O que mudou na área da saúde com a Constituição de 1988

O que mudou na área da saúde com a Constituição de 1988

Criação do SUS foi o grande legado da carta

Por
Mauren Xavier, Flávia Simões* e Carlos Corrêa

No dia 17 de janeiro de 2021, quase um ano depois do início da pandemia da Covid-19, a primeira dose de vacina contra a doença foi aplicada no Brasil. Aquele momento histórico marcou uma nova fase de enfrentamento ao coronavírus. No período de um ano, 78,8% da população brasileira foi vacinada com, no mínimo, a primeira dose. Em um país continental e com alguns movimentos contrários à imunização, a campanha foi considerada um sucesso e fez com que, mesmo com a chegada de uma nova variante, houvesse a redução de casos graves e da mortalidade. 

Esse é um exemplo prático e recente de como o Sistema Único de Saúde (SUS) foi colocado à prova e funcionou, segundo especialistas. A existência de um sistema tripartite, na qual União, estados e municípios compartilham responsabilidades poderia ser uma utopia naquele final de 1988, quando nascia a Constituição Federal. E talvez fosse. Porém, na prática, garante até hoje importantes resultados. 

O SUS como conhecemos hoje nasceu das discussões no Congresso Nacional. Mas essa é só uma parte da história. Os debates e as pressões que iriam embasar os textos da Constituição e da própria lei do SUS, em 1990, começaram no mínimo dois anos antes, na 8ª Conferência de Saúde, em 1986. Aquele encontro foi considerado pioneiro ao trazer os movimentos sociais para o debate da reforma sanitária no país, ampliando a pressão por mudanças. “É um marco histórico e que revolucionou a saúde pública no país. Só que ela teve um marco anterior que seja talvez mais importante que a própria. Porque a Constituição foi oficializar as decisões da 8ª Conferência de Saúde de 1986, que traz os princípios”, pondera o secretário municipal de Saúde de Porto Alegre e professor da PUCRS, Fernando Ritter. “É uma conquista da população brasileira, inclusive da democracia”, complementa Fernando Pigatto, atual presidente do Conselho Nacional de Saúde, órgão que representa a sociedade civil. Ele lembra ainda o próprio lema da Conferência na época: “Democracia é saúde, saúde é democracia”.

O que mudou na área do trabalho com a Constituição de 1988

O que mudou na área da política com a Constituição de 1988

Antes da criação do SUS, apenas trabalhadores tinham acesso à saúde pública / Crédito: Mauro Schaefer

Assim, a Assembleia Nacional Constituinte consolidou a saúde como um direito. "Antes, não era todo mundo que tinha acesso", relembra Pigatto. Até então, era um direito apenas para o trabalhador ou quem fizesse tivesse algum vínculo com contribuição. Os demais dependiam apenas da filantropia. “Tu tinhas que ter a carteirinha amarelinha do INSS. Se tu não fosse trabalhador, não tinha direito. E daí tu tinhas que ir para as Santas Casas de Misericórdia. A saúde era segregatória. Ela separava as pessoas. E a partir de 1988 não importa, seja ela uma pessoa sem condições financeiras ou com todas as condições, todas têm direito de saúde”, pondera Fernando Ritter. Assim, os avanços na saúde previstos na Constituição de 1988 representam o resultado de uma intensa batalha e discussões. “Só temos o SUS hoje porque houve um movimento anterior”, ressalta Pigatto. Pressão essa que recaiu sobre os constitucionalistas depois. “Nunca foi simples, mas houve uma ampla articulação”, pondera, citando ainda a sensibilidade do Parlamento ao receber essas demandas.

'O SUS sempre esteve em construção e aperfeiçoamento. O SUS sonhado e ideal a gente ainda não tem'

A consolidação na Constituição, porém, foi apenas o ponto de partida formal, seguido pelas regulamentações do SUS em 1990. “(O SUS) Só foi possível dois anos depois com muita briga”, cita Ritter. E é diante dessa nova realidade, um pouco utópica para alguns, que o sistema inteiro precisava ser estruturado. Porém, ele não estava pronto. "O SUS sempre esteve em construção e aperfeiçoamento. O SUS sonhado e ideal a gente ainda não tem", diz Pigatto. E, segundo os especialistas, segue em aperfeiçoamento. “Há dificuldades, como o fato de nem sempre todos os atores saberem bem como funciona o sistema. Onde a saúde é municipalizada ou onde é a rede de referência”, cita o médico Eduardo Neubarth Trindade, conselheiro do Conselho Regional de Medicina do RS (Cremers). Em parte essa situação deve-se à complexidade do sistema, que envolve todas as esferas políticas, sociedade civil e iniciativa privada. 

Outro ponto  em permanente discussão é o financiamento. “Se falou que ela (saúde) tem que ser universal, tudo para todos, não importa o preço. Foi um sonho utópico em 1988 e que ao longo dos últimos 35 anos foi sendo executado”, pontua Ritter, citando a existência de uma rede de assistência básica em todos os municípios e o programa de transplante de órgãos, concentrado no SUS. Para Trindade, o debate é mais delicado quando o sistema está desestruturado. Ele dá como exemplo o caso de um paciente que tem o seu quadro de saúde agravado por não conseguir o atendimento na agilidade necessária. "É um ciclo vicioso. Tem essa questão estrutural que começa na atenção básica, que tem que dar o primeiro atendimento, e passa para a rede hospitalar, que tem que atender todos os graus de complexidade". Por que esse fator é importante? Porque quando há limitações, como a falta de leitos, e a estrutura de saúde fica sobrecarregada, o paciente mais grave fica à frente daqueles que são de complexidade menor. Porém, ao esperar muito tempo por atendimento, os pacientes deixam de ser de baixa complexidade e passam a ser de alta. Logo, o custo dessa demanda é mais caro e recai sobre o Estado. "Então não é uma questão só de financiamento", alerta Trindade, citando a prevenção.

'A saúde não é mais a ausência da doença. A atenção à saúde envolve mais do que a doença'

Esse ponto representa uma virada de chave trazida com a Constituição em relação à saúde, que passou a ser vista e compreendida de forma mais ampla.  “A saúde não é mais a ausência de doença”, afirma Fernando Ritter. Na prática, é um conjunto de serviços e de programas que busca ver o indivíduo como um todo. Para viabilizar esse conceito surