O que mudou na área da economia com a Constituição de 1988

O que mudou na área da economia com a Constituição de 1988

Texto deu uma nova cara às finanças públicas do país e consolidou o federalismo

Por
Mauren Xavier, Flávia Simões* e Carlos Corrêa

Tão temida quando falamos em economia, a palavra inflação tem um significado diferente para os brasileiros que viveram a década de 1980. As histórias de quem comprava um pacote de açúcar pela manhã por um valor e, à noite, pelo dobro, são inúmeras e tiraram o sono de muitos trabalhadores. E foi sob esse contexto econômico e, principalmente, com esse pano de fundo social que beirava o caos, que a Constituição de 1988 foi redigida. Baseada em um conceito “social democrata” e munida de uma série de garantias à população, o texto de 1988 deu uma nova cara às finanças públicas. Consolidou o federalismo e repassou obrigações aos municípios e estados, criou regras de transparência, como o Plano Plurianual (PPA) e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), e centralizou a arrecadação de recursos nas mãos da União. 

Até hoje, entretanto, o texto divide opiniões e uma Reforma Tributária é aventada desde que a Constituição foi promulgada. De um lado, economistas criticam o excesso de burocratização econômica, que decorre de elementos centrais como a vinculação de recursos. Um exemplo é a obrigatoriedade de investimento mínimo de 25% em educação por parte dos estados. À frente da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski destaca que a Constituição consagrou o município com autonomia, mas essa "liberdade" termina quando as responsabilidades aumentam e os recursos recebidos diminuem. A afirmação é um dos argumentos para a defesa de um novo pacto federativo.

Críticos ao texto de 1988 apontam que há uma excesso de burocratização econômica / Crédito: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Essas “amarras”, somadas à grande quantidade de garantias, resultaram em emendas – que foram criadas poucos anos depois da promulgação do texto – a fim de ajudar a controlar a situação fiscal insconstante da época. É o caso do Fundo Social de Emergência, de 1993, que depois viria a ser chamado de DRU (Desvinculação das Redes da União). Apesar de meritória, a Carta Magna brasileira criou “ideais a serem alcançados, mas não a previsão de entrega real (do que definido pela legislação) pelo poder público”, defende o professor de Economia da PUC-RS, Gustavo de Moraes. Para o economista, a tela de fundo em que essas leis foram criadas é o principal fator para explicar a “ausência de lógica econômica”. 

Na outra ponta, contudo, a Constituição foi um marco econômico, segundo a visão de alguns especialistas, especialmente pela segurança tributária proporcionada para os contribuintes. Rafael Wagner, presidente da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB/RS e vice-presidente do Instituto de Estudos Tributários (IET), cita o direito à irretroatividade e a capacidade contributiva como exemplos dessa estabilidade. Apesar disso,  as leis esbarram em um fator central: a execução. Segundo o advogado, a legislação tributária, ainda que precise de ajustes pontuais, é eficaz; no entanto, na aplicação das regras constitucionais o poder público vem, há anos, criando instrumentos infralegais, entre leis, portarias e regulamentos, que trazem novas exigências ao contribuinte. “Se tivéssemos por parte do poder público o exato e fiel cumprimento daquilo que está previsto na Constituição Federal, metade, ou mais da metade, dos problemas tributários que nós temos hoje no país estariam resolvidos”, afirma. Logo, é uma matemática fácil de entender: faltam recursos para bancar o Estado, são criados instrumentos para ampliar a arrecadação. E a lógica não é exclusividade de governo par ou ímpar, a prática vem sendo historicamente utilizada e por diferentes chefes do Executivo, a fim de garantir um suspiro financeiro. 

Ex-presidente pressionou para que não fosse aprovada a limitação de 12% de juros ao ano / Crédito: CP Memória

O veto do presidente José Sarney ao tabelamento de juros 

A economia brasileira sempre foi um objeto de discussão que acirrou ânimos e dividiu opiniões. Há tempos, 35 anos se formos precisos, a situação não era diferente. E a dívida pública, que hoje atinge a marca de R$ 6,2 trilhões, era um dos pontos centrais dos embates que ocorriam nas salas e corredores do Congresso Nacional. Deputado constituinte gaúcho, Hermes Zaneti culpa o ex-presidente José Sarney pelas dívidas – da população e do país. Durante a elaboração da parte econômica do texto de 1988, parlamentares inseriram uma simples e importante frase no artigo que tratava do sistema financeiro, mas que nunca entrou em vigor: o tabelamento de juros a, no máximo, 12% ao ano. “No dia 4 de outubro de 1988, um dia antes de a Constituição entrar em vigor, o presidente José Sarney chama Saulo Ramos, seu procurador-geral e que depois virou Ministro da Justiça, e diz o seguinte: ‘Saulo, esse artigo 192, especialmente a limitação de 12% dos juros, não pode entrar em vigor’. Pensa, a Constituição é escrita através dos constituintes eleitos pelo povo. [...] Então o Saulo Ramos elabora o parecer, esse parecer é aprovado na madrugada do dia 5 pelo Sarney e o presidente foi ao Congresso jurar cumprir a Constituição que ele tinha descumprido antes mesmo de fazer o juramento”, relembra.

'O presidente Sarney foi ao Congresso jurar cumprir a Constituição que ele tinha descumprido antes mesmo de fazer o juramento'

Para Zaneti, que posteriormente viria a escrever o livro “O Complô”, onde aborda o assunto, este é o elemento central dos déficits do país. O deputado alega ser “inviável” para economia girar pagando o que paga de juros. Não só porque o valor corresponde a um montante significativo do arrecadado pelos impostos, mas também porque, com isso, a dívida acaba ganhando prioridade, ante áreas essenciais, na hora da alocação de recursos.

 

* Sob supervisão de Mauren Xavier e Carlos Corrêa

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895