O que mudou na área da educação com a Constituição de 1988

O que mudou na área da educação com a Constituição de 1988

Acesso universal passou a ser responsabilidade do poder público em suas diferentes esferas

Por
Mauren Xavier, Flávia Simões* e Carlos Corrêa

Em um país com dimensões continentais, o Brasil assumiu, por meio da Constituição Federal de 1988, um compromisso audacioso e revolucionário: assegurar o direito de todos à educação gratuita. Assim, como no caso da saúde, o acesso universal passa a ser responsabilidade do poder público, em suas diferentes esferas (federal, estadual e municipal). Torna-se um instrumento de cidadania. 

Entretanto, é preciso voltar no tempo para entender um pouco melhor o que estava acontecendo naquele final da década de 1980 que torna tão disruptivo o que está escrito na Constituição. Para compreender, a pesquisadora e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Nalu Farenzena, sugere levar em consideração o contexto político no qual esses debates aconteciam entre os anos de 1987 e 1988, no qual havia um presidente da República oriundo de eleições indiretas, um período de transição democrática, um Congresso Nacional majoritariamente com perfil de direita e, em muitos casos, conservador. “Aí  a pergunta, diante desse contexto, é: ‘Houve avanços ou recuos na educação e nas políticas em geral?’ Avanços”, enfatiza. Fruto desses avanços foi a intensa atuação da sociedade civil junto à Assembleia Nacional Constituinte (ANC) na defesa da educação pública e que pautou discursos e recebeu acolhimento pelos constitucionalistas, aponta Nalu.

Mais do que só garantir vaga na escola, a CF 88 avançou em criar condições para o estudante ter como ir ao colégio / Crédito: Agência Brasil / Divulgação

É neste contexto que a discussão sobre a garantia de acesso ao ensino se mostrou disruptiva, uma vez que era um momento em “que havia muita desigualdade, como ainda há, mas naquele momento era muito grande”, complementa Marcelo Lucio Ottoni de Castro, consultor do Senado e estudioso da área. “Havia ainda uma disparidade muito grande de recursos que o Estado tinha para aplicar na educação. E a Constituição avançou na ideia de que todos teriam direito à educação e que o Estado tinha obrigação de oferecê-lo”, afirma ele. 

Assim, numa ponta o desafio era garantir vagas para que as crianças e jovens pudessem estudar, e, na outra, era preciso criar condições de levá-los, numa visão social, para dentro da sala de aula. Para atingir esse ponto, a Carta Magna ampliou o conceito de educação, ao considerar a necessidade, por exemplo, do atendimento suplementar, como alimentação, transporte, saúde e material didático. “Ou seja, é uma Constituição consciente dos obstáculos sociais e econômicos existentes na nossa sociedade, que por tantos anos deixaram grande parte da população fora da escola”, ressalta o conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS), Cezar Miola.  

A virada do Fundef

Mas como tornar realidade o acesso universal à educação? A Constituição trouxe  o que poderia ser chamado de “os caminhos das pedras”. Um caminho sólido e reconhecido por todos é o financiamento. Porém, num país em que as finanças públicas são limitadas e o cobertor é curto, cada recurso deve ser comemorado. “A (CF) ampliou o dever de financiamento mínimo a partir da receita de impostos e transferências na manutenção e desenvolvimento do ensino”, relembra Cezar Miola. 

'A Constituição ampliou o dever de financiamento mínimo a partir da receita de impostos e transferências na manutenção e desenvolvimento do ensino'

Na prática, a Constituição já previa obrigações de recursos, mas não era suficiente. Assim, a grande virada virá apenas uma década depois da promulgação, com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que entrou em vigor em 1998, e depois com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), em 2007. “Esses fundos (Fundef e Fundeb) representam um qualificado e efetivo mecanismo de sustentabilidade financeira da política pública, baseado no compartilhamento de responsabilidades entre os entes federados e na distribuição dos recursos por aluno atendido nas redes de ensino”, aponta Miola. 

Para simplificar, a Constituição vincula 25% das receitas dos Estados e municípios à educação, e com o Fundef, 60% desses recursos ficam reservados para o ensino fundamental, além de introduzir novos critérios de distribuição e utilização. “O Fundef assegura a prioridade (na educação?) do Estado”, aponta Nalu Farenzena, citando o ensino fundamental, que é a formação das atuais nove séries iniciais. E para compreender como o processo é longo e ainda está em consolidação, será após mais de duas décadas, em 2020, durante a pandemia de Covid-19, que o Congresso Nacional irá consolidar o Fundeb, tornando-o permanente.

Para garantir o apoio dos prefeitos, os estados assumiam responsabilidades que depois o Fundef corrigiu

A revolução trazida primeiro pelo Fundef deixou em evidência as diferentes realidades econômicas e sociais do país. Ottoni de Castro, consultor do Senado, recorda que na época da promulgação a oferta do ensino fundamental era majoritariamente feita por municípios, no caso dos estados periféricos, como no Nordeste. Porém, no Sudeste, especialmente em São Paulo, o governo do Estado assumiu essa responsabilidade. “Por que isso ocorreu? Por questão de jogo político. Para agradar os prefeitos, para conseguir apoios de prefeitos, os governos estaduais foram assumindo essas responsabilidades, tirando isso das costas dos municípios. Isso começou a ser corrigido com o Fundef”, enfatiza. Isso porque o Fundef distribuiu  recursos de acordo com o contingente de matrículas. Logo, os municípios passaram a tomar a frente, porque passaram a ter recursos assegurados, assim como os estados já tinham. “Trouxe maior equilíbrio na hora da distribuição dos recursos, mas ainda foi limitado, porque abrangeu apenas o ensino fundamental”, completa. 

Tripé das responsabilidades

O modelo tripartite também está previsto na educação, no qual União, estados e municípios devem atuar juntos a favor da área, mas com suas responsabilidades para atender os direitos e garantias inscritos na Constituição. Isso representou um marco na comparação com os textos anteriores, segundo Nalu, porque sem esse elemento "fica muito mais difícil, há muitos obstáculos quando a atribuição é de todos, ela pode acabar não sendo de nenhum". Os municípios recebem destaque especial, neste contexto, porque até a Constituição, não eram autônomos, estavam subordinados à União. “Com esse reconhecimento, (o texto) lhes confere mais autonomia na área da educação”, pontua. Mesmo explícito na Carta Magna, essa relação ainda passa por transformações. Para a pesquisadora, os entes deveriam conversar, uma vez que estão em regime de colaboração. O termo “deveriam” é porque essa ação efetivamente nem sempre acontece. Ottoni de Castro, do Senado, destaca que falta um trabalho mais coordenado entre estados e municípios. “Cada um faz uma coisa e não há coordenação, uma transição. É meio ‘Ao Deus dará’”, aponta. 

Uma das preocupações da CF 88 foi promover a inclusão, trazendo grupos que antes estavam restritos à escolas especializadas / Crédito: Ricardo Giusti

Uma escola mais inclusiva

A Constituição Cidadã quebrou algumas barreiras sociais importantes na educação, mas principalmente para a sociedade. Uma delas foi a promoção do ensino inclusivo, trazendo para dentro das escolas grupos de alunos que ficavam restritos às escolas especializadas, como os que tinham alguma necessidade especial  ou altas habilidades. "A CF antecipou o princípio que viria a ser definido na Declaração de Salamanca (1994), da ONU, que trata da educação especial", cita Ottoni de Castro. Atualmente, ainda existem escolas especializadas, mas essa aproximação trouxe importantes contribuições no ambiente escolar, além de desafios, obviamente. "A integração desse aluno é essencial para combater o preconceito e a favor da inserção social", ressalta o consultor.

 

* Sob supervisão de Mauren Xavier e Carlos Corrêa

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895