Novas leis no combate à violência política

Novas leis no combate à violência política

Por
Flávia Simões*


Os instrumentos legais sancionados no ano passado deverão provocar impacto nas eleições deste ano, nas quais a expectativa é de aumento da presença feminina nas disputas políticas

Frases como "calma, a senhora não tomou os seus remedinhos" ou “eu vou colocar um cabresto na sua boca” proferidas por parlamentares homens contra suas colegas mulheres são alguns dos exemplos de situações reais, vivenciadas dentro de casas legislativas pelo país, que podem, agora, ser enquadradas como crime de violência política em função de gênero. As leis foram aprovadas no ano passado e servem para assegurar a participação feminina dentro dos espaços de poder. Os novos instrumentos legais deverão ter reflexos na eleição deste ano, na qual a expectativa é de aumento da presença feminina.

Sancionada há um ano, a Lei 14.192/21 estabelece normas para combater a violência política contra mulher e determina como crime qualquer ação, conduta ou omissão com a finalidade de impedir, obstaculizar ou restringir seus direitos políticos. A matéria ainda garante “os direitos de participação política da mulher, vedadas a discriminação e a desigualdade de tratamento em virtude de sexo ou de raça no acesso às instâncias de representação política e no exercício de funções públicas”. Enquadrada no artigo 326-b do Código Penal, a pena inclui reclusão, de um a quatro anos, com possibilidade de aumento, e multa. 

Na mesma esfera, foi sancionada a Lei 14.197/21 que estipula como crime contra o Estado Democrático de Direito a violência política em razão do sexo, raça, cor etnia e religião. A pena é ainda mais alta e inclui multa e possibilidade de reclusão de três a seis anos. Estas são as primeiras medidas que preveem uma responsabilização efetiva para aqueles que tentarem intimidar candidaturas ou mandatos femininos. 

As novas normas foram estabelecidas como uma forma de tutelar e garantir um aumento real da participação feminina dentro da política, através de um mecanismo legal de proteção que assegure seus direitos dentro das esferas de atuação política. “Não é uma questão de não ser suficiente, porque a mulher não é hipossuficiente, não representa uma minoria na nossa sociedade, ela representa até a maioria, só que ela é discriminada por vários fatores sociais e políticos que impedem efetivamente que ela tenha mais acesso às esferas de poder”, explica a procuradora Raquel Branquinho, coordenadora do grupo de trabalho da Procuradoria-Geral Eleitoral do Ministério Público Federal (MPF), criado com o objetivo de acompanhar a implementação das novas leis, em especial a 14.192/2021.

O grupo, que tem atuado desde o início deste ano, trabalha em conjunto com as procuradorias regionais e do Ministério Público Federal a fim de garantir a implementação e o cumprimento da lei. O objetivo, contou a procuradora, é trazer mais sensibilidade ao tema dentro da esfera jurídica e fazer com que ele se torne uma prioridade. “É uma lei nova e, em alguns momentos, ela tem sido interpretada de uma forma restritiva”, resumiu. Um dos trabalhos desenvolvido pelo grupo é intensificar e ampliar os meios de denúncia e emitir representações aos órgãos do MP responsáveis pelos casos.

Desde a implementação do GT, foram encaminhadas 16 representações sobre casos em que o grupo entendeu que houve violência política de gênero. Destes, pelo menos três resultaram na abertura, pelas promotorias eleitorais locais, de denúncias enquadradas no artigo 326-B do Código Penal. Uma ainda está em fase de investigação e uma foi arquivada. As demais representações ainda não tiveram novos desdobramentos. O grupo também monitora o andamento de outros casos que passaram pela Procuradoria-Geral Eleitoral. 

Desde que a lei foi sancionada, o MPF instaurou 31 procedimentos para apurar casos com base na norma, decorrentes de representações recebidas pelo órgão ou abertos de ofício por procuradores. Além desses, outros três casos foram encaminhados diretamente às promotorias eleitorais (MP Estadual), sem a necessidade de abertura de procedimento no MPF.

