No combate à Covid-19

No combate à Covid-19

Instituições de ensino superior do Brasil se mobilizaram para desenvolver ações de enfrentamento à doença

Por
Jessica Hübler

A pandemia da Covid-19 mobilizou a comunidade científica em todo o mundo. Diversas pesquisas foram realizadas, não só especificamente sobre o vírus Sars-Cov-2, as características da doença, os públicos mais atingidos ou as possíveis formas de tratamento e mitigação dos efeitos colaterais, mas também outros tipos de estudos e iniciativas, como a distribuição de informações qualificadas sobre o vírus e as formas de prevenção.

Dentro desse contexto, as universidades têm sido fundamentais ao redor do mundo, o que também se observa no Brasil. Em todos os estados, universidades públicas e privadas, e também os institutos federais, reuniram grupos de pesquisa e focaram boa parte das produções no enfrentamento à pandemia. No território gaúcho, diversas instituições desenvolvem pesquisa, auxiliam em trabalhos laboratoriais, atuam para levar informação de qualidade para a população e se juntam a projetos estaduais e municipais.

Para tentar monitorar esta atuação, pesquisadores do Observatório Interdisciplinar de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP) mapearam iniciativas de universidades e institutos federais contra a Covid-19, em todo o Brasil, entre março de 2020 e janeiro de 2021. As observações resultaram em dois boletins informativos sobre a produção das instituições de ensino e no lançamento de uma plataforma on-line.

Foram contabilizadas mais de 3.075 iniciativas em todo Brasil, sendo que, no Rio Grande do Sul, o total de projetos mapeados foi 269, o que representa 8,75% da produção nacional e classifica o RS como o quarto estado com maior produção no país. Os três primeiros são Minas Gerais, São Paulo e Ceará. A intenção do grupo de pesquisadores, coordenado pelos estudantes de Gestão de Políticas Públicas da USP e pesquisadores bolsistas do Observatório Pamela Quevedo e Ergon Cugler, foi registrar a participação na linha de frente dessas instituições de ensino que, em muitos casos, têm acesso a poucos recursos, principalmente no contexto da pandemia.

Os trabalhos do Projeto Ciência Popular, segundo Quevedo e Cugler, nasceram de uma angústia dos estudantes com relação às políticas públicas educacionais no país. “Enquanto alguns discursos estavam disputando a agenda governamental sobre o uso dos recursos dos pesquisadores, sugerindo que universidades públicas não tinham produções de qualidade e mais um monte de grosserias, surgiu a pandemia e também essa necessidade: unimos as duas questões e construímos um mapeamento que mostrasse essa produção”, comenta Quevedo.

Segundo ela, o objetivo inicial do mapeamento foi demonstrar, publicamente, que as universidades, principalmente as públicas, “não são aquela bagunça que muitos falavam”. “As universidades, no geral, estão na linha de frente no combate à pandemia. Mesmo com poucos recursos, demonstramos na nossa pesquisa que os universitários atuam desde a fabricação de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) até a produção de álcool em gel, por exemplo, e é preciso destacar a importância desses projetos”, pontua.

Pelo menos 267 projetos mapeados pelo Ciência Popular conversam diretamente com a gestão pública, ou seja, auxiliaram os governos, nas mais diversas esferas, no sentido de enfrentar as consequências da Covid-19. De acordo com Cugler, o Projeto Ciência Popular contou ainda com a colaboração de dois professores orientadores, Gisele Craveiro e José Carlos Vaz, e outros estudantes e pesquisadores que foram voluntários. “Também queríamos demonstrar que, no momento em que a sociedade mais precisou das universidades, elas não hesitaram em estar na linha de frente ao lado dos profissionais da saúde”, frisa. Cugler ressalta que a produção científica foi determinante em vários aspectos, desde a produção de testes para diagnóstico da Covid-19 até a elaboração de estudos e guias técnicos sobre a pandemia.

