O lado menos saudável do esporte

O lado menos saudável do esporte

Na busca pelos melhores resultados, atletas de alto rendimento levam o corpo ao limite e têm uma carreira de sacrifícios

Por
Carlos Corrêa e Victória Rodrigues*

João Derly não lembra de cabeça quantos adversários já derrotou ao longo da carreira. Poucos não foram, como indicam o bicampeonato mundial e a quantidade de medalhas amealhadas ao longo de uma trajetória de duas décadas nos tatames. Hoje em dia, um punhado de anos após se aposentar, no entanto, enfrenta um oponente que nunca imaginara quando vestiu os seus primeiros quimonos: o próprio corpo. “É uma engenharia. Só posso dormir de lado. O braço direito eu tenho que deixar apoiado na lateral do corpo. O esquerdo precisa ficar levemente levantado, senão acordo com muita dor no ombro e no cotovelo. Se deixar cair o ombro então, meu deus do céu, é um horror. Os joelhos não podem ficar em contato um com o outro, um tem que ficar apoiado na cama, senão acordo com muita dor. E tenho que elevar bastante a cabeça, usar dois travesseiros ou um bem alto para poder dormir, senão dói o pescoço e o próprio ombro”, revela.

Os benefícios da prática esportiva são conhecidos e indicados para qualquer pessoa. Além de fortalecer a estrutura anatômica, tornam a musculatura mais forte e mais resistente. A condição cardiorrespiratória também melhora significativamente, o que leva a uma melhor qualidade de vida. Do ponto de vista neurológico, a prática é estimulada porque, ao produzir determinadas substâncias, acaba sendo neuroprotetora para o cérebro. Os prós são todos conhecidos. Contudo, para quem, como Derly, lida com o esporte de forma profissional e mira sempre o alto rendimento, nem sempre o esporte é tão saúde assim.

“Esporte de alto rendimento, definitivamente, não é saúde. Ao aceitarmos a carreira de desportista, oferecemos a nossa saúde atlética ao desenvolvimento da modalidade e, na busca do alto rendimento e de superar os limites, ultrapassamos as barreiras da saúde”, afirma o hoje técnico de futebol Roger Machado, campeão de competições do porte da Libertadores e Brasileirão quando jogador. Pela popularidade, o futebol talvez seja a modalidade que torna mais visível o quanto os jogadores convivem com lesões. O caso do atacante Suárez, do Grêmio, que por dores no joelho teria cogitado até antecipar a aposentadoria, é o mais recente, mas não o único. O sacrifício de conviver com a dor ao longo de anos torna-se um item obrigatório de fábrica para qualquer um que mira o lugar mais alto do pódio, a faixa no peito ou a taça no armário.

"Não me recordo de ter treinado ou jogado sem algum tipo de desconforto"

Diga-se a verdade, o preço da glória não é enganoso. Desde cedo, qualquer profissional do esporte sabe que o caminho será longo e tortuoso. O que, por outro lado, torna a recompensa tão catártica. Pode não ser a melhor das relações, mas ela é clara e objetiva. “A grande maioria das vezes, o atleta treina machucado, então tu vai estar sempre com alguma coisa, sempre vai ter alguma queixa, isso é normal”, pondera Derly.

O limiar do quanto a dor é suportável varia de cada indivíduo. Com o tempo, se o sofrimento não cessa, pelo menos a experiência deixa mais evidentes quais fronteiras não devem ser ultrapassadas. “É importante que o atleta conheça o limite do seu corpo para entender quais são aquelas dores que podem ser bem administradas e quais as que podem se transformar em lesões que vão lhe tirar muito tempo”, explica Roger, que prossegue: “Invariavelmente um atleta de alto rendimento vai conviver com as lesões. Há uma linha muito tênue na busca por superar os limites entre estar na aptidão da forma física e se lesionar. Não me recordo de ter treinado ou jogado sem algum tipo de desconforto. Se eu levantasse de manhã sem dor, dava uma canelada na cama porque tinha alguma coisa errada com o meu corpo”.

Gustavo Endres já conquistou tudo que um jogador de vôlei pode conquistar: Jogos Olímpicos, Mundial, Copa do Mundo, Liga Mundial. Aos 47 anos, pode se dar ao luxo de não ter no currículo nenhuma lesão mais grave. Mesmo assim, para além da dor, lembra que o aspecto emocional pesa muito quando o corpo obriga a parar. Ele lembra de uma lombalgia que teve em 2003. Não ficaram maiores consequências, mas naquele momento era assustador. “Sempre quando estava tentando voltar eu sentia dor e isso foi o meu maior medo, porque nas minhas piores crises eu não conseguia nem dormir direito e achei que iria ter que parar de jogar vôlei”, recorda.

Por mais variado que seja o leque de lesões, há algumas similaridades nas causas. A primeira, diz Bruno Baroni, professor do Departamento de Fisioterapia da UFCSPA, é quando o atleta não apresenta condições de suportar a carga de trabalho da sua rotina de treinamentos. A outra é o cansaço. Seja na hora, seja no ano. “O atleta normalmente se lesiona no final da partida ou em final de campeonato, de temporada. Ele já vem com uma fadiga acumulada”, indica a professora titular do Departamento de Educação Física, Fisioterapia e Dança da Ufrgs, Cláudia Lima, lembrando que nessas condições o tempo de reação do corpo é menor.

Campeão olímpico com o vôlei, Gustavo Endres temeu pelo fim da carreira em uma lesão. Crédito: Ricardo Giusti

A dor é só uma pedra no caminho

Quando uma medalha de ouro se avizinha no horizonte, não há nada que faça com que um atleta de alto rendimento desvie do seu foco. Muito menos dores no corpo. “A vontade de ganhar fala mais alto para os grandes atletas”, avalia Kiko Klaseer, técnico de natação do Grêmio Náutico União (GNU), que em julho embarca para o Japão em função do Mundial da categoria.

Não são poucos os relatos de esportistas que, depois de uma conquista, revelam que estavam longe das melhores condições no dia da prova/partida. O sacrifício é tão lugar comum, tão corriqueiro para um profissional, que muitas vezes nem há tempo para sequer colocar em dúvida a decisão de deixar o corpo em segundo plano. “Fiquei dois anos lutando sem o ligamento cruzado anterior do joelho esquerdo. Fui bicampeão mundial, me tornei o campeão dos Jogos Pan-Americanos sem o ligamento cruzado anterior”, conta João Derly.

"Os atletas estão acostumados a um nível de exigência grande, têm um limiar para dor muito maior"

Não é que a dor não esteja ali. Ela está e muitas vezes parece gritar. Só que o som é abafado pelo desejo de um feito maior. “Eu machuquei o meu ombro duas semanas antes do Mundial, em 2001. Lutei com muita dor. Estava muito recente ainda a luxação, foi quase no nível de fazer cirurgia. Mas eram duas semanas antes do Mundial. Ou lutava o Mundial ou ficava de fora para me operar”. Derly, é claro, optou pelo tatame.

O problema é que muitas vezes a decisão por suportar um pouco mais o sofrimento acaba por gerar problemas ali adiante. Em modalidades coletivas, é comum que um jogador minimize uma lesão com receio de perder a vaga. “Em geral, o atleta vai empurrar isso, ele vai demorar para te dizer que está doendo, para dizer que não dá mais para ele jogar porque está incomodando muito. Eles estão acostumados a um nível de exigência grande, têm um limiar para dor muito maior”, observa a professora de fisioterapia da Ufrgs, Cláudia Lima.

Ansiedade na recuperação

Se o limiar de sofrimento é esticado ao máximo no esporte profissional, não é difícil de se imaginar que o nervosismo impere quando a parada se faz obrigatória. Ocorre que a importância do período de recuperação é tão vital para um jogador quanto um bom treinamento. “É difícil lidar com a adesão do atleta ao tratamento por conta da ansiedade de querer estar sempre em campo, treinando. Para ele, tratar a lesão às vezes é uma perda de tempo, então é bem difícil essa equação de tentar fazer com que pare para o bem dele, enquanto ele quer continuar apesar da dor”, revela o médico Carlos Poisl, que por muitos anos trabalhou no Internacional.

A visão de fora da quadra de Poisl é corroborada por uma de quem estava lá dentro. “O mais difícil é quando se tem a primeira lesão, porque você acha que vai acabar o mundo. Lidar com o psicológico durante a recuperação é muito difícil. Eu não acreditava que aquilo estava acontecendo comigo. No pior momento, eu cheguei a pensar que nunca mais ia jogar”, conta o campeão olímpico de vôlei Gustavo Endres.

A cautela após uma lesão não cessa no retorno, uma vez que os cuidados para quem volta são redobrados. “Essas sequelas, que podem parecer mínimas em um estágio inicial, abrem caminho para outros fatores agravantes do quadro de saúde do atleta, podendo levar a situações em que ele acumula lesões em sequência na carreira e, em muitos casos, antecipa a sua aposentadoria do esporte”, diz o professor da UFCSPA, Bruno Baroni.

O desafio das inflamações

A imagem de um choque violento assusta por si só. De fato, ainda que não seja uma regra geral, em muitas ocasiões uma dividida tem mesmo um saldo pesado, como uma fratura. No entanto, em termos práticos, projetando a recuperação do atleta, lesões deste tipo são mais fáceis de serem tratadas do que outras aparentemente mais inofensivas, como as musculares.

Para os especialistas, no topo da pirâmide dos problemas mais complicados de lidar na medicina esportiva estão as inflamações. Ou como diz a professora de fisioterapia da Ufrgs, Cláudia Lima, “as ites”. “A fratura é grave, mas em geral em 45 dias está consolidado (o osso), pode fazer o que quiser, de acordo com a capacidade do atleta você vai trabalhando. Já uma tendinite, você alivia a dor, diminui o processo inflamatório, diminui o edema, aí você começa a fazer um trabalho de reforço muscular lento, acha que a pessoa está pronta para retomar a atividade, começa a fazer e a intensidade ainda é muito grande. Aí agudiza de novo. É uma lesão que seguido vai e volta, fica crônica e muitas vezes isso acompanha o atleta para o resto da vida”, explica.

Um dos fatores complicadores nas lesões decorrentes de inflamação é que a dor, principalmente nos estágios iniciais, não é incapacitante, o que leva poucos atletas a relatar o desconforto aos médicos. “As lesões por repetição são muito mais chatas de tratar, mas são menos intensas. O que acontece daí é que o atleta vai deixando”, explica Cláudia, lembrando que o tratamento é mais eficiente se iniciado logo nos primeiros registros de dor.

Ex-jogador e hoje técnico, Roger Machado teve, só nos joelhos, cinco cirurgias. Foto: Mauro Schaefer / CP Memória

"Calculo que as lesões me tiraram pelo menos duas temporadas"

Entre o seu primeiro ano como profissional e o último, Roger Machado teve uma carreira de 15 anos – isso sem contar as categorias de base. Muito do que era para ter acontecido dentro de campo, porém, acabou tendo como palco o departamento médico. “Eu calculo que as lesões me tiraram pelo menos duas temporadas”, relembra ele. A lista dos procedimentos é vasta: artroses de tornozelo, cinco operações de joelho, lesões de ligamento, de cartilagem, cirurgia de púbis.

Ao contrário do que se possa imaginar, não foi nenhuma das cirurgias de joelho que o afastaram por mais tempo. “Nem sempre as lesões mais graves são as que demandam mais tempo. A que me exigiu uma parada maior foi um processo inflamatório que se tornou uma incapacidade de cicatrização e uma infecção que precisou ser administrada e me deixou 8 meses parado. Houve outras mais sérias, mas que não geraram tanto tempo de afastamento”, diz.

João Derly é outro que quase enche uma mão contando as intervenções que já teve no joelho. O currículo ainda inclui ombro, cervical e até uma dor miofascial, que causava perda de força e formigamento em toda a parte do ombro e braço. O convívio com a dor, aliás, não cessa diretamente assim que chega a aposentadoria. “O corpo sente muito essa parada, porque tu tens uma carga horária muito alta de treinos, e aí tu sai dela para praticamente zero. Então, mesmo que se faça alguma atividade física é um pouco complicado”, aponta.

A dedicação e a entrega depois da aposentadoria podem não ser as mesmas. Mas quem teve toda uma vida no esporte de alto rendimento sabe que os cuidados serão sempre diferentes. “A gente paga um preço por anos de dedicação a esse esporte e quando você para tem que saber conviver com essas dores, normalmente tem que continuar fazendo um trabalho de musculação para manter tudo no lugar e não sofrer”, afirma o campeão olímpico Gustavo Endres.

Prevenção e tecnologia

Com o tempo, a maior aliada dos atletas que doam o corpo desde cedo para o esporte passou a ser a tecnologia. O trabalho de prevenção foi aperfeiçoado nos últimos anos graças à evolução da medicina e do avanço tecnológico empregado nela. No auge da carreira de João Derly, seus treinos eram adaptados de outros lugares e os erros acabavam ocasionando lesões. Na época, ainda nem se falava em fisioterapia preventiva. O mesmo acontece com o campeão olímpico Gustavo Endress que, apesar de ter tido acompanhamento profissional ao longo da carreira, não contou com um trabalho direcionado especialmente para prevenir lesões.

Foi há pouco menos de 10 anos que estratégias como o controle da carga de trabalho, o fortalecimento de grupos musculares específicos e a melhora da eficiência de movimento passou a ser introduzido na rotina do alto rendimento. “As lesões são recuperadas mais rapidamente, o atleta sabe lidar melhor com isso e, inclusive, ele já sabe também quais lesões vai ter ao longo da temporada”, explica Gustavo. “A musculatura estando fortalecida, a articulação ganha estabilidade e não sofre com sobrecargas”, completa o professor de boxe Eduardo Bancolini.

É evidente que um atleta possui uma consciência corporal mais apurada. Por isso, hoje o principal objetivo da fisioterapia preventiva é fazer com que esse atleta tenha um domínio maior do seu corpo para uma execução correta e precisa do movimento. É o que indica a professora de fisioterapia da Ufrgs, Cláudia Lima. “A gente pode detectar que aquele grupo ou um atleta em específico tem uma diminuição de mobilidade no tornozelo, por exemplo”, aponta a profissional, que prossegue: “Se a gente tiver uma diminuição de flexão dorsal do tornozelo, ele não ajuda amortecer o impacto na hora do salto, isso pode levar a uma tendinite patelar lá no joelho.”

"Hoje, as lesões são recuperadas mais rapidamente"

Em meados de 2003, um dos maiores nomes da ginástica nacional, Daiane dos Santos, conquistava sua medalha de ouro no Mundial. Apesar de ter chegado ao lugar mais alto no pódio, os equipamentos utilizados por Daiane não se parecem, nem de longe, com os que são usados hoje. A tecnologia evoluiu também na construção dos aparelhos, que passou a ser pensada para absorver o impacto, além de possibilitar ao ginasta realizar um maior número de repetições sem ocasionar uma lesão de estresse, algo bastante corriqueiro anteriormente. “Hoje o piso tem a mola que é de ferro, em cima tem um compensado e em cima tem um foam que é mais alto e absorve, mas ao mesmo tempo deixa saltar”, destaca Adriana Alves, técnica de ginástica do GNU.

A mesa utilizada no salto foi outro equipamento da modalidade adaptado para evolução técnica dos saltos. “Ela era muito estreita, então a base aumentou justamente para poder dar uma segurança maior para fazer coisas mais difíceis”, diz ela. A carga intensa de treinos também deu lugar a um planejamento que é distribuído de forma equilibrada, de modo a não sobrecarregar nenhuma parte do corpo. Hoje, se entende que o corpo do atleta necessita de descanso. “A gente tenta amenizar de todas as formas. Se trabalha com repouso ativo, que faz o atleta não ficar parado quando lesiona”, diz Adriana.

