O plástico que está nas águas do Guaíba, mas não enxergamos

O plástico que está nas águas do Guaíba, mas não enxergamos

Pesquisa desenvolvida na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) identificou a onipresença destes resíduos nas águas do lago, que podem ser até mesmo confundidos com grãos de areia

É assim, sendo arrastado devagarinho pelas águas de rios e arroios, como o Dilúvio, em Porto Alegre, que o plástico chega às águas do Guaíba

Por
Gabriel Guedes

Quando se fala da poluição causada pelo descarte do plástico, a primeira ideia que surge à mente é aquela do oceano, onde resíduos vão se aglomerando cada vez mais, formando verdadeiros lixões flutuantes. Outra memória também relacionada são referente aos animais encontrados com estes detritos acumulados dentro de seus organismos. Plásticos são materiais formados pela união de grandes cadeias moleculares chamadas polímeros que, por sua vez, são formadas por moléculas menores, produzidas por meio de um processo químico denominado polimerização. Utilizado em quase todos os setores da economia, como construção civil, agricultura, calçados, móveis, alimentos, têxtil, lazer, telecomunicações, eletroeletrônicos, automobilístico, médico-hospitalar e distribuição de energia, mal percebemos no nosso cotidiano e muito menos a sua onipresença no nosso meio ambiente. Um grupo de pesquisadores do Laboratório de Processos Ambientais e Contaminantes Emergentes (Lapace), vinculado ao Instituto de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mostra que a trajetória do material até o oceano já começa muito antes. As águas do Lago Guaíba estão repletas de microplásticos. Presentes no ar, na água e até no sal, são pequenas partículas de plásticos que poluem o meio ambiente e podem medir de 0,001 milímetro a 5 milímetros. Imperceptível aos olhos e difícil de ser retido pelos sistemas de tratamento de água utilizados no mundo tudo, o achado na pesquisa gaúcha desenvolvida desde 2018 corrobora com dados obtidos pela universidade australiana de Newcastle, que estima que possamos estar ingerindo o equivalente a um cartão de crédito por semana em plástico.

Os microplásticos presentes no Guaíba são abundantes e causam apreensão. Trazidos pelo arrasto das águas dos afluentes, como os Rios Jacuí, Taquari, Caí, Sinos, Gravataí e até mesmo pelo Arroio Dilúvio, acabam se depositando no leito ou ficando em suspensão até serem levados pela corrente para a Lagoa dos Patos e por consequência, também indo parar nas águas do Oceano Atlântico. Sob o olhar aguçado da equipe do Lapace, esse material pode até parecer bonito e lembra pedras preciosas, mas é um sinal de alerta de sua interferência negativa no ecossistema. “Quando olhamos no microscópio, os microplásticos são lindos, reluzem, mas a realidade é bem diferente”, avalia a doutoranda em Química Crislaine Fabiana Bertoldi, que coordena esse estudo. A primeira coleta de microplásticos foi realizada em agosto de 2018, em que se observaram 9.519 partículas presentes na água. Desse montante, 82% eram fragmentos; 15%, fibras; e 3%, microesferas. Quanto às cores: 31,4% do material coletado era branco-transparente; 25,5%, vermelho; 15,8%, amarelo; e 15,6%, azul. Na amostra, havia também partículas verdes (9,4%) e pretas (2,4%).

“É muito plástico descartável. Muito mesmo. Consumimos muitos plásticos, principalmente aqueles de uso único”, ressalta Andreia.

Ainda desta primeira coleta também descobriu-se que o padrão de material encontrado nas águas do Guaíba são o polipropileno (55%) e o polietileno (43%). São polímeros encontrados em praticamente tudo o que é plástico: sacolas de supermercado, frascos de xampu, celulares, computadores, sacos, canetas. Também foi detectada a presença de poliamida - um polímero utilizado na produção de roupas - e poliuretano - que é presente na espuma do colchão, por exemplo. Apesar desta classificação, os microplásticos são categorizados em duas fontes: de origem primária, em que há a produção intencional pela indústria; e de origem secundária, quando a produção é não intencional. “Estes plásticos grandes acabam chegando nos oceanos. Mas neste caminho, com a movimentação das ondas e a incidência da luz solar, acabam quebrando e se tornando cada vez menores”, explica a professora da UFRGS e coordenadora do Lapace, Andreia Neves Fernandes. Uma estimativa estatística recente, com base em informações da indústria, aponta que entre 1950 e 2015 foram produzidas 8,3 bilhões de toneladas de plásticos primário (virgem) e secundário (de material reciclado) no mundo. O plástico sozinho, porém, não pode ser considerado culpado. As estimativas apontam que 60% do plástico produzido no mundo até o momento foi descartado de forma inadequada na natureza.