Durante os trabalhos, Cugler reforça que os pesquisadores também foram percebendo a defasagem nos recursos para essa produção científica tão diversificada e importante, principalmente ao longo da pandemia. Segundo ele, as principais bolsas acadêmicas de pesquisa estão há mais de uma década sem qualquer tipo de reajuste. “Hoje temos graduandos recebendo de R$ 400,00 a R$ 600,00, sendo que são pesquisadores que passam cerca de 8h por dia produzindo pesquisas, muitas vezes utilizando materiais próprios pois não há fornecimento adequado, ainda mais durante a pandemia”, assinala.

Visibilidade para a produção acadêmica

Além de levantar o número total de ações promovidas em todo o Brasil, os pesquisadores do Projeto Ciência Popular também produziram um recorte detalhado sobre o que foi essa produção. “Fizemos uma base de dados abertos, são mais de 3 mil linhas, 20 colunas de categorias para cada uma dessas iniciativas, com mais de 3 milhões de caracteres e tudo isso nós construímos manualmente, em parceria com os estudantes voluntários da USP, para mostrar todas as iniciativas mapeadas, inclusive a nossa, que também é uma produção acadêmica. A universidade existe, resiste e produz muita ciência”, afirma.

Uma das ações que mais chamou atenção dos pesquisadores, entre as mais de 3 mil categorizadas, foi a criação dos Capacetes Elmos. Eles foram criados no estado do Ceará, em uma iniciativa conjunta entre a Universidade de Fortaleza (Unifor), Universidade Federal do Ceará (UFC), Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai/Ceará) e governo do Estado do Ceará, por meio da Secretaria da Saúde, da Escola de Saúde Pública do Ceará e da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap).

Os Elmos, criados no estado do Ceará, são capacetes de respiração assistida para tratar pacientes com quadro leve ou moderado de Covid-19. O dispositivo melhora a capacidade respiratória e reduz em 60% a necessidade de internação em UTI, além de não ser invasivo. Foto: Tatiana Fortes / Governo do Ceará / CP

O Elmo é um capacete de respiração assistida para tratar pacientes com quadro leve ou moderado de Covid-19. O dispositivo melhora a capacidade respiratória, reduz em 60% a necessidade de internação em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), não é invasivo, tem baixo custo e promove mais segurança para os profissionais de saúde. A patente da marca e do modelo de utilidade foi registrada no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) freezers em nível institucional. Em todo o Brasil, pelo menos 200 instituições de ensino disponibilizaram ultrafreezers e geladeiras para a armazenagem das vacinas”, comenta Cugler.

Segundo ele, a mobilização no contexto da vacina também é fundamental para o enfrentamento da pandemia. “E também precisamos ressaltar que as vacinas são fruto de pesquisas acadêmicas e das produções científicas, então a universidade estar presente nesse momento demonstra como continua o empenho das redes de educação, em várias frentes diferentes, inclusive cedendo equipamentos próprios. Ou seja, são esses investimentos - muitas vezes em educação pública - que agora estão sendo utilizados para a mobilização do enfrentamento da pandemia com as vacinas”, assinala. Cugler reitera que o grupo não conseguiu mapear todas as iniciativas realizadas em nível nacional e existem muitas outras ações em desenvolvimento.

Quadrinhos para crianças

Entre as várias ações promovidas pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), um conjunto de iniciativas realizadas por cursos de graduação e pós-graduação envolvem a produção de quadrinhos para ajudar crianças a entender melhor como se prevenir da Covid-19, dicas para quem está com crianças em casa, dicas de exercício físico com vídeo, entre outros projetos.

De acordo com a coordenadora do projeto e professora da UFCSPA, Renata Padilha Guedes, a iniciativa “Oficina Anatomia” é voltada para os professores das escolas públicas da Capital. “Normalmente fazemos encontros para discutir como são trabalhados os temas relacionados ao corpo humano e à saúde nas escolas, mas, em função da pandemia, desde o ano passado não pudemos fazer mais encontros presenciais e a nossa equipe resolveu mudar um pouco o foco do projeto, tentando trabalhar com os professores a construção de materiais que pudessem ser utilizados no ensino remoto. Também começamos a fazer os quadrinhos sobre lavagem das mãos, utilização das máscaras”, explica.