Técnica da ginástica do GNU, Adriana Alves afirma que tecnologia evoluiu e auxilia na prevenção às lesões. Foto: Ricardo Giusti

A prática para os pequenos

A infância costuma ser a idade ideal para iniciar no esporte. Para o alto rendimento esse fator se torna primordial. Quanto mais novo se aprende um gesto esportivo, mais fácil isso é internalizado corporalmente. Porém, hoje são poucos os que querem estar nesse lugar. A pandemia abriu os olhos da população sobre a importância da prática esportiva, mas também fez com que o medo imperasse sob as famílias, algo que não combina com o alto rendimento. As crianças que se mantêm são aquelas que a família compreende o risco de lesões durante os treinos, por exemplo. “A gente cai andando de bicicleta, caminhando na rua e vai cair no ginásio também”, explica a técnica da ginástica do GNU, Adriana Alves. “Fazemos de tudo para que seja uma queda normal e faz parte do treinamento cair. Quem não cai é porque não treina”, completa. Os pequenos que seguem no esporte precisam entender logo cedo que as lesões vão estar presentes na caminhada esportiva. Isso fez com que os técnicos adotassem uma linguagem lúdica para interagir com eles. “Existem alguns questionários simples que se pode fazer com carinhas perguntando, por exemplo, ‘qual é o teu nível de cansaço hoje?’ Aí tem uma carinha triste e uma feliz. A gente entra em uma linguagem que a criança entende o que é bom e o que é ruim”, conta Adriana.

"Quem não cai é porque não treina"

Na ginástica, é comum a prática começar logo na primeira infância. Aos 6 anos, as pequenas ginastas já começam com treinos três vezes na semana, em torno de uma a duas horas por dia. Intensidade que aumenta ao longo do crescimento, chegando a seis vezes na semana, meio período do dia. Isso faz com que o trabalho de base seja essencial. “É importante porque depois que o atleta desponta, para ele aprender a corrigir algo que já faz há muito tempo é muito mais difícil”, salienta a professora Cláudia Lima. O fortalecimento da musculatura desde cedo, aliado ao trabalho de prevenção fez com que as lesões nas crianças diminuíssem consideravelmente. As fatalidades estão sempre presentes, como cair da trave ou desenvolver bolhas nas mãos, por exemplo, mas lesões de repetições ou fraturas quase não existem nos pequenos.

Para diminuir ainda mais as chances de lesões nos menores, a Federação Internacional de Ginástica (FIG) mudou as regras e limitou os movimentos de cada categoria em grandes competições. “Agora existe uma limitação de movimentos para você executar na categoria juvenil, que é até 15 anos”, alega Adriana. “Então até 15 anos não pode executar certas acrobacias. Não pode, por exemplo, fazer um duplo mortal com tripla pirueta, porque não vai valer nada”, completa a técnica.

Traumas repetidos na cabeça aumentam o risco de problemas neurológicos em pugilistas. Crédito: Ricardo Giusti

Risco maior para boxeadores

Era julho de 1980. Um ano antes, Muhammad Ali havia anunciado o fim da mais prodigiosa carreira que o boxe mundial já viu. No entanto, agora, após uma oferta milionária, aceitara voltar aos ringues para enfrentar o compatriota Larry Holmes. Como havia pendurado as luvas, uma das exigências da Comissão Atlética de Nevada – a luta foi marcada para Las Vegas – era de que o ex-campeão fosse submetido a uma bateria de testes renais e neurológicos para que fosse avaliada suas condições.

Ele deu entrada então na renomada Clínica Mayo. Um dos exames, aparentemente banais, consistia em Ali colocar o dedo na ponta do nariz. Aos 38 anos, no entanto, o pugilista errou e apontou o indicador um pouco ao lado. Era perto, mas uma distância suficiente para que se visse que havia algum problema neurológico ali. Mesmo assim, o diagnóstico apontou apenas alguns lapsos de memórias recentes, mas liberou o atleta para subir no ringue e trocar socos com um adversário oito anos mais novo e no ápice da forma física. No dia 2 de outubro, um Ali irreconhecível para quem o viu no topo foi massacrado por Holmes até que o técnico Angelo Dundee jogou a toalha no 10º assalto, terminando a luta.

