O primeiro do mundo a voar para jogar

O primeiro do mundo a voar para jogar

O Clube São José, de Porto Alegre, entrou para a história do futebol mundial ao ser a primeira delegação a viajar de avião, no dia 5 de junho de 1927. O feito do time gaúcho foi reconhecido pela Fifa em 1992.

Por
Rodrigo Thiel

Em julho deste ano, a plataforma de rastreamento de voos FlightRadar24 contabilizou que, em apenas um dia, foram realizadas cerca de 260 mil viagens de avião. Destas, pouco menos de 140 mil eram de voos comerciais ao redor do mundo. Apenas de Porto Alegre, decolam em média 80 aeronaves por dia. Entretanto, este cenário era completamente diferente há quase 100 anos. Uma aventura épica envolvendo o Esporte Clube São José, de Porto Alegre, colocou o time da zona Norte na história do esporte mais popular do mundo.

Ao rever uma foto histórica, do dia 5 de junho de 1927, o ex-treinador da dupla Gre-Nal Francisco da Silva Neto, o Chiquinho, aponta para um dos rapazes, que estavam à frente de um hidroavião da Varig, prestes a sair do Arquipélago, na Capital, em direção à Pelotas. O homem era o pai de Chiquinho, o volante Netinho, um dos idealizadores daquela “loucura” que era, à época, viajar de avião. A aventura, que durou cerca de duas horas e meia, parece uma eternidade se comparado com os pouco mais de 40 minutos do trajeto de hoje em dia.

Além de apontar para a imagem histórica do pai, Chiquinho relembra, emocionado, um fato curioso ao mostrar um fardo em meio às pernas de Netinho. Eram cerca de 30 exemplares do jornal Correio do Povo. Na época, o periódico de sábado só chegaria na metade da semana na região Sul do Estado. Com a epopeia do São José, em poucas horas os leitores poderiam se informar com as mais recentes notícias da RS. E, assim como a viagem, as vendas do jornal foram de vento em popa. “Meu pai era um visionário. Além de planejar a viagem, também conseguiu lanche para os atletas, pois eles não iam se alimentar antes da partida. Com a comissão da venda do jornal, ao menos eles conseguiram fazer um lanche”, recordou o ex-técnico.

Apesar disso, Chiquinho conta que algumas pessoas duvidavam do fato e afirmavam que seu pai levou os jornais apenas para ganhar dinheiro. “Na verdade, ele vendeu, e vendeu bem, mas para ajudar os colegas de time. Ele não foi apenas visionário pela viagem, mas também em fazer o Correio do Povo chegar no mesmo dia em Pelotas. Foi incrível o avanço para a época”, completou.

Perguntado sobre o que seu pai contava em casa sobre o feito, Chiquinho se lembra de ouvir sobre como havia dúvidas com relação à viagem. “O pessoal falava: ‘Netinho, isso não dá, é um absurdo’. E ainda assim ele transformava todo esse drama e criava uma segurança em todos ao redor dele. Havia um sentimento de pacificação entre eles para apoiarem aquela loucura.”

Além de um dos idealizadores da viagem, Netinho também foi, junto com outros jovens garotos da Capital, um dos fundadores do Zequinha 14 anos antes, em 1913. O clube, que atualmente é conhecido pela sua localização na Zona Norte de Porto Alegre, surgiu no Centro e mudou-se anos depois da epopeia para o Passe D’Areia, em outra situação que a aproxima da extinta Varig.

A história deste voo inédito está em um dos capítulos do livro “Além das 4 Linhas”, do jornalista e escritor Roberto Jardim. Em sua obra, ele cita que a aventura se tornou reconhecida pela Fifa em 1992 como primeira viagem de avião de uma delegação de futebol no mundo. “Foi uma experiência e tanto, pois a aviação ainda era recente no mundo. Sem dúvidas, foi uma enorme ousadia, assim como a viagem do Cruzeiro de navio para a Europa anos depois”, brincou o autor.

