O poder da China na guerra da Ucrânia

O poder da China na guerra da Ucrânia

Em meio a acusações dos Estados Unidos, a China apresentou documento no qual reafirma sua postura sobre a invasão da Ucrânia, que inclui respeito à soberania, um chamado ao diálogo e o rechaço ao uso de armas nucleares

Por
AFP

A China apresentou nesta sexta-feira um documento no qual reafirma sua postura sobre a invasão da Ucrânia, iniciada há exatamente um ano, que inclui o respeito à soberania, um chamado ao diálogo e o rechaço ao uso de armas nucleares.

A Rússia disse que valoriza os esforços da China para pôr fim ao conflito na Ucrânia, mas insistiu na necessidade de que se reconheça seu controle sobre as quatro regiões ucranianas anexadas. “Compartilhamos as considerações de Pequim”, declarou o Ministério russo das Relações Exteriores, em comunicado, ressaltando, no entanto, que Kiev deve "reconhecer as novas realidades territoriais". 

A proposta de Pequim inclui o respeito pela "integridade territorial" da Ucrânia. Organizado em 12 pontos, o documento apresenta Pequim como um ator neutro que pede a ambas as partes que iniciem negociações de paz. Seguem os cinco principais pontos do documento e as reações internacionais que provocou.

RESPEITO À SOBERANIA

Primeiro ponto: “A soberania, a independência e a integridade territorial de todos os países devem ser efetivamente defendidas”. 
A China sempre se recusou a afirmar claramente que a Rússia era a culpada no caso específico do conflito na Ucrânia, desencadeado pela invasão de forças russas em território ucraniano. Na rede de notícias CNN, o assessor de Segurança Nacional da Casa Branca, Jake Sullivan, reagiu dizendo que o documento “poderia parar no primeiro ponto”, porque “a guerra poderia terminar amanhã se a Rússia deixasse de atacar a Ucrânia e retirasse suas forças”.<

CHAMADO AO DIÁLOGO 

A China pede à Rússia e à Ucrânia que celebrem negociações de paz, destacando que “o diálogo e a negociação são a única solução viável”.

“A comunidade internacional deve seguir comprometida com o enfoque correto de promover as conversações de paz e ajudar as partes (envolvidas) neste conflito a abrir as portas para uma solução política o mais rápido possível, criando as condições e plataformas necessárias para retomadas das negociações”, expõe a China.<

NÃO ÀS ARMAS NUCLEARES

O documento se opõe a todo recurso às armas nucleares. “É preciso impedir a proliferação nuclear e uma crise nuclear”, destaca. Esta tomada de posição se produz depois das declarações do presidente russo Vladimir Putin, que anunciou na terça-feira a suspensão do tratado Novo Start, último acordo bilateral deste tipo que vincula russos e americanos, cujo objetivo é limitar seus arsenais nucleares.

A China "se opõe à pesquisa, ao desenvolvimento e ao uso de armas químicas e biológicas por qualquer país e em qualquer circunstância", recorda nesta sexta. Ambas as partes "devem respeitar estritamente o direito internacional humanitário e evitar os ataques contra civis e edifícios civis", acrescenta.

NÃO À "MENTALIDADE DA GUERRA FRIA" 

É preciso "abandonar a mentalidade da Guerra Fria", afirma Pequim, um argumento utilizado regularmente pela diplomacia chinesa. O documento, em uma crítica velada à Otan, afirma que "a segurança de uma região não deve ser alcançada pelo reforço ou expansão de blocos militares", e que "os legítimos interesses e preocupações de todos os países em matéria de segurança devem ser levados à sério".

Nos últimos meses, o Ministério de Relações Exteriores chinês tem criticado os Estados Unidos e seus aliados pelo fornecimento de armas e equipamentos à Ucrânia. Nesta sexta, a China condenou também as sanções unilaterais impostas a Moscou. "Não são capazes de resolver o conflito, mas de criar novos problemas", destaca.

LIMITAR O IMPACTO ECONÔMICO

A China também pede que a economia mundial seja protegida do conflito na Ucrânia, preservando, especialmente, a Iniciativa do Mar Negro, um acordo que permite a exportação de grãos ucranianos apesar da situação. Outra prioridade, segundo a China, é "manter a estabilidade das redes industriais e de abastecimento", e, para isso, todas as partes envolvidas devem "se opor à utilização da economia mundial como ferramenta ou arma com objetivos políticos".