Um ano depois, em 1981, Ali voltou para um último combate na carreira. Nem mesmo a verborragia que marcou seus melhores anos estava lá, indicando já alguma dificuldade na fala. Não o impediu, contudo, de enfrentar Trevor Berbick e mais uma vez ser castigado por 10 assaltos, culminando em uma nova derrota. Agora sim a aposentadoria chegara de forma definitiva. Passaram-se três anos e em 1984, o boxeador foi diagnosticado com Mal de Parkinson. Aquele que certa feita foi escolhido como o “Esportista do Século” viria a morrer em junho de 2016. E não há quem não relacione a doença à carreira.

O neurologista André Palmeira alerta que jogadores de futebol também estão expostos a traumas repetitivos na cabeça. Crédito: Ricardo Giusti

O caso de Ali não é uma exceção no boxe. Tanto é que há uma doença com esse nome: a Demência do Pugilista. De acordo com André Luiz Rodrigues Palmeira, neurologista da Santa Casa de Porto Alegre, trata-se de uma condição decorrente do acúmulo de anos de traumas na cabeça, em consequência dos socos. Para o médico, os sinais iniciais são sutis: “A primeira coisa é a dificuldade de memória. Aquela pessoa que começa a apresentar esquecimentos, principalmente para as coisas recentes, que não consegue mais raciocinar com a mesma velocidade. Outra coisa que a gente tem que ficar atento são às dificuldades de linguagem, seja para expressar ou compreender”.

"Nosso crânio é todo fechadinho para proteger o cérebro. Isso aqui é muito nobre e não pode sofrer dano"

Enquanto no geral, os quadros de demência tendem a ocorrer depois dos 65 anos, em atletas submetidos aos repetidos traumas no crânio, os sintomas tendem a aparecer bem mais cedo. “A gente vai ver muito no boxeador traumas que não são fortes o suficiente para provocar uma hematoma. Mas são traumas pequenos que vão se acumulando. E a pessoa que sofre traumas repetidos, infelizmente tem um risco aumentado para desenvolver esse tipo de doença degenerativa”, diz Palmeira.

O risco, convém dizer, não está restrito a boxeadores e esportes de luta. Atletas do futebol americano, que sofrem com choques fortes na cabeça também ficam numa zona de risco. E mesmo os jogadores do futebol, menos pelos choques em si e mais pelas frequentes jogadas de cabeça. “Um atleta de futebol tem mais risco do que uma pessoa, entre aspas, normal. A grande questão é o impacto na cabeça. Se você tem muito impacto na cabeça, esses traumas vão se acumulando no decorrer da vida”, lembra Palmeiras, que finaliza: “A gente tem um crânio todo fechadinho porque é para proteger o cérebro. Isso aqui é muito nobre e não pode sofrer dano”.

As lesões mais comuns em algumas modalidades esportivas

A trajetória para conquistar o lugar mais alto do pódio é dura e tem um custo. “Se não tiver dor no alto rendimento, infelizmente é porque não treina”. A frase da técnica de ginástica do GNU, Adriana Alves, sintetiza o sentimento de quem vive para o esporte. As dores e as lesões vão sempre permear o caminho dos atletas de alto rendimento. Independentemente da modalidade, todas cobram o preço por anos de dedicação. Cada um exige uma parte do corpo do atleta, seja no vôlei, futebol, basquete, natação ou boxe, fazendo com que lesões específicas e traumas se desenvolvam em diferentes partes do corpo.

Pode ser comum de pensar que esportes com contato físico, como é o caso do futebol e do boxe, aumentam o risco inerente de lesões, mas não é o caso. Práticas como a natação e a ginástica também podem causar traumas graves e persistentes. “A ginástica é caracterizada pelas lesões traumáticas e articulares no tornozelo por exemplo, mas muito também por lesões crônicas como a lombalgia, além de lesões por estresse”, aponta Cláudia Lima, professora de fisioterapia a Ufrgs. “As lesões do futebol mais comuns e frequentes são as musculares. A mais temida delas é a lesão do ligamento cruzado anterior do joelho, porque além de demandar um tempo muito grande de recuperação em torno de 8 a 12 meses, normalmente o atleta tem que passar por um procedimento cirúrgico”, explica. Em práticas esportivas como o judô, em que a prevenção é quase inexistente, as sequelas podem ser mais severas. “Os golpes em si, levam as estruturas a situações de risco muito maior pelo nível de força aplicado”, destaca Claudia.