No relato de Jardim, a viagem nasceu de uma conversa entre o dirigente Edgar Vielitz e o secretário Moisés Antunes da Cunha. O feito, segundo ele, foi realizado em uma gélida manhã. Foi por volta das 10h15min que a aeronave partiu com nove jogadores e dois dirigentes, além do piloto e do copiloto. Ao todo, eram 11 pessoas em um avião com capacidade de receber apenas nove, incluindo a tripulação. Para resolver este “problema”, dois passageiros viajaram no bagageiro do avião. Entre eles, estava o volante Netinho, com o seu fardo de jornais do Correio do Povo, e o goleiro Bagre.

Por conta do excesso de passageiros e das condições meteorológicas daquele dia de frio rigoroso no inverno gaúcho, que fez com que os passageiros utilizassem pesados casacos de lã na viagem, houve uma grande preocupação com o peso que a aeronave carregaria no trajeto até Pelotas. Além disso, Jardim conta que a fotografia histórica, em que Chiquinho identificou seu pai com o fardo em cima do avião, foi registrada a pedidos do presidente do São José à época, Waldermar Zapp, com medo de que esta “carga extra” resultasse em alguma tragédia durante a viagem.

Além da foto em grupo, com a delegação em cima do avião, foram feitos também retratos individuais dos corajosos atletas do Zequinha. Dias antes, um navio havia levado o tesoureiro do clube, João Leal da Silva, e os atletas Odorico, Benedito e Walter Kennemann, apelidado de Berlina, para a partida.
Após alguns saltos nas águas do Guaíba para pegar velocidade – fato que teria assustado alguns dos passageiros – o avião enfim decolou e iniciou uma viagem cujo destino se tornou entrar na história do esporte mais apreciado no mundo.

Empate histórico em que resultado foi o que menos importou

Toda a aventura da esquadra do Zequinha foi acompanhada de perto pela imprensa pelotense no dia da partida. Além disso, o fato é cheio de nuances e detalhes que se entrelaçam na história do futebol gaúcho. Logo após o pouso, no Clube de Natação e Regatas Pelotense, no Canal de São Gonçalo, o já extinto jornal A Opinião Pública falava do feito. No local, os jogadores foram recebidos por uma comitiva do Sport Club Pelotas e levados até o estádio Boca do Lobo. Antes da partida, uma banda fez as honras.

No dia 6 de junho de 1927, o jornal contava como foi a partida. Uma “grande assistência (público), ávida por conhecer o jogo dos Zequinhas”, se fez presente. O árbitro do confronto foi o então Tenente Francisco Duarte Júnior, do 9º Regimento do Exército Brasileiro em Pelotas. Anos mais tarde, Teté Duarte, como era chamado, treinou o Internacional. No período, ficou conhecido como Marechal das Vitórias e é, até hoje, o segundo treinador com mais partidas pelo colorado, atrás apenas de Abel Braga. Teté também treinou a Seleção Brasileira no Panamericano de 1956.

A equipe da casa foi escalada com Bordini; Talavera e Borches; Calero, Beto e Floriano; Torres, Tutú, Cabelli, Mário Reis e Dinarte. Já o Zequinha mandou a campo Bagre, Zulphe e Berlina; Alfredo, Pinho e Clóvis; Dirceu, Odorico, Netinho, Nona e Kessler. O relato do periódico dá conta de que os visitantes já chegaram mostrando vigor, “levando a pelota, em bela combinação, a meta pelotense”, obrigando a defesa a atuar. Apesar disso, o Pelotas saiu na frente, com gol marcado por Mário Reis, uma das lendas do futebol local.

No início da segunda etapa, Nona empatou o jogo em jogada veloz pela esquerda. Mais emoções estavam guardadas para a parte final da partida. Aos 35 minutos do segundo tempo, Tutú, de cabeça, colocou o Pelotas novamente à frente do placar. Mas isso não durou muito. Aos 37 minutos, em jogada veloz pela direita, Dirceu empatou o confronto.

A crítica do jogo pelo jornal do dia seguinte apontava que a “impressão deixada pelos Zequinhas foi boa, pois o seu quadro é homogêneo e ardoroso”. Já o Pelotas teria pecado pela “ausência de remates” ao gol. Apesar de tudo isso, o resultado da partida é algo que ficou em segundo plano.

A viagem de volta também foi pauta no periódico. “Hoje pelo mesmo Atlântico, regressou a missão visitante, que aqui foi muito festejada. A Opinião (Pública) cumprimenta o quadro do São José, pelo seu jogo e disciplina, na pessoa do seu esforçado e dedicado Moysés Cunha”, finalizou a matéria do extinto jornal. Conforme combinado antes da ida para Pelotas, os membros da delegação que viajaram de navio retornaram de avião, no lugar de quatro atletas que foram de hidroavião.

Para Fred Mendes, torcedor fanático do Pelotas e diretor de história e documentação do clube, a participação do clube na viagem inédita é algo marcante também para o time da região sul do RS. “A primeira viagem de avião para a disputa de uma partida de futebol, reconhecida pela FIFA, é um fato histórico. Ter o Pelotas como parte dessa história, e tê-la entre tantos outros fatos históricos acontecidos no Estádio Boca do Lobo, o mais antigo do país, é, sem dúvida, motivo de orgulho para o Clube e para o seu torcedor”, citou.

Tanto ele quanto Chiquinho, filho do idealizador, acreditam que o Pelotas ajudou a bancar uma parte da viagem histórica. Esta crença ocorre, pois, na época, era comum que o clube que jogaria em casa ajudasse nos custos da viagem do visitante. Segundo o escritor Roberto Jardim, a viagem foi, sim, paga pelo clube pelotense, que havia convidado a esquadra porto-alegrense para o amistoso.

Como forma de recordar a sua trajetória, o Esporte Clube São José possui um acervo próprio com imagens, publicações e também uma réplica em miniatura da aeronave que colocou o clube da zona Norte na história do futebol mundial.

CP também fez cobertura

Além de ser parte ativa na jornada da esquadra do São José para o confronto contra o Pelotas, ao servir como investimento para permitir que os atletas fizessem um lanche antes da partida, o Correio do Povo também repercutiu a inovadora aventura do Zequinha. Na terça-feira seguinte ao jogo, dia 7 de junho de 1927, a história foi citada duas vezes. A primeira, em uma matéria sobre aviação, em que atualizava a última viagem realizada pelo Atlântico, o primeiro avião do RS. “O clube local foi recebido festivamente na ‘Princeza (sic) do Sul’, principalmente por ser a primeira vez que um team chega, ali, por via aérea”, citou a nota.

À época, ainda não havia o entendimento de que aquela jornada seria a primeira de um time de futebol no mundo. Até então, o destaque foi para a primeira viagem até Pelotas. Duas páginas depois, uma matéria completa contava, com detalhes, da “brilhante excursão do S.C. São José”, nas “Notas Sportivas”.

Conforme o relato, o clube não poupou esforços para permitir que seus jogadores “não fossem privados do seu labor diário”.

“Chegando a esta capital, pela manhã, de retorno de sua viagem ao Rio, o avião ‘Atlântico’ levantava voo horas depois, conduzindo em seu bordo a valente rapaziada dos ‘zequinhas’, os quais, três horas depois, entre aclamações e vivas, desembarcaram em Pelotas”, citava um dos trechos da matéria sobre o jogo.

A reportagem nas notas esportivas já destaca o pioneirismo do Zequinha. “O São José foi o primeiro clube da América do Sul e, quiçá do globo, a utilizar-se de um avião para transporte de uma turma de foot-ball”, finaliza a introdução do texto, antes de contar sobre a partida em si.