Normas devem contribuir para as eleições

A violência política de gênero é um tema que perpassa o período eleitoral e, não raro, são noticiados casos de agressões, principalmente verbais, a mulheres exercendo mandatos. Ainda assim, as ações do grupo de trabalho estão focadas em garantir às candidatas, através da fiscalização a partir das novas leis, um pleito seguro. “Esperamos que com essa legislação haja realmente uma diminuição dessas violências, pelo menos nos períodos em que mais se acirram os ânimos, que são esse período eleitoral”, disse a procuradora Raquel Branquinho. 

Segundo o ranking da União Interparlamentar (UIP), apesar de as mulheres representarem mais de 50% do eleitorado e da população, o Brasil ocupa a 143ª posição entre 193 países em participação delas na política. Nesse contexto, ambas as leis são medidas importantes para aumentar o número de mulheres dentro dos espaços de poder e, principalmente, garantir que elas tenham condições de concorrer e exercer seus mandatos. 

Apesar de recentes, o que impede avaliações mais profundas, para Cibele Cheron, doutora em Ciência Política pela Ufrgs e integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero, as medidas já devem ter reflexos nas eleições deste ano. Ela acredita que essa mudança só será possível caso ocorra uma estrutura efetiva para o acolhimento das denúncias. “Havendo condições de as mulheres denunciarem essas violências, a chance de a gente conseguir efetividade desses instrumentos legais é maior”, frisou. “O Judiciário tem que se mobilizar de uma maneira muito efetiva para fortalecer os mecanismos de segurança e de proteção para mulheres em cargos políticos, ou concorrendo a cargos políticos, ou nas estruturas dos quadros partidários, para que elas possam ter acesso aos espaços em que se exerça a política.”

Cibele destacou, contudo, que as leis de forma isolada não são suficientes enquanto não ocorrer uma alteração estrutural. Ela explica que a violência política contra as mulheres é algo já naturalizado e enraizado há séculos e, para efetivas mudanças, é preciso a mobilização de todos os setores da sociedade através do entendimento de que a violência é uma ferramenta que priva as mulheres do exercício dos seus direitos políticos. “A gente precisa acolher as denúncias e não questionar as mulheres que sofrem a violência, mas questionar os homens que as cometem e romper esse ciclo.” 

A cientista política Juliana Fratini, autora do livro “Princesas de Maquiavel: por mais mulheres na política”, também defende a necessidade de mudanças culturais na sociedade como uma forma de minimizar, cada vez mais, a violência política de gênero. Entretanto, para ela, apenas as leis não devem causar tanto impacto no pleito deste ano. O que deve ocorrer é uma sensibilização em função das consequências. Ou seja, os desdobramentos dos casos, principalmente aqueles envolvendo punições mais severas, como perda de mandato ou reclusão, servirão de exemplo e, com isso, devem ajudar a evitar mais episódios. “Uma lei não vai coibir (as agressões). Só vai coibir depois que os agressores perceberem que eles vão ser pegos”, explica. “A pressão social contra violência hoje em dia é muito grande.” 

Para um, ideológico. Para a outra, emocional 

São vários os exemplos de deputados, vereadores ou candidatos que usam de artifícios como falas desrespeitosas, interrupção ou assédio para diminuir ou desclassificar determinada candidata ou política mulher. Em muitos casos, a ideologia não é o ponto central do debate, diferindo dos embates entre postulantes ou parlamentares homens onde este é, quase sempre, o precursor das discussões. 

“Nervosa”, “descontrolada”, “histérica”. São todos micromachismos, termos que são utilizados para desqualificar a atuação de mulheres na esfera política, trazendo o emocional. Como se as mulheres não tivessem racionalidade e por isso elas não fossem qualificadas para atuar politicamente”, exemplificou a cientista política Cibele Cheron. 
Diante deste cenário, Juliana Fratini, que atua para ampliar a presença de mulheres na política, buscou reunir parlamentares de diferentes espectros políticos para falar de um ponto em comum a todas: a violência política de gênero. 

