres, entregues sem taxa em um raio de três quilômetros. “O Humaitá é um bairro muito acolhedor, inclusivo e tem uma característica própria e, por isso, estamos perdurando tanto tempo aqui com esse comércio”, comenta. Segundo ela, o crescimento das entregas durante a pandemia, aliado ao auxílio emergencial que abasteceu muitos clientes, contribuiu com o sucesso do negócio, que incluiu açaí no verão. “Sempre pensamos em novidades para não cair na vala comum”, acrescenta.

Apesar de manter parceria com outra cervejaria, Gisele ainda enxerga o mercado restrito em uma pandemia que parece estar no fim, mas não terminou. “A gente sempre sonha em ter uma renda fixa. Mandei muitos currículos no início de 2020. Fiz algumas entrevistas de emprego via telechamadas e vacilava: como abandonaria os meus lanches, algo que mantenho há três anos? Ficamos divididos, mas queremos que o nome vá longe”, disse a proprietária da Kanaloha Lanches, homônima da antiga fábrica de cerveja artesanal do companheiro, palavra que significa “amizade” no idioma havaiano.
Segundo o Ministério do Trabalho e Previdência, o Brasil fechou o mês de fevereiro de 2022 com a criação de 328.507 empregos formais, segundo o balanço do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Novo Caged).

Adaptações para não fechar


O restaurante precisou se adaptar, primeiramente com o take away, depois a volta do público presencial, seguindo as regras estipuladas pelos decretos municipais e estaduais. Foto: Ricardo Giusti

Dúvidas, medos, perdas e portas se fechando. A pandemia não tem sido fácil para nenhum empreendedor. Para Pedro Canal, 53 anos, o período que se desenrola desde março de 2020 também foi crucial por trazer uma necessidade de as empresas inovarem e buscarem alternativas. O restaurante Via Natural, no centro da Capital, está aberto há oito anos e, no ano do estouro da crise sanitária mundial, também sofreu muito. “Com as primeiras regras e restrições, o restaurante ficou fechado por alguns meses, afetando muito todo o pessoal que aqui trabalha. Voltamos a funcionar com a forma de take away (pega e leve) e, como não havia demanda o suficiente para todo o quadro de funcionários, apenas alguns colaboradores se mantiveram presentes dentro do restaurante”, conta o dono do estabelecimento. Os colaboradores que não estavam presentes foram mantidos em casa, completa Canal. “Um ponto positivo foi que conseguimos manter todos os nossos funcionários sem precisar demitir ninguém”, lembra.

“Foram vários dias nessa forma de trabalho, tentando se adaptar a todas as regras novas e aos vários aumentos nos valores das mercadorias, sem perder a qualidade do bufê e inovando no cardápio todos os dias”, garante. Com as dúvidas e medos diários, aliada à piora da situação com as infecções pelo coronavírus, Canal acreditou, por muitos dias, que a única solução fosse fechar o restaurante. “Muitos amigos e vizinhos não suportaram e tiveram que fechar suas portas e isso é muito triste, não desejamos isso a ninguém”, lamenta o empreendedor. 

O restaurante precisou se adaptar, primeiramente com o take away, depois a volta do público presencial, seguindo as regras estipuladas pelos decretos municipais e estaduais, mas ainda com demanda bem abaixo do normal. “Foram meses bem difíceis, pois nosso atendimento ficou muito limitado. Nossos clientes tinham medo de sair às ruas, outros começaram a trabalhar em home office, então não havia necessidade de almoçar fora de casa”, recorda o gerente Luan Schommer. “Com o passar dos dias, as proteções devidas e seguindo todas as regras, parte do nosso público está voltando a almoçar”, acrescenta.

Canal acredita que a nova regra opcional das luvas e máscaras seja mais um passo para os dias voltarem a serem “normais”. “Nos dá a esperança de que muitos clientes antigos e novos venham almoçar. Nada voltará a ser como era antes da pandemia, mas devemos agradecer todos os dias por ter conseguido manter o restaurante aberto”, pontua o proprietário.

Como era de se esperar, os estabelecimentos ainda têm dificuldades. Um levantamento da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), divulgado em abril, mostra que 38% dos estabelecimentos brasileiros tiveram prejuízo em fevereiro. É uma melhora significativa em relação a janeiro (43%), mas ainda acima do número de dezembro (31%) – que foi o melhor mês desde março de 2020. Outros 26% tiveram lucro (também melhora em relação a janeiro, 22%) e 34% apresentaram equilíbrio. Para Paulo Solmucci, presidente-executivo da Abrasel, o desempenho ainda teve reflexos do pico de infecções causado pela variante Ômicron no começo do ano. “Hoje já funcionamos praticamente sem restrições na maior parte do país, mas nos preocupa o longo tempo em que uma parcela significativa dos bares e restaurantes trabalha com prejuízo. E não foi só pela queda no movimento, que agora está sendo retomado. Outros fatores, como as parcelas dos financiamentos em atraso e a inflação dos insumos, que praticamente não foi repassada para os cardápios, influenciam no resultado dos estabelecimentos.”