Entretanto, a viagem quase não aconteceu, em função das condições climáticas. No mesmo final de semana, a partida de destaque no Rio Grande do Sul era um clássico Gre-Nal que seria realizado no então Estádio da Baixada, no Moinhos de Vento.

Um dia antes da viagem do Zequinha a Pelotas, a capa do Correio do Povo tinha como manchete as “Dolorosas consequências das últimas torrenciais chuvas”. Naquele final de semana, Porto Alegre sofreu com enchentes nos bairros São João, Navegantes e Meninos Deus. Inúmeras casas e vias essenciais para a mobilidade da época foram atingidas pelas águas do Guaíba, tornando o uso de barcos uma alternativa necessária para os porto-alegrenses. 

Viagem essencial para poupar o físico dos atletas

Anos se passaram entre a viagem do São José e o início da carreira de treinador de Chiquinho, mas ele cita o descanso como principal fator para esta viagem. Vale destacar que, à época, não eram permitidas as substituições de jogadores durante a partida. A primeira, na verdade, só foi ocorrer na Copa do Mundo de 1958, mais de três décadas depois da viagem do Zequinha.

Segundo Chiquinho, alguns dos atletas, principalmente os que precisavam correr mais em campo, precisavam de um descanso maior para a partida. E o descanso de uma viagem de avião, por mais que turbulenta em seu início, ainda seria melhor do que o de uma viagem de navio. “Pelo que o pai contava, havia uma integração entre os jogadores. Eles entendiam que alguns precisavam de mais descanso, de condições melhores que os outros para a partida.

Eram homens de integridade, sem inveja. Foi uma história muito linda”, recordou.

Em sua experiência como técnico, Chiquinho fala que laterais e meio campistas seriam os escolhidos para um deslocamento mais curto. “Eu não sei como foi, mas se fosse na minha época de técnico, eu mandava de avião os melhores, os meias, os atacantes. Esses precisam de um descanso melhor para a partida. Zagueiro que só dá chutão para a frente vai de navio”, falou o ex-técnico em tom de brincadeira.

O ex-técnico lembra ainda que os amigos de seu pai brincavam com ele sobre a capacidade atlética de Netinho em campo. “Eles falavam que o pai gostava de bater. Que ele não jogava nada, era só pontapé e instrução para os colegas. Passava a bola, mas o corpo do adversário não podia passar”, brincou. Netinho jogou durante toda sua carreira no São José e, depois, tornou-se diretor do clube.

Chiquinho conta ainda que, recentemente, um representante de uma plataforma de streaming teria entrado em contato com a família, comunicando o interesse em transformar a história do Zequinha em um documentário. “Eu até brinquei com minhas irmãs depois do fato. Quando o pai ia imaginar, não é mesmo? Este avião dele aí foi longe. É um orgulho muito grande para nós”, finalizou.

Reconhecimento da Fifa após reportagem

Há pouco mais de 30 anos, o então repórter Cláudio Dienstmann utilizava os arquivos do Correio do Povo e do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa para escrever mais uma de suas crônicas do futebol gaúcho. Após publicação em um veículo de imprensa no RS, a matéria também foi encaminhada para Guido Tognoni, um jornalista e advogado suíço que atuava como diretor de Mídia da Fédération Internationale de Football Association, a Fifa, entidade máxima do futebol.

Dienstmann e Tognoni haviam se conhecido anos antes, durante a longa trajetória do jornalista gaúcho na cobertura de Copas do Mundo, Olimpíadas e demais eventos esportivos. E por conta desta relação, aquela crônica de quase uma página foi veiculada no boletim mensal “Fifa News” no final de 1992, naquela que era a principal publicação oficial da entidade à época – que posteriormente foi substituída pela Fifa Magazine. Nascia ali o reconhecimento máximo do futebol para a história idealizada quase 65 anos antes por Edgar Vielitz, Moisés Antunes da Cunha, Netinho e todos os que embarcaram no hidroavião da Varig.

“O próprio texto da Fifa menciona que esta foi ‘supostamente’ a primeira viagem de avião de um time de futebol na história. No fundo, eu acho que eles nunca fizeram uma investigação sobre isso. Mas eu tenho que dizer uma coisa a meu favor. A Fifa tem mais países-membros que a ONU. Quer dizer, se aquela informação estivesse errada, alguém teria contrariado. Clubes como o Bayern de Munique, Liverpool teriam aberto a boca. Como nunca ninguém contrariou, eu tenho o direito de acreditar que o Zequinha foi realmente o primeiro”, ressaltou.

A viagem e a delegação

Quem foi sentado no hidroavião:

  • Walter Raabe
  • Alfredo Cezaro
  • Cesar Cezaro (Pinho)
  • Clovis Carneiro Cunha
  • Dirceu Silva
  • João Nicanor Leite(Nona)
  • Álvaro Kessler
  • Carlos Albino Müller Pires
  • Moisés Antunes da Cunha

Quem foi no bagageiro do hidroavião:

  • Alberto Moreira Haanzel(Bagre)
  • Antônio Pedro Netto(Netinho)

Quem foi de navio:

  • Walter Kennemann(Berlina)
  • Benedito
  • Odorico Monteiro
  • João Leal da Silveira

* Conforme registros de Roberto Jardim e do acervo do E. C. São José

Dos campos para o céu: uma viagem inovadora para a aviação gaúcha

O voo do Zequinha não foi marcante apenas para o futebol do Rio Grande do Sul. Esta aventura sobre a Lagoa dos Patos marca também o início da aviação gaúcha. Menos de um mês antes da viagem, uma assembleia oficializava a criação da Viação Aérea Rio-Grandense, a Varig, por Otto Ernst Meyer. De acordo com o ex-engenheiro de bordo e presidente da associação Varig Vive, Oscar Bürgel, apesar de ter sido fundada apenas em 7 de maio de 1927, a empresa já possuía autorização para voar desde janeiro daquele ano, através de um acordo com a companhia alemã Condor Syndikat.

O hidroavião utilizado na viagem do São José para Pelotas, batizado de Atlântico, foi a primeira aeronave adquirida pela Varig e fazia a então roda da “Linha da Lagoa”, que partia de Porto Alegre, pousava em Pelotas e seguia até Rio Grande. Entretanto, engana-se quem pensa que havia uma infraestrutura completa para tal feito. No lugar de uma pista de concreto, havia as águas do Guaíba e da Lagoa dos Patos. Em vez de terminais confortáveis, casinhas de madeira na beira do leito auxiliavam a levar, de barco, os tripulantes e passageiros até o avião. Até mesmo a decolagem era realizada com a ajuda de barcos.

Além disso, o próprio avião, do modelo Dornier Wal-J, também chamado de Do J Wal, de matrícula P-BAAA, com 17,45 metros de comprimento e 22,5 metros de envergadura e uma velocidade de cruzeiro de 160 km/h, possuía inúmeras diferenças se comparado com os modelos utilizados atualmente na aviação. “O Atlântico também era chamado de bote voador, pois ele pousava na água. E, na época, a concepção que se tinha era que, para ter a noção do horizonte, o piloto precisa ficar com parte do corpo para fora do avião. Ele ficava exposto aqui embaixo (apontou Oscar para um pequeno pára-brisas no corpo da aeronave) sem cobertura nenhuma. A cultura da época era de que se acreditava que o piloto precisava ter contato com as condições externas para manter o avião voando, por isso muitos deles usavam peças de couro e cachecol”, citou o ex-engenheiro de bordo.