Conforme Guedes, foi criado um personagem chamado “Alcogélson”, justamente para chamar atenção das crianças e, a partir disso, os materiais começaram a ser divulgados para os professores que faziam parte do projeto. “Depois também começamos a divulgar nas redes sociais da UFCSPA e, posteriormente, começamos a focar nos materiais que são utilizados no ensino remoto mesmo”, detalhou. As explicações foram desenvolvidas de forma simplificada para instruir de forma adequada as crianças sobre a Covid-19, especificamente sobre os cuidados como lavagem das mãos e uso de máscaras. Os quadrinhos foram criados pela mestranda em Biociências da UFCSPA Maria Paula Oliveira.

Rede de solidariedade

Uma ação colaborativa que nasceu em decorrência da pandemia. Assim, em meio ao combate à Covid-19, que o projeto “Rede de Solidariedade com e pela comunidade contra o coronavírus” (Solicom) surge em Porto Alegre, para auxiliar as comunidades do Morro Santana e Glória, nos bairros Cruzeiro e Cristal. Desenvolvida por cerca de 30 estudantes e 60 professores e pesquisadores da Ufrgs, a iniciativa propõe ações ordenadas para que as comunidades consigam se preparar para o combate ao coronavírus. O projeto atinge quase 300 mil pessoas (de acordo com dados censitários) e é construído a partir da comunidade. “Cada docente da Universidade aplica a sua área de conhecimento de acordo com a necessidade do local. Por exemplo, a Faculdade de Farmácia produziu e distribuiu álcool em gel com orientações, seguindo o padrão farmacêutico de como utilizar o produto de maneira eficiente na comunidade; o Serviço Social organizou um posto de coleta de alimentos e produtos de higiene para atender a alta demanda diante do isolamento social”, conta Denise Bueno, uma das coordenadoras do projeto. Parcerias com a indústria buscam a doação de embalagens e outros professores trabalham na criação de vídeos que explicam detalhada e corretamente as medidas de prevenção à Covid-19. “A comunidade valida o material e solicita outros, tudo realizado com o apoio dos alunos”, salienta Denise.

A comunicação e a logística são feitas remotamente, de maneira on-line, preservando a segurança de servidores, estudantes e da população das comunidades. “Nós estamos aprendendo muito com os moradores. É fundamental atuarmos com as comunidades porque se trata de uma população vulnerável, que está no topo da lista de risco por conta dos determinantes sociais”, lembra Denise.

A Ufrgs desenvolve atividades nessas comunidades há alguns anos - como estágios e projetos de pesquisa e extensão - voltadas ao combate à desigualdade social. “O momento, agora, é de fazer a diferença. São 13 cursos da área da saúde envolvidos no cotidiano destas comunidades, entre eles, podemos citar Biologia, Biomedicina, Enfermagem, Educação Física, Farmácia, Fonoaudiologia, Medicina, Medicina Veterinária, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Saúde Coletiva e Serviço Social.”

Testes RT-PCR

O Instituto de Ciências Básicas da Saúde (ICBS) da Ufrgs já acumula 85 mil testes realizados, com um pico de até 1,2 mil amostras testadas em um único dia. Foto: Flávio Fontana Dutra / UFRGS / CP

A atuação da Ufrgs no combate à pandemia de Covid-19 iniciou logo que os primeiros impactos foram verificados no país.

Uma das ações é o trabalho de detecção de contaminados por meio da aplicação do teste RT-PCR. De forma emergencial, o Instituto de Ciências Básicas da Saúde (ICBS), no Campus Centro, foi reorganizado e adaptado para a realização dos exames, como forma de apoiar a demanda que crescia no Rio Grande do Sul. O trabalho completou um ano no dia 16 de abril e, até agora, já acumula 85 mil testes realizados, com um pico de até 1,2 mil amostras testadas em um único dia, contando com o empenho e a dedicação de docentes, discentes e técnicos administrativos da Ufrgs.

