O balanço terrível de um ano de guerra

O balanço terrível de um ano de guerra

Doze meses após o início da invasão russa na Ucrânia, o resultado é devastador: dezenas de milhares de mortos, milhões de refugiados e deslocados internos, cidades bombardeadas e uma economia em colapso

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Cécile FEUILLATRE e Joris FIORITI / AFP

Quase 180.000 soldados russos mortos ou feridos e quase 100.000 militares ucranianos: este é o balanço, segundo a Noruega, da guerra que completa um ano no dia 24 de fevereiro. Outras fontes ocidentais citam 150.000 baixas de cada lado. Em comparação, durante a guerra do Afeganistão (1979-1989), a então União Soviética perdeu 15.000 soldados.

O lado ucraniano utiliza com frequência os termos “bucha de canhão” e “carnificina” para definir a estratégia russa: recrutas mal treinados enviados para a morte quase certa. Milhares de prisioneiros russos também se uniram ao grupo paramilitar Wagner, forçados por seus companheiros de armas a seguir adiante, mesmo diante de alvos impossíveis, de acordo com Kiev e seus aliados. Os incessantes ataques russos também provocam grandes perdas do lado ucraniano, como demonstram as muitas bandeiras com as cores azul e amarelo nos cemitérios.

CIVIS MORTOS

Na cidade portuária de Mariupol (no sul), os cadáveres permaneceram nas ruas após três meses de bombardeios russos. Mais de 20.000 civis ucranianos faleceram até então, segundo Kiev. Entre 30.000 e 40.000 morreram em um ano de conflito, segundo fontes ocidentais. 

No fim de janeiro, a ONU calculou em 18.000 o número de civis mortos e feridos, mas reconheceu que “os números reais são muito mais elevados”. Entre os mortos, Kiev menciona “mais de 400 crianças”. A maioria das vítimas morreu em bombardeios russos, de acordo com as Nações Unidas. 

As minas, menos mortais até o momento, podem ser mais letais a longo prazo. Quase 30% do território ucraniano está repleto de minas, afirma Kiev. A ONG Human Rights Watch (HRW) acusa a Ucrânia de espalhar minas terrestres pela região de Izium (leste). Especialistas afirmam que serão necessários vários anos para limpar o território.

CRIMES DE GUERRA

A guerra na Ucrânia ficará na memória coletiva pelas imagens duras: corpos de civis com as mãos amarradas às costas nas ruas de Bucha após a retirada russa, um bicho de pelúcia repleto de sangue na estação de Kramatorsk, uma maternidade bombardeada em Mariupol, entre outras. Quase 65.000 supostos crimes de guerra foram denunciados, segundo o comissário europeu de Justiça, Didier Reynders. As tropas russas foram acusadas de execuções, estupros, torturas e sequestros de crianças, mais de 16.000 enviadas à Rússia ou territórios sob seu controle, segundo Kiev. Em setembro, investigadores da ONU acusaram as forças russas de crimes de guerra “em larga escala”. 
A Ucrânia foi acusada de cometer crimes de guerra contra prisioneiros russos, mas sem comparação com a quantidade de fatos atribuídos a Moscou. O Tribunal Penal Internacional abriu em 2 de março de 2022 investigação por crimes de guerra e crimes contra a humanidade na Ucrânia.

1.500 QUILÔMETROS

O leste da Ucrânia recorda imagens da Primeira Guerra Mundial: soldados exaustos no fundo de trincheiras lamacentas, enormes crateras provocadas pelos projéteis, cenário apocalíptico em vilarejos e cidades. A linha de frente "ativa" alcança 1.500 quilômetros no eixo norte-sul no leste da Ucrânia, de acordo com o comandante do exército ucraniano, Valeri Zaluzhny.

Em Bakhmut, um dos principais pontos da guerra, uma batalha extremamente violenta envolve há meses o exército ucraniano, as forças russas e os mercenários do grupo paramilitar Wagner, que avançam lentamente. Milhares de civis ainda vivem nas cidades bombardeadas, escondidos em porões, sem água ou energia elétrica e dependentes da ajuda humanitária. Na retaguarda, os bombardeios também atingem cidades como Kramatorsk.

Nas áreas liberadas pela Ucrânia, assoladas pela destruição, ainda existe o risco de voltar a cair sob controle russo. As tropas de Moscou ocupam 18% da Ucrânia, mas, segundo o general Zaluzhny, Kiev retomou 40% dos territórios ocupados pela Rússia desde a invasão de 24 de fevereiro de 2022.

Economia da Ucrânia em colapso

cas paralisadas, infraestruturas destruídas: estas são algumas imagens no sul e leste da Ucrânia, onde se concentram os combates desde que Moscou fracassou na tentativa de tomar Kiev em abril.

O custo econômico para a Ucrânia foi enorme: o PIB registrou contração de 35% em 2022, de acordo com informações do Banco Mundial.

A “Kyiv School of Economics” calculou os danos em 138 bilhões de dólares e as perdas para a agricultura em mais de 34 bilhões de dólares. Mais de 3.000 escolas foram afetadas, segundo o governo ucraniano. A Unesco contabiliza 239 centros culturais atingidos.

Desde setembro, Moscou ataca sistematicamente as infraestruturas de energia. Em dezembro, quase metade das instalações estava danificada, o que deixou os ucranianos no escuro e frio.

REFUGIADOS

De acordo com a ONU, os combates deixaram mais de 5 milhões de deslocados internos e obrigaram quase 8 milhões de pessoas a abandonar a Ucrânia. A Polônia é um dos principais países de recepção, com mais de 1 milhão de pessoas. Os comandantes da ocupação russa afirmam que pelo menos 5 milhões de ucranianos seguiram para a Rússia. Kiev chama de "retiradas forçadas".

AJUDA MILITAR OCIDENTAL 

Em abril, colunas de veículos militares ucranianos do período soviético atravessavam o país em direção ao Donbass, no leste do país. Os soldados ucranianos pediam na época armas ocidentais para contra-atacar os russos, um apelo que teve resposta.

O centro de pesquisas alemão Kiel Institute calculou as promessas de ajuda militar a Kiev por parte de seus aliados em 40,4 bilhões de dólares. Os lança-foguetes americanos Himars, cujo alcance de 80 quilômetros é superior ao dos equipamentos russos, ajudaram a Ucrânia a registrar importantes avanços no outono (hemisfério norte, primavera no Brasil).

Em janeiro, o Ocidente decidiu fornecer tanques de combate a Kiev, rompendo o primeiro tabu. O envio de caças à Ucrânia pode ser o próximo passo.

A ameaça de uso de armamento nuclear ainda existe?

Pela primeira vez desde a Crise dos Mísseis em Cuba, o mundo corre o risco de um apocalipse, alertou o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em outubro. Um ano após a invasão russa da Ucrânia, esse perigo ainda existe? 

Poucos dias depois de atacar a Ucrânia, o presidente russo, Vladimir Putin, ordenou a mobilização das forças nucleares. Washington classificou o anúncio de "perigoso" e "irresponsável" e advertiu Moscou sobre as "consequências catastróficas" disso. 

A Rússia manteve suas ameaças, levantando temores de que Putin estivesse disposto a levar ações nucleares adiante e, assim, desencadear o apocalipse. "Não vimos um anúncio público dos russos sobre um estado de alerta nuclear elevado desde a década de 1960", disse a diretora de Inteligência Nacional dos Estados Unidos, Avril Haines.

SEGUNDOS PARA A  MEIA-NOITE

As autoridades russas tentaram esclarecer sua posição, dizendo que o país usaria armas nucleares apenas se enfrentasse uma "ameaça existencial". Em setembro passado, quando Putin declarou a anexação de quatro regiões da Ucrânia, caberia a pergunta: atacá-las equivaleria a uma "ameaça existencial" para a Rússia? 

Embora não tenha havido sinais de mobilização nuclear russa, em janeiro deste ano, o Boletim dos Cientistas Atômicos adiantou seu "Relógio do Apocalipse", que mede, simbolicamente, o fim do mundo. Faltavam apenas 90 segundos para a meia-noite, o que mostra que, para eles, a destruição da humanidade está mais perto do que nunca. 

"As ameaças apenas veladas da Rússia de usar armas nucleares lembram ao mundo que a escalada do conflito, por acidente, intenção, ou erro de cálculo, é um risco terrível", advertiu o Boletim. 

CONTROLE DE ARMAS

A ameaça não se deve apenas à invasão russa da Ucrânia. Os acordos de controle de armas entre Estados Unidos e a então União Soviética (URSS), que aliviaram as tensões da Guerra Fria, estão mortos, ou quebrados. O crucial Tratado de Mísseis Antibalísticos de 1972 entrou em colapso em 2002. Em 2019, os Estados Unidos se retiraram do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF, na sigla em inglês), que limitava os mísseis com capacidade nuclear de médio alcance. À época, alegou-se que a Rússia estava violando seus compromissos. E, no ano passado, Washington acusou Moscou de violar o Novo START de 2011, que limita as ogivas nucleares. 

Ironicamente, porém, afirma o pesquisador Pavel Podvig, do Instituto de Pesquisa de Desarmamento da ONU, as ameaças da Rússia podem ter tornado o mundo um pouco mais seguro, ao lembrar as gerações mais jovens desse perigo. 

Por um lado, disse ele, a Rússia pode ter calculado que poderia começar e terminar rapidamente uma guerra contra a Ucrânia, porque possui armas nucleares. Mas, nesse caminho, chocou-se com o apoio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) a Kiev e com o potente arsenal nuclear dos membros da Aliança Atlântica. 

O conflito pode, inclusive, ter ajudado a mostrar que este tipo de arma está "obsoleto", acrescenta Podvig, já que, como a própria Rússia pôde constatar, "não dão segurança". 

RETROCESSO GLOBAL 

Além disso, observa Podvig, os líderes mundiais, incluindo os aliados da Rússia, como Índia e China, reagiram negativamente aos avisos de Moscou, dando a impressão de que a ameaça nuclear é um tabu. 

Em setembro, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, expressou sua preocupação. E, em novembro, o G-20 declarou, ao final de sua cúpula em Bali, na Indonésia, da qual a Rússia participou, que o uso, ou a ameaça de uso, de armas nucleares é "inadmissível". 

Ainda mais reveladora foi a declaração conjunta de Biden e do presidente chinês, Xi Jinping, no âmbito dessa cúpula, observa Podvig. Nela, ambos concordam em "que nunca se deve travar uma guerra nuclear que nunca poderá ser vencida e ressaltaram sua oposição ao uso, ou à ameaça de uso, de armas nucleares na Ucrânia. 

Washington também moderou o tom do discurso, abstendo-se de mencionar "consequências catastróficas".

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895