Boas relações em meio à tensão

A China expôs para o governo russo, nesta quarta-feira, suas ideias voltadas para uma “solução política” do conflito na Ucrânia, informou o Ministério das Relações Exteriores da Rússia, durante uma visita a Moscou do chefe de diplomacia chinesa, Wang Yi. “Os interlocutores chineses compartilharam conosco suas reflexões sobre as causas profundas da crise ucraniana, assim como suas propostas para uma solução política”, mas “não se abordou nenhum ‘plano’ separado”, disse a Chancelaria, em um comunicado.

Rússia e China mostram boas relações e a vontade de aprofundar laços bilaterais enquanto aguardam um plano de paz de Pequim para o conflito na Ucrânia. “Nossas relações estão se desenvolvendo de forma segura e dinâmica. Apesar das fortes turbulências no cenário internacional, mostramos unidade e disposição para defender os interesses de ambos de acordo com o direito internacional e o papel central das Nações Unidas”, disse o chefe diplomático russo, Serguéi Lavrov. Wang Yi, por sua vez, prometeu “continuar seus esforços para fortalecer e aprofundar as relações russo-chinesas”, de acordo com declarações traduzidas da reunião. 

O diplomata russo se reuniu também com o presidente Vladimir Putin, no Kremlin. Putin afirmou que a relação entre Rússia e China estabiliza a situação internacional. “As relações internacionais são complicadas hoje. Neste contexto, a cooperação entre China e Rússia é de grande importância para a estabilização da situação internacional.” Putin raramente recebe autoridades estrangeiras que não sejam chefes de Estado, então esta reunião mais uma vez ressalta os laços privilegiados entre o Kremlin e seu aliado chinês. 

“Estamos alcançando novos horizontes”, afirmou Putin, acrescentando que espera que o presidente chinês, Xi Jinping, visite a Rússia na primavera boreal. Yi manifestou a vontade de Pequim de “reforçar a parceria estratégica e a cooperação em todas as direções” com Moscou. As relações russo-chinesas “não são dirigidas contra terceiros países e resistem às suas pressões”, enfatizou.

Mesmo com as negativas da China, EUA acusa o país de considerar enviar armas à Rússia

O governo dos Estados Unidos afirma que a China está considerando enviar armas à Rússia para a guerra do país na Ucrânia e, embora Pequim negue, analistas consideram que isto pode mudar o cenário do conflito. A seguir algumas perguntas fundamentais sobre a alegação de Washington.

O que está por trás da afirmação dos Estados Unidos?

Desde que os tanques russos entraram na Ucrânia, a China oferece cobertura diplomática e apoio financeiro ao governo de Vladimir Putin, mas sem envolvimento militar ou fornecimento de armas letais.

Empresas chinesas sob controle estatal venderam drones não letais e outros equipamentos para Rússia e Ucrânia, o que levou Moscou a recorrer ao Irã para adquirir armas, como os drones armados.

O governo dos Estados Unidos também afirma que a Coreia do Norte enviou foguetes e projéteis de artilharia para a Rússia. Washington acredita que isto pode mudar e o secretário de Estado, Antony Blinken, expressou os temores. "Com base nas informações que temos (...) estão considerando fornecer apoio letal." Blinken não apresentou evidências para apoiar a versão e os críticos apontam outros erros do serviço de inteligência americano, mas a declaração segue o padrão de Washington de divulgar informações delicadas de maneira preventiva para interromper os planos russos. Pequim acusou Washington de "propagar informação falsa" e de "transferência de culpa".

Por que Washington está preocupada? 

Durante a guerra, a Rússia tem enfrentado dificuldades para reunir soldados, munições e armas em quantidade suficiente para enfrentar a resistência ucraniana, o que obrigou Putin a recorrer a um recrutamento, em larga escala, de grupos mercenários e importações. A Ucrânia conseguiu conter a supremacia russa e, inclusive, ter vantagem em algumas áreas. Mas alguns analistas consideram que guerra está em um ponto de inflexão, no qual cada lado clama por recursos com o objetivo de conquistar vitórias decisivas.
Neste contexto, o envio de armas chinesas mudaria o cenário, declarou à AFP Mick Ryan, major-general da reserva do exército australiano. "Esta é uma guerra de sistemas industriais. No momento, a Rússia é superada pelo Ocidente. Se a China entrar, qualquer vantagem que a Ucrânia tenha devido à capacidade industrial do Ocidente desaparece instantaneamente", explica. "As munições chinesas tornariam a vida muito difícil para os ucranianos, com munições de artilharia, munições de precisão ou armas de ataque de longo alcance, que estão acabando na Rússia."