Segundo a cientista política, para além dos casos, há aquelas violências estruturais implícitas a todas as mulheres. Um exemplo é a disparidade entre o percentual de eleitoras (52%) e o percentual de mulheres na Câmara dos Deputados (15%). “Isso enquanto a lei estimula que os partidos lancem 30% de candidaturas e destinem 30% dos recursos partidários para as candidaturas femininas. É muito pouco (o número de mulheres) e essa já é uma forma de violência”, explicou, ao elencar também as candidaturas laranja ou as indicações de mulheres na composição de chapas apenas para usufruto ou em situação de subordinação. 

“Alguns partidos estão em busca de chapas para majoritária, como governo de Estado, e querem uma mulher como vice porque eles sabem que ali vai ter 30% dos recursos partidários. Tem uma composição de interesses em torno da candidatura feminina que se constitui como uma forma de violência”, enfatizou. Para Juliana

, um dos casos mais emblemáticos é o Congresso Nacional só ter instalado um banheiro feminino há poucos anos. “É uma violência que não é direta, é estrutural. Pelo tipo de estrutura social que nós temos e do próprio sistema político como ele é constituído”, resume. 

Na intenção de criar espaços para debater e buscar resoluções para os problemas em comum que Juliana organizou o bate-papo “Mulheres na Política”, em São Paulo. A iniciativa reuniu parlamentares de todas as alas ideológicas. “A gente precisa criar esses ambientes de conversa para resolução de temas que são comuns aos gêneros, que ultrapassam as perspectivas e expectativas ideológicas. Porque a questão feminina grita e todas sofrem”, enfatizou. 

De olho nos partidos

A Lei 14.192/21 também determinou que os partidos políticos deveriam realizar mudanças em seus estatutos visando à prevenção, repressão e combate à violência política contra a mulher. O texto estipulou um prazo de 120 dias, a partir da sanção do presidente, para que as siglas fizessem as alterações.

Em junho, um levantamento do GT comandando por Raquel constatou que dos 32 partidos registrados no TSE, 11 siglas e duas federações já haviam promovido ajustes, mas que ainda faltavam complementos. Seis informaram que adotariam medidas e 13 nada informaram. Dois partidos e uma federação não foram oficiados pelo MP Eleitoral, uma vez que seus estatutos fizeram alterações consideradas satisfatórias no aspecto formal. 

Entre as mudanças sugeridas, estão ações afirmativas que possibilitem maior participação feminina na política e na estrutura intrapartidária, incluindo a previsão estatutária de participação de mulheres nos órgãos diretivos. Uma vez que a política se inicia dentro dos partidos, conforme explica a procuradora, é essencial que as mulheres estejam inseridas nas direções e nos núcleos do partido. “Não tem como você praticar uma equidade na sociedade se você não tem órgãos que são em si equânimes. Porque não vai ter uma visão feminina ali dentro, vão ser homens tratando de uma política feminina. É complicado”, salientou. 

Outra recomendação do GT, além da adoção de medidas de prevenção, é para que as legendas adotem políticas de repressão para aqueles indivíduos que forem enquadrados pelo crime de violência política, investigando e punindo, conforme ato praticado. 

Classificação das siglas

  • Promoveram ajustes, mas faltam complementos (13 partidos/federações): PCB, PCdoB, PSC, Cidadania, PL, Pros, Agir, Federação (PT, PCdoB e PV), Federação (PSol e Rede), PSD, PMB, União Brasil e Republicanos. 

  • Informaram que adotariam medidas (pendentes) (6 partidos): Avante, PSB, PSDB, PSTU, PV e Solidariedade. 

  • Nada informaram (13 partidos): DC, Novo, Patriota, PCO, PMN, Podemos, PP, PRTB, PSol, PT, PTB, Rede, UP. 

  • Não estão sendo oficiados (2 partidos e 1 federação): MDB, PDT e Federação (PSDB e Cidadania). 

 

Texto: Flávia Simões
Supervisão: Mauren Xavier
Edição:  Veridiana Dalla Vecchia
 


 

 

 

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