FUTEBOL

Em função da visibilidade da modalidade, as lesões no futebol talvez sejam as mais conhecidas dos torcedores em geral. As mais comuns são as musculares, mais comumente na coxa. Logo depois, vêm os problemas no joelho, sejam os mais leves, de menisco, sejam os mais graves, de ligamento, que afastam o atleta dos gramados por vários meses. A pubalgia, inflamação na região do púbis, é outro problema bastante frequente e complicado de lidar. Por fim, menos sérias, mas frequentes, estão as torções de tornozelo.

VÔLEI

Bem à frente de problemas no ombro, as lesões nos dedos são as mais frequentes no vôlei – o que explica porque tantos atletas usam proteção na região nos jogos. Logo depois, vem, assim como no basquete, a tendinite patelar, na área do joelho. Entorses de tornozelo são mais comuns em jogadores que estão na rede, porque muitas vezes na queda acabam por tropeçar no pé do adversário, levando à torção. Mais atrás na lista, mais ainda lá, as lesões no ombro por esforço repetitivo. Há ainda lesões na lombar.

BASQUETE

Em uma modalidade na qual os atletas, geralmente pesados em função do tamanho, precisam saltar a todo momento, não chega a surpreender que a lesão mais comum no basquete seja a entorse de tornozelo. Logo na sequência, está a tendinite patelar, um problema que acontece a partir da sobrecarga no tendão que liga a patela, no joelho, ao osso da canela. Consequência direta do peso da bola, as lesões nos dedos dos atletas ocorrem também com certa frequência.

ATLETISMO

Quando se fala em atletismo, é preciso levar em conta que há uma diferença entre as várias modalidades, tão diferentes como as de velocidade ou um salto com vara, por exemplo. Nas provas de velocidade, as lesões mais frequentes são as distensões musculares, seguidas das canelites, que consistem num processo inflamatório na canela. Para os corredores de provas mais longas, contraturas musculares e outras lesões na panturrilha são usuais, assim como problemas no joelho.

BOXE

O boxe, da mesma forma que outras modalidades de luta em que existem traumas na cabeça com muita frequência, tende a apresentar menos problemas musculares. Em compensação, as consequências neurológicas de repetidos traumas no crânio são bem mais sérias e podem levar à Demência do Pugilista, quando o quadro acontece de forma precoce, bem antes dos 65 anos. Além disso, também são frequentes lesões mais sérias nos olhos, em função do risco de socos diretos na região.

TÊNIS

Ao contrário do que pode se imaginar, a lesão que aparece com mais frequência para os tenistas não é nos ombros. No alto dessa hierarquia, vêm os problemas com o cotovelo. Não por acaso, a epicondelite lateral, que atinge os tendões e músculos, é chamada de “cotovelo de tenista”. Em função dos giros de corpo para rebater, lesões de quadril também  estão longe de ser uma raridade. Da mesma forma, estão as pubalgias, consequência de  "abrir” a perna para deslizar na quadra.

GINÁSTICA

No caso da ginástica artística, há uma diferença entre as lesões no masculino e no feminino, muito em função dos aparelhos. Entre os homens, como a maioria trabalha com membros superiores, as lesões mais frequentes acabam sendo as de ombro e de punho. Já no feminino, os membros inferiores são mais sobrecarregados. Os casos mais comuns são os de lesão de tornozelo e canelites. Em casos mais raros, também são verificadas fraturas por estresse.

NATAÇÃO

Em função de não ser uma modalidade em que o atleta fica exposto ao contato com um adversário – à exceção das maratonas aquáticas –, a natação geralmente registra um número bem maior de lesões por repetição. Assim, uma das regiões do corpo mais atingidas é o ombro. Além disso, não são raras as lordoses, onde a coluna vertebral apresenta uma curva mais acentuada na região lombar. Atletas que competem mais no nado peito também podem apresentar problemas no joelho.

 

 

 

* Sob supervisão de Carlos Corrêa

 

 

 

 

 

 

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895