Microplásticos encontrados no Guaíba só ficam visíveis sob o olhar do estereomicroscópio existente do Lapace, da UFRGS. Foto: Ricardo Giusti

Os estudos sobre a presença de microplásticos no ecossistema foram iniciados no mundo nos anos 2000. O primeiro artigo publicado no Brasil sobre o assunto é de 2009, e, em Porto Alegre, a UFRGS é pioneira em tratar o tema de maneira científica. Em uma revisão de literatura realizada pelo laboratório, foram encontradas apenas 81 publicações sobre microplásticos no país. O que é alarmante, dado que o Brasil é o quarto produtor de plástico no mundo e recicla apenas 2% dele. Com uma coleta seletiva precária e alta produção do material, o grande volume de plástico acaba chegando aos rios e, consequentemente, aos oceanos. Crislaine, natural de Saudade do Iguaçu, deixou a pequena cidade do sul do Paraná em 2015 para fazer o mestrado na UFRGS, em Porto Alegre. Contudo, foi justamente em um congresso em Curitiba, capital do seu estado natal, que seus olhos brilharam para o tema. “Tinha um palestrante que falava sobre contaminantes, e um tema que não tinha estudo eram os microplásticos. Agora que explodiu as pesquisas sobre isso. Mas naquela época a gente não tinha muita ideia de como fazer isso. No Brasil não tinha estudo sobre isso. Tem é estudos de ingestão de microplásticos pelos animais. Mas aí pensando em Porto Alegre, por toda importância que o Guaíba representa, procuramos estudar isso”, conta. A ideia se tornou o objetivo de seu doutorado, iniciado em 2017, quando tinha apenas 23 anos de idade. “Ela ficou encantada com esta questão dos microplásticos”, atesta a coordenadora do Lapace e orientadora da estudante.

Da ideia à execução, foram alguns meses. “Levamos um ano até conseguir todo material, até mesmo o barco”, relata Crislaine. Além da doutoranda e sua orientadora, participam também uma aluna de mestrado e outros de iniciação científica e uma pessoa muito importante - segundo Andreia e Crislaine - que foi o Fábio Delamare, que cedeu seu tempo e embarcação para fazer as coletas, algo que foi primordial para o sucesso desta pesquisa. “No início a gente pensou em fazer uma coleta por estação (climática). Mas só quatro coletas não seria possível. Aí agora se definiu fazer uma coleta por mês até o final do doutorado, até o final do ano que vem”, adianta a idealizadora do levantamento. As coletas são executadas em áreas próximas à chegada das águas dos principais afluentes do Guaíba, ao norte de Porto Alegre, e também na zona Sul, nas imediações do bairro Ipanema. Em cada um desses locais, as pesquisadoras efetuam um trabalho totalmente braçal. Em cada ponto Crislaine usa uma rede cônica com furos de 60 micrômetros para coletar os microplásticos. Por dez minutos, em uma velocidade média de 3 quilômetros por hora, 35 metros cúbicos de água são filtrados pelo equipamento. As pequenas partículas coletadas ficam armazenadas em um copo de 150 ml acoplado ao final da rede, e esse resíduo sólido é levado para o laboratório.

No espaço que fica no Campus do Vale da UFRGS, no bairro Agronomia, o esforço é para identificar os microplásticos em meio aos demais resíduos, como folhas, areia, barro, cabelo e grãos. O material bruto passa por um primeiro filtro, onde os resíduos orgânicos como folhas e galhos são retirados. Depois, as pesquisadoras separam, peneiram e tratam quimicamente a amostra para eliminar matéria orgânica, e o plástico é separado do restante por densidade. Desta maneira, o plástico bóia e o restante é descartado. Depois de seco, é sob a lente do estereomicroscópio que as partículas de microplásticos são esmiuçadas - e refletem a estranha beleza que intrigou as pesquisadoras. Expostos em uma membrana, os microplásticos são contados um a um. O equipamento, que aumenta em até dez vezes o tamanho do material, em até 10 micrômetros, auxilia na caracterização. As partículas maiores são contadas a olho nu, com a ajuda de uma pinça, e é possível identificar a forma, o tipo e a cor. Em seguida, é feita uma caracterização química para certificar-se de que o material encontrado se trata mesmo de microplástico. “Surpreendeu muito. A gente não conhecia a água. Simplesmente achávamos que não ia encontrar nada: ‘Não tem plástico aqui dentro’. Quando fizemos todo tratamento, aí vimos que tinha muito plástico. Fizemos todo trabalho no microscópio, que é muito manual”, ilustra Crislaine. “Pegamos algumas amostras e aí descobrimos tudo isso”, completa.

DECOMPOSIÇÃO

Os primeiros trabalhos científicos sobre o plástico no meio ambiente se dão sobre seu acúmulo nos oceanos. Mas Crislaine lembra que a maior parte deles chegam ao mar por meio dos rios. Resíduos que chegam ao Guaíba no tamanho dos objetos que conhecemos, como garrafas pet, restos de tubulações de PVC e até brinquedos velhos. Conforme Crislaine, uma garrafa no meio ambiente está exposta a vários fatores, mas a luz é o principal fator de quebra deste plástico. “Os raios ultravioleta (UV) tem um poder bem alto para quebrar a cadeia polimérica. Outras condições de quebra são algumas espécies presentes na água. Achamos material biológico, como microalgas que acabam acelerando a quebra”, aponta. Mas o fato de um pedaço de plástico “gigante” se tornar um mero grão de areia não significa que o material deixou de existir na natureza. “Nosso trabalho foi apresentado em um congresso em Paris em 2019. Se sabe que o polímero demora muito para se degradar. A gente consegue fazer um cálculo que determina o grau de envelhecimento e quanto maior este grau, maior o tempo que ele está no meio ambiente. Tem microplásticos jovens e muitos outros envelhecidos”, avalia. Dependendo do polímero, a partícula ainda pode se manter flutuando na água ou ir para o fundo do rio. “Por isso na nossa pesquisa a gente acaba achando os polímeros mais leves. Se olharmos para o lodo no fundo do lago (Guaíba), poderemos achar o PVC, que é mais pesado”, observa a doutoranda.


Trabalho minucioso é realizado para separar os polímeros de outras partículas encontradas no Guaíba. Foto: Ricardo Giusti

A professora Andreia ressalta que estes microplásticos também podem assumir uma outra identidade, agravando ainda mais a poluição. “Podem reter contaminantes e eles podem se juntar”, ilustra. “Por outro lado, quanto menor, mais interação com peixes, que acabam comendo essas pequenas partículas. Não fizemos a pesquisa com peixes ainda. Mas há animais que podem ter acúmulo”, acrescenta. “Têm vários trabalhos que acharam microplásticos em aves, peixes e até ostras e mariscos”, acrescenta Crislaine. O professor Guilherme Tavares Nunes, do Departamento Interdisciplinar no Campus do Litoral Norte da UFRGS e pesquisador no Centro de Estudos Costeiros, Limnológicos e Marinhos (Ceclimar), em Imbé, avalia a contaminação de aves marinhas e costeiras por microplásticos no Litoral. Segundo Nunes, a literatura tem apontado que, no Brasil, a maioria dos registros de contaminação de aves aquáticas está no mar. “Essa revisão mostrou que 92% dos estudos reportam contaminação por plástico em aves marinhas oceânicas, ou seja, mais uma vez isso não é uma surpresa, porque o mar é o destino natural do plástico. Assim, a nossa pesquisa foca a avaliação da contaminação por microplásticos nas espécies que não têm sido alvo de pesquisas nos últimos anos no país: aves costeiras no Sul do Brasil e aves marinhas que se reproduzem nas ilhas oceânicas brasileiras”, salienta.

Um estudo publicado em 2017 na revista científica Nature Communications estima uma quantidade entre 2.184 quilos e 4.584 quilos por minuto de lixo plástico chegando ao mar, conforme cálculo feito por Nunes.

“Quando chove, muda o cenário. A gente está observando uma forte influência da densidade populacional (sobre os rios). Sempre que chove, você tem um contaminação maior com essa água da lavagem feita pela chuva”, exemplifica Crislaine. Contudo, o que as pesquisadoras não imaginavam, é que haveria uma alta concentração desse material logo na primeira amostragem, sem cheia. Outro ponto reforçado por elas é que, em regiões com maior influência humana, há uma maior quantidade de microplásticos. Os pontos de chegada dos Rios dos Sinos e Gravataí foram os de maiores concentração, como o ponto de coleta próximo ao Cais do Porto e Usina do Gasômetro. “Há uma diluição no Guaíba, e, na região mais ao sul de Porto Alegre e perto de Ipanema, temos um aumento, novamente, em decorrência da influência da forma geológica e da hidrologia do lago”, constata Andréia. Presidente da Colônia de Pescadores Z5, com sede da Ilha da Pintada, Gilmar Coelho afirma que as redes sempre vêm com bastante plástico. “Já vi peixe enrolado em saco plástico, um ou outro com plástico dentro. Em dezembro do ano passado retiramos das margens do Delta (do Jacuí) umas 20 toneladas de lixo”, revela. Segundo ele, a melhor qualidade de água vem do próprio Rio Jacuí.

PEIXES RESISTEM


Resíduos arrastados pelos afluentes do Guaíba vão parar nas redes de pescadores do lago. Foto: Alina Souza

A Z5 representa 1,5 mil pescadores de toda Grande Porto Alegre e parte da Região Carbonífera, como São Jerônimo e Charqueadas. Para Coelho, peixe não falta. “Dá piava, jundiá, traíra, tainha, pintado e bagre. Até corvina entrou porque parou a pesca de arrasto na boca da Lagoa dos Patos. Então, peixe não falta. Deu bastante pintado neste ano. Peixe, as águas do Guaíba conseguem produzir bastante”, avalia o representante dos pescadores. O presidente destaca que os melhores pontos para pesca estão para dentro do Delta do Jacuí, em direção ao Rio Taquari, e ao sul da Capital, próximo a Itapuã. A produção, pelo menos no Arquipélago, na Capital, é vendida dentro da própria comunidade e uma pequena parte é comercializada no Mercado Público. O microplástico, Coelho reconhece que é imperceptível. O que não é ignorado é a poluição. “O problema é na saída do Dilúvio. Antes, também era perto do Gasômetro, onde saía esgoto preto e aí ficava um ‘gosma’ nas redes. Para nós era o pior problema e foi resolvido com o tratamento de esgoto, que agora vai lá para a Serraria”, compara. Entretanto, muito dos resíduos sólidos que acabam sendo levados pelas águas das chuvas nas ruas da Capital vão parar no arroio mencionado e que drena grande parte de Porto Alegre. Uma ecobarreira, instalada no bairro Praia de Belas e mantida pelo Instituto Safeweb, retém o lixo arrastado pelo rio que fica em meio a Avenida Ipiranga. De 30 de março a 6 de julho, o dispositivo evitou que 702,7 toneladas, em sua maioria, plástico, fossem parar no Lago Guaíba.

“A questão desta pesquisa é para tentar evitar que este microplástico chegue lá. É muito difícil filtrar toda esta água. Por isso que nossa pesquisa tem este viés muito social, sobre o consumo excessivo do plástico. Meu objetivo é mostrar o que causa nosso descaso com isso”, pontua a pesquisadora Crislaine.

Devido justamente à dificuldade em observar estas partículas de plástico, que Coelho acredita que seria muito útil também um estudo para avaliar a saúde dos peixes do Guaíba. “Estamos tentando de alguma forma, nos laboratórios, tentar eliminar estes plásticos e eles não degradam facilmente. Estamos tentando degradá-los. Mas até lá, temos que tentar diminuir o uso de plásticos”, alerta a coordenadora do Lapace. No que depender do empenho de Andreia e da própria doutoranda, o trabalho vai prosseguir. “Estamos estabelecendo um convênio do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgotos de Porto Alegre) para analisar a eficiência do tratamento de água. E a gente também está trabalhando em focar pesquisas nesta área. Temos outros alunos trabalhando nesta parte e contamos com outros pesquisadores do Brasil, para fazer a avaliação dos microplásticos em vários lugares do país”, conclui Andréia.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895