Na eleição mais polarizada e radicalizada na recente democracia brasileira, 124.252.796 brasileiros foram às urnas no domingo dia 30 de outubro de 2022 para escolher, em segundo turno, o presidente da República. O gesto de apertar os botões numa urna pode parecer simples. Para alguns, até banal, tanto que o índice de abstenção nesse mesmo pleito atingiu 20,59%. Independentemente das motivações, que são diversas, o direito ao voto, ou melhor, ao voto direto e secreto e com valor igual para todos, é uma conquista relativamente recente. Esse é um dos principais pontos recuperados na Constituição Federal de 1988, que, após 24 anos de regime autoritário, restabeleceu a democracia nos moldes como conhecemos atualmente, na qual os cidadãos, de 18 a 70 anos, são obrigados a votar, sendo essa manifestação secreta e livre.
"O voto ao longo do regime militar foi bastante restritivo, como os casos majoritários de governador e prefeitos das capitais e, na segunda metade dos anos 1970, a figura do senador biônico, em que um terço dos senadores por estado era indicado pelo regime. Havia uma série de restrições e artimanhas nos cálculos dos votos que favoreciam o regime, de forma a conter a expansão da oposição, e claro havia a possibilidade somente de dois partidos políticos", destaca Fabiano Engelmann, cientista político da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).
Possibilidade de voto facultativo de jovens de 16 a 18 anos e pessoas com mais de 70 seguem vigentes / Crédito: Guilherme Almeida / CP Memória
A recuperação do direito do voto com a Constituição significa mais do que apenas escolher pessoas para determinados cargos. É um exercício de cidadania. À frente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RS), a desembargadora Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak não esconde a emoção de falar da “revolução política” trazida com a Constituição. "Só podemos dizer que vivemos numa democracia quando o cidadão tem a liberdade e oportunidade de escolher os seus representantes e se dispor a representar os demais cidadãos", enfatiza. “Assim, quanto maior foi a pluralidade política e quanto mais as pessoas de diferentes situações, condições sociais, matizes e culturas puderem estar nesse processo de participação política, mais direitos, mais inovações, mais evolução para a sociedade como um todo. E essa foi a grande virtude da Constituição”, completa.
A manifestação não é gratuita. E a história brasileira deixa isso bem em evidência. Afinal, até parte do século passado, o voto era restrito a alguns grupos, basicamente homens com posses. As mulheres passaram a poder ter sua vontade expressa apenas a partir de 1932, menos de um século atrás. Na atual Constituição, essa “revolução” citada pela desembargadora está representada no alargamento da participação política da sociedade brasileira por meio da participação. Por exemplo, mesmo facultativo, puderam votar os jovens entre 16 até 18 anos, os analfabetos e as pessoas com mais de 70 anos. Essas regras seguem vigentes até os dias atuais.
Como citado, a Constituição Federal abriu a possibilidade do voto facultativo aos jovens entre 16 e 18 anos. Nos debates em plenário, o proponente da inclusão, o deputado constituinte gaúcho Hermes Zaneti, recorda que conquistar essa vitória esteve longe de ser simples, mas "valeu a pena a briga". "Porque eu defendi e consegui aprovar o direito de voto aos 16 anos. A minha ideia era a seguinte, normalmente, nessa faixa etária os jovens brasileiros estão na escola, então eles poderiam ter a oportunidade de fazer uma discussão de programas, de candidaturas, de ideologias e do processo político em si. Eles seriam um veículo, ao invés deles serem, vamos dizer assim, submissos aos pais no processo político”, recorda. Porém, esse avanço recebeu severas críticas e inclusive um termo pejorativo de que seria a “corrupção do pirulito”. Em outras palavras, seria, teoricamente, fácil corromper os jovens. O argumento usado para rebater foi simples e direto: se pode ir para a guerra, pode escolher quem declara a guerra. "O jovem aos 16 anos sempre pôde, há muito tempo na legislação brasileira, se apresentar para servir voluntariamente ao Exército em caso de guerra, inclusive guerra externa. Muito bem. Aí um dos argumentos que usei foi que, se o jovem pode morrer em defesa do seu país, por que ele não pode votar para eleger o presidente da República que declara a guerra?”, afirmou. Esse argumento foi decisivo para silenciar o então ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves, crítico da sugestão. E surtiu efeito. Após um discurso acalorado e longo na tribuna da Câmara, Zaneti foi chamado por um assessor do ministério do Exército. “Pronto, agora vou ser preso”, recorda. Mas, na verdade, apenas recebeu o aviso de que o ministro não falaria mais sobre esse assunto.
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O fim do bipartidarismo e o excesso de partidos
As restrições que existiam antes da Constituição Federal não eram só de voto, mas também de manifestação política e dessa representação por meio dos partidos políticos. "A Constituição de 1988 tem essa premissa de representar uma retomada do sistema democrático, que foi interrompido com o Golpe Militar de 1964. É a recuperação do Estado de Direito, dos direitos civis na forma plena e o direito político de organização", destaca Fabiano Engelmann. Já no início dos anos 1980, começa o fim do bipartidarismo, que viria a ser consolidado na Constituição, ainda que o atual pluripartidarismo seja considerado excessivo por alguns especialistas - atualmente, 30 partidos estão em funcionamento. Mesmo assim, segundo as linhas da Constituição, as diferentes ideias e posições podem ser representadas no Executivo (presidência da República, governos estaduais e prefeitos) e no Legislativo (Congresso Nacional, assembleias legislativas e câmaras municipais).
A presidente do TRE-RS considera que o pluripartidarismo é natural. "A Constituição estabeleceu a livre criação dos partidos políticos, a fusão, incorporação e extinção. Então, trouxe também mais liberdade para que todas, vamos dizer assim, ideologias tivessem a possibilidade de estar ativamente representadas através de um partido político e que pudessem então exercer todos os direitos", pontua.
Engelmann ressalta que, desde a Constituição, ocorreram muitos avanços no sentido de aperfeiçoar o sistema eleitoral e também de fortalecimento do poder aos partidos, como o fundo partidário, leis de prestação de contas e financiamentos. “Isso também teve alguns efeitos, vamos dizer assim, perversos. Por exemplo, uma grande fragmentação no sistema partidário. O Brasil tem um volume expressivo de partidos, mais de 30 partidos políticos. Então esses são efeitos de distorção, por conta até dos recursos que os partidos podem acessar e também pela questão da dispersão federativa, as diferentes realidades, diferentes articulações políticas regionais que favorecem também contribuem para essa maior fragmentação do sistema”, ressalta o professor.
Mais regras, mais judicialização
Há duas semanas, a presidente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann, criticou a Justiça Eleitoral brasileira. O atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (STF), ministro Alexandre de Moraes, reagiu, pontuando a importância do órgão, que completou mais de 90 anos, e ganhou mais relevância nas últimas décadas, como aponta Engelmann. "Há uma mudança importante que é a Justiça Eleitoral. Houve um incremento nos últimos 10 anos da legislação eleitoral. Muitas mudanças e, principalmente, enrijecendo as campanhas eleitorais, do que pode ser feito e o que não pode ser feito. Isso influenciou muita mudança, restringiu a propaganda política, induziu uma série de mudanças e isso levou também a uma grande judicialização", ressalta o cientista político da Ufrgs, que vê o movimento ainda como um resultado da maior fiscalização do processo eleitoral.
Apesar das mudanças, as regras básicas estão na carta. “O grande norte da Justiça Eleitoral são os direitos políticos que foram instituídos na Constituição. Ali foram estabelecidas diversas regras a respeito das questões de elegibilidade e inelegibilidade. Então, a Constituição é a principal fonte do Direito Eleitoral", aponta a presidente do TRE-RS. É o documento de 1988 que traz as diretrizes da perda dos direitos políticos, as hipóteses de cassações de mandato, impugnações, entre outros pontos.
Regras básicas da justiça eleitoral foram norteadas pela Constituição de 1988 / Crédito: Ricardo Giusti
O quase-parlamentarismo
A Assembleia Nacional Constituinte (ANC) durou 19 meses. Entre outras coisas, durante os trabalhos, houve quase consenso que o modelo político a ser adotado seria o parlamentarismo. Nesta concepção, há um líder representativo (um presidente ou um rei) e outro decisório, que é a figura do primeiro-ministro. Ele, porém, não é eleito pela população, mas escolhido pelo Parlamento. A teoria, com alguns ajustes, concentrou boa parte das discussões e avançou com força. Mas a política é dinâmica. E o que parecia certo, virou dúvida e, na hora H, venceu o presidencialismo, modelo que existe até hoje, na qual o Executivo é presidido pelo presidente da República e o Congresso Nacional abarca senadores e deputados, sendo liderado pelo presidente do Senado.
A participação popular também se dá de outras formas, além do votos nos políticos, mas por meio da manifestação da opinião em plebiscito (opinião sobre determinado tema), referendo (posição sobre uma lei já existente) e lei de iniciativa popular (apresentação de um projeto de lei).
* Sob supervisão de Mauren Xavier e Carlos Corrêa