O levantamento da Abrasel também mediu o delivery. Quase quatro em cada cinco (78%) estabelecimentos consultados fazem entregas de refeições – 14% disseram não fazer e 8% informaram ter começado a operar o serviço, mas desistido. Entre os que fazem, mais de um terço (35%) passou a fazê-lo após o começo da pandemia e 81% operam o delivery por meio de uma plataforma de entregas, como os aplicativos, combinada ou não a canais próprios, como site, telefone e WhatsApp. “O delivery foi importante durante a pandemia, tanto que houve uma adesão massiva de restaurantes ao sistema, como mostra a pesquisa. E agora continua como uma importante fonte de receita para os estabelecimentos”, reforça Solmucci.

A presidente da Abrasel-RS, Maria Fernanda Tartoni, já identificou uma fatia de estabelecimentos que voltaram a ter faturamentos semelhantes ao período anterior à pandemia, mas alerta para o grande número de empreendedores endividados. “O valor dos insumos aumentou muito. Ainda não estamos em resultados econômicos como gostaríamos.” Ainda assim, ela é otimista quanto aos próximos meses. “Estamos em época de fomento, já que as pessoas comem mais quando o clima esfria. Temos boas perspectivas para este Dia das Mães e o Dia dos Namorados em junho.”

Mais admissões do que demissões
O saldo de fevereiro no país foi resultado de 2,01 milhões de contratações e 1,68 milhão de desligamentos.

Segundo o Ministério do Trabalho e Previdência, foi o melhor resultado para o mês da série iniciada em 2010, perdendo apenas para 2021, quando o saldo foi de 397.915 postos. O saldo foi positivo nos cinco grupamentos de atividade econômica. A maior geração ocorreu no setor de serviços, com 1.226.026 vagas abertas. Na sequência, aparece o comércio (643.754), indústria (475.141), construção (244.755) e agropecuária (140.927). No RS, os dados também são positivos: no período entre fevereiro de 2021 e fevereiro de 2022, o Estado registrou saldo de 130.583 novos postos de emprego formal – alta de 5,3%. Os dados são do mais recente Boletim de Trabalho do RS, publicado em abril pelo Departamento de Economia e Estatística, vinculado à Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (DEE/SPGG). Ainda, ao comparar fevereiro de 2020 com o mesmo mês deste ano, o saldo é de 106 mil empregos formais nos municípios gaúchos. O setor de Serviços (+59.596 postos de trabalho) puxou a elevação, seguido da Indústria (+34.428), Comércio (+27.310), Construção (+4.634) e Agropecuária (+4.615).

A ‘Lanchera’ sobreviveu


Seu Ivo (à esquerda) diz ter a sensação de que, a partir de agora, a situação está melhorando: “Parece que vai engrenar”. Foto: Mauro Schaefer

Poucas pessoas que circulam pelo bairro Bom Fim desconhecem a Lancheria do Parque, tradicional ponto na avenida Osvaldo Aranha. Do suco natural servido direto na jarra do liquidificador, passando pelo bufê e o à la minuta, a “Lanchera” se tornou local afetivo para os porto-alegrenses. E, como todo o comércio, foi afetado pela pandemia: ficou fechado de março a novembro de 2020 e todos os 21 funcionários foram demitidos por conta da insegurança sobre o futuro do negócio. Passado o momento mais crítico da crise sanitária até aqui, Ivo Salton, um dos fundadores do estabelecimento, comemora a volta de 90% dos trabalhadores (“só não voltou quem optou por não retornar”). Enquanto as portas estavam fechadas, o empreendedor e a esposa, Inês, que estão à frente da casa há exatos 40 anos completados em maio deste ano, decidiram, junto dos atuais sócios, reformar o local. 

Se 2021 foi marcado por funcionamento restrito e “abre e fecha” determinados por decretos municipais e estaduais para conter a propagação do vírus, 2022 é mais alvissareiro para os proprietários. “Só podia funcionar o sistema take away (pega e leva) e tele-entrega. Não podia receber clientes aqui, imagina, depois de tanto tempo atendendo. Como poderia recusar se alguém quisesse utilizar o banheiro?”, questiona Seu Ivo, como é conhecido. “Abrimos no Carnaval e foi muito bom. A sensação, a partir de agora, é de que está melhorando. Já consigo dormir melhor. Parece que vai engrenar”, conta, entre uma saudação e outra de clientes, que não passam pelo balcão sem cumprimentá-lo. Apesar da atual liberação do uso de máscaras em ambientes fechados em Porto Alegre, Seu Ivo não dispensa a peça, para preservar a sua e a saúde de quem convive com ele, mas reconhece que não é um hábito que traz lembranças felizes. “Estamos acostumados com festas e pessoas alegres, mas não conseguimos ver seus rostos.” A vitalidade dos 69 anos pode não ser a mesma de anos pretéritos, mas a simpatia e a vontade de acompanhar de perto o dia a dia da “Lanchera” permanecem. “Vai deslanchar!”, resume, com sinal de positivo com o seu polegar direito.

Por pouco, a Lancheria do Parque não entrou para uma dura estatística que impactou inúmeros empreendedores como Seu Ivo nos últimos anos. A mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada em março, mostrou que 581,3 mil empresas foram fechadas entre o segundo trimestre de 2019 e de 2021. Já o Ministério da Economia apresentou um dado mais otimista no Mapa de Empresas do 3º quadrimestre do ano passado, divulgado há algumas semanas. Segundo o governo federal, o número de empresas abertas no Brasil chegou a 4,026 milhões em 2021, crescimento de 19,7% em comparação com o ano anterior. A quantidade de empresas fechadas atingiu 1,41 milhão, o que representa aumento de 34,6% em relação a 2020. Sendo assim, o país teve um saldo positivo de 2,6 milhões de novos negócios.

Remodelação na equipe


A loja que completa 50 anos este ano precisou se reestruturar para se manter funcionando. Foto: Mauro Schaefer

Um casarão vermelho localizado no bairro Bom Fim é ponto tradicional da cidade quando o assunto é venda de roupas. Loja que completa 50 anos em 2022, a Von Von é outra empresa que precisou adaptar seus passos para não fechar as portas. Neste caso, a perda de colaboradores foi inevitável. “Fizemos remodelação de equipe, éramos 21, atualmente, somos nove”, suspira Suellen Andrade que, aos poucos, vai segurando o bastão que sua mãe, Rosane, empunha há anos à frente da loja. Para que funcionárias mais antigas não perdessem o emprego, algumas vendedoras e costureiras precisaram ser dispensadas. “Aconteceu para que não fechássemos e que pessoas que estão conosco há mais de 20 anos não saíssem”, lamenta. Agora, a impressão de Suellen é que os clientes estão voltando. “Mesmo que a passos lentos, a situação está retomando aos poucos. A expectativa é que as vendas engatem e o povo se sinta mais confiante e saia mais às ruas.”

Assim como no período pré-pandemia, as lojas físicas da Capital voltaram a receber a maioria do público em busca de presentes de Dia das Mães. Uma pesquisa do Sindilojas POA revelou que 54,3% das pessoas pretendiam realizar as compras no comércio de rua. No ano passado, esse dado correspondeu a 34%. Ainda para o presidente da entidade, Arcione Piva, mesmo que haja retomada maior de compra presencial, o investimento feito no on-line não deve ser deixado de lado pelos comerciantes. “Precisamos, cada vez mais, entender as diferenças e preferências de consumo de cada público e os potenciais de cada ferramenta. Tanto consumidores quanto lojistas estão vivendo uma segunda fase de adaptação, que requer mais estudo e novas ações por parte das empresas”, analisa

Lembre-se: a pandemia ainda não terminou

Apesar da melhora do cenário epidemiológico no país, o professor de Infectologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Alexandre Zavascki lembra que a pandemia não terminou e defende a manutenção de medidas não farmacológicas. "O uso de máscara, por exemplo, não é uma medida só individual", destaca, acrescentando que sua retirada pode refletir no aumento de infecções e mortes. Mesmo diante desse contexto, Zavascki descarta a possibilidade de uma “nova onda da pandemia”. “Do ponto de vista da epidemia, provavelmente algumas restrições que ainda poderiam estar sendo adotadas devido a esse estado emergencial vão se desfazer. E isso sempre vai facilitar a transmissão do vírus”, observa.

Segundo ele, as flexibilizações oferecem maior risco à população idosa. “Quem tem sofrido mais é a população idosa, uma vez que, se ninguém mais toma uma proteção, eles acabam sendo mais expostos e continuam muito suscetíveis a quadros graves pela Covid-19. A gente tem também um aumento de casos gerais de infecções em crianças”, explica.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895