Bürgel conta que o avião possuía apenas um motor, com dois lados de tração e movido a gasolina. Além disso, era uma aeronave muito pesada, pois carregava, entre outras coisas, cilindros de oxigênio e outros itens. “Naquela época tu não tinhas muito recurso de equipamento e nenhum de auxílio a navegação. Também era tudo muito pesado e tinha pouco recurso para o passageiro. A potência era pouca e o avião era muito pesado de combustível, pois o Atlântico consumia muita gasolina. O voo rente à lagoa não permitia uma vacilada, senão o avião entrava na água”, contou.

O grande número de apetrechos pesados que a aeronave precisava levar em seu voo fazia com que a sua capacidade fosse de apenas nove passageiros. Para ele, outro problema do modelo era a hélice que era de passo fixo e de madeira. “Caso o motor parasse de funcionar, aquilo trava e atrapalha o voo. Era quase inviável tu fazer uma curva com este modelo. O piloto tinha que praticamente manter ele alinhado e depois uma lancha puxava para manobrar depois do pouso”, completou.

Para superar todas as dificuldades, a Varig contava com a ajuda de profissionais “importados”. Bürgel cita que, nos primeiros anos, todos os mecânicos e pilotos da empresa vieram da Alemanha, entre eles o comandante Rudolf Cramer von Clausbruch, piloto no voo do Zequinha. Todos eram oriundos de um cenário pós Primeira Guerra Mundial, onde a aviação já estava emergindo. O primeiro funcionário brasileiro da Varig, segundo o entusiasta, teria sido justamente Ruben Berta, contratado como auxiliar e que anos depois viria a presidir a companhia.

Todas estas adversidades e condições que o nascimento da aviação no Brasil impunha faz com que o feito se torne ainda mais relevante, avalia o ex-engenheiro de voo. “É louvável também a coragem dos atletas do São José. O Zequinha faz parte deste início da aviação no país. A Varig não tinha nem 30 dias ainda. Eu admiro muito quem fazia e incentivava a aviação nesta época”.

Questionado sobre como deveria ser a pilotagem deste modelo, Oscar, que acumulou mais de 10 mil horas de voo durante seus 31 anos de aviação, ressalta: “Era algo totalmente instintivo. Controle de voo primário e pesado. Era um avião com motor fraco, cheio de gasolina, cheio de cabo de vela centelhando para tudo que é lado. Tudo era muito no limite. Era, sem dúvidas, uma aviação de muito risco. Naquela época, se comparado com atualmente, era perigoso voar”.

As condições do voo também não eram das melhores. Os passageiros recebiam algodão e chicletes. Enquanto o primeiro servia para abafar o barulho alto do motor da aeronave, o chiclete aliviava o desconforto ocasionado pela mudança da pressão em um voo rente à lagoa.

A viagem do Zequinha saiu da Ilha Grande dos Marinheiros, em uma área que atualmente pertence a outro clube de Porto Alegre, o Grêmio. Bürgel cita que este é um local histórico. “Quando os aviões voltavam, eles pousavam na água e um barco recolhia ele para a ilha. Até hoje tem uns trilhos de acesso deste avião. E aquilo é um marco. É o símbolo do início da história da aviação no Brasil”, falou o presidente da Varig Vive.

Entretanto, a relação do São José com a empresa não acabou por aí. Bürgel conta que a Varig adquiriu muitas propriedades na Capital quando começou a crescer, nos primeiros anos de fundação. O terreno na avenida Assis Brasil, na zona Norte, onde hoje é o estádio Passo D’Areia, pertencia a Ruben Berta. No local, ele pretendia construir uma pista de pouso. A área foi adquirida pelos dirigentes do Zequinha em 1939 e o campo foi inaugurado oficialmente em 1940.

Esta é uma das histórias que a associação Varig Vive tenta manter viva na memória dos gaúchos. A entidade, que adquiriu recentemente um Boeing que pertencia à empresa, está em processo de criação de um memorial à extinta empresa em Nova Petrópolis, na Serra. “A associação está aí para preservar a história e a memória da Varig. O complexo turístico terá um pavilhão com atrações, hotel e muito mais”, finalizou Oscar Bürgel.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895