“Quando iniciamos, havia uma demanda do Estado para auxiliar o Lacen (Laboratório Central de Saúde Pública do Estado do RS) na realização dos exames, pois havia uma demanda superior à capacidade que o Lacen tinha naquele momento”, explica a diretora do Instituto, Ilma Brum. Posteriormente, o ICBS firmou acordo com prefeituras, sendo que a Prefeitura de Porto Alegre é o principal convênio no momento. Conforme a universidade, convênio com a Capital soma 58,8 mil testes e deve seguir até julho deste ano.
Segundo a diretora, foi estabelecida uma atuação conjunta com a participação de voluntários, tanto do ICBS, quanto de outras unidades da Ufrgs. “Voluntariamente, professores, técnicos administrativos e alunos de pós-graduação e graduação iniciaram a sua participação”, detalha Ilma Brum.

"Acreditamos que auxiliamos de uma forma significativa nessa testagem, que é extremamente importante para o isolamento dos contaminados. Quando consegue se isolar precocemente uma pessoa contaminada, nós evitamos a disseminação do vírus de uma forma mais descontrolada”, ressalta. Além disso, Brum destaca que a ação continua em andamento, contando com aproximadamente 150 pessoas, com capacidade de processamento superior a 1 mil testes por dia. “No pico que tivemos em março e início de abril de 2021, houve dias em que foi preciso processarmos 1,2 mil amostras e conseguimos dar conta dessa demanda”, frisa.

A outra ação da qual o ICBS também participa é a realização do monitoramento ambiental pela carga viral presente nos esgotos. “Foi estabelecida, também aqui pelo laboratório de virologia do ICBS, a técnica de quantificação da carga viral nesses esgotos", detalha, complementando que algumas estações de Porto Alegre vêm sendo monitoradas. "Os dados da carga viral coincidem com os índices de positividade que temos obtido nos testes de RT-PCR dos pacientes que são encaminhados para nós", destaca.

No início da preparação para o serviço, o ICBS reuniu os equipamentos que já possui e mobilizou outras ações para aperfeiçoar o trabalho. Durante o período, o instituto recebeu doação de dois extratores, um do Banrisul e outro da Engie Engenharia, o que possibilitou a significativa ampliação de capacidade de testagem.

O ICBS disponibiliza os swabs (“cotonetes” utilizados nos testes) para a coleta do material a ser analisado, que é feita pelas tendas de testagem. As amostras retornam para o instituto, onde a equipe de recepção faz a checagem de dados e outra equipe os cadastra no sistema. A equipe de biossegurança (NB2) faz a inativação do vírus e então ocorre a extração do material genético. A partir desse momento, é feito o teste PCR. Concluído o teste, o resultado é liberado pela equipe de laudos. Há ainda a equipe responsável pelo transporte dos testes e materiais necessários e a equipe administrativa, responsável pela compra dos materiais. Outras equipes são responsáveis pela coleta de resíduos, lavagem de uniformes e descarte de materiais que não podem ser reutilizados.

Projetos mapeados no Rio Grande do Sul

Total: 269 (8,75% da produção nacional, 4º estado no Brasil)

Destes, 6 são da área de ensino (4,2% da produção nacional), 48 de pesquisa (6,1%) e 215 de extensão (10%). 

Sobre a destinação:

  • 3 projetos voltados ao setor privado e ao comércio 
  • 4 à comunidade escolar
  • 15 a profissionais da saúde 
  • 33 a cientistas e pesquisadores 
  • 43 a gestores e poder público 
  • 171 à população e sociedade civil

Tipos:

  • 2 projetos de rede de  solidariedade ou doações de alimentos 
  • 3 de capacitação de profissionais da saúde
  • 6 de produção de respiradores e/ou equipamentos de apoio às UTIs 
  • 13 outros projetos 
  • 14 de produção de EPIs (ex: face shield, máscara ou luvas)
  • 15 de produção de testes para detecção da Covid-19
  • 16 de produção de desinfetantes (ex: álcool ou água sanitária)
  • 31 projetos de estudos ou projeções socioeconômicas 
  • 50 projetos de orientações ou apoio ao isolamento social (ex: psicossocial, nutricional, atividade física ou entretenimento) 
  • 50 de apoio ao atendimento a pacientes com Covid-19 (ex: leitos, estrutura ou profissionais) 
  • 69 projetos de disseminação de informações e divulgação científica 
Correio do Povo
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