Por que a China se envolveria?

O analista militar chinês Song Zhongping insiste que o país não enviará armas, mas destaca que a cooperação comercial e militar entre Moscou e Pequim se aprofundou antes da guerra na Ucrânia e prosseguirá. "A China não vai escutar as demandas dos Estados Unidos. A China vai fortalecer a cooperação com a Rússia de acordo com sua vontade e suas preocupações com a segurança nacional", disse.

Muitos analistas acreditam que há algo maior em jogo e veem o conflito na Ucrânia se transformando em uma “guerra por procuração”, ao estilo da Guerra Fria. "A guerra na Ucrânia é um momento crucial para o ambiente de segurança internacional, para a ordem mundial", disse Alexey Muraviev, professor de Estudos de Segurança e Estratégicos da Universidade Curtin de Perth.

Uma decisão chinesa de exportar armas seria "um passo enorme", que arriscaria expor o país a sanções ocidentais, queimaria as pontes que restam com Washington e afetaria suas relações com a Europa.

Muraviev, no entanto, acredita que a perspectiva de uma derrota russa é preocupante para Pequim. "Se a Rússia perder política ou militarmente na Ucrânia, a China ficará sozinha", disse. "A Rússia é a única grande potência que apoia a China". Uma vitória russa seria "infligir uma derrota estratégica aos EUA", acrescentou, o que ajudaria a retomar a narrativa do presidente Xi Jinping de que o Ocidente está em declínio. "Para os chineses, o fracasso da Rússia em conquistar a vitória no ano passado foi um balde de água fria", destaca. 

Muraviev acredita que a China poderia tentar dividir o risco e a recompensa na Ucrânia com o envio de armas por meio de empresas sob controle estatal da Coreia do Norte ou do Grupo Wagner (paramilitar) em vez de diretamente às forças russas.

País quer desempenhar papel de mediador

A visita de Wang Yi à Rússia ocorre enquanto a China tenta mediar o conflito ucraniano evocando publicamente um plano de paz. A China quer desempenhar um papel de mediadora no conflito na Ucrânia.

Na semana passada, Yi se reuniu com o chefe da diplomacia ucraniana, Dmytro Kuleba, durante conferência de segurança em Munique, na Alemanha. O diplomata chinês apresentou “elementos-chave do plano de paz chinês” à Ucrânia, segundo Kiev.

Em Pequim, na terça-feira, o ministro das Relações Exteriores, Qin Gang, disse que a China está “profundamente preocupada” com os conflitos na Ucrânia, que estão “escalando e até ficando fora de controle”. Tendo isso em vista, o país vai buscar “trabalhar com a comunidade internacional para promover o diálogo e as consultas, responder às preocupações dos envolvidos e buscar uma segurança comum”, discursou o ministro em uma conferência de segurança global.

Às vésperas do aniversário de um ano da invasão russa na Ucrânia, em 24 de fevereiro, Qin comunicou que a China iria “continuar promovendo negociações de paz”. “Pedimos aos países envolvidos que parem de alimentar o fogo o mais rápido possível, parem de culpar a China”, disse o ministro, respondendo às declarações de Washington e da Europa de que Pequim pode estar considerando enviar armas a Moscou. O chefe da diplomacia dos EUA, Antony Blinken, disse no dia 19 que há preocupação de que a China esteja considerando enviar “apoio letal” à Rússia para a ofensiva na Ucrânia. 

O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, no dia 20, disse que “são os EUA, e não a China, que estão constantemente enviando armas para o campo de batalha”. O porta-voz chinês exortou os Estados Unidos a “refletirem seriamente sobre suas próprias ações e fazer mais esforços para acalmar a situação, promover a paz e o diálogo e parar de culpar os outros e espalhar informações falsas”. 

A ofensiva lançada pela Rússia contra a Ucrânia é uma questão difícil para a China, que tem buscado se posicionar como um país neutro, mas fornece apoio diplomático a Moscou, que é um aliado estratégico de Pequim.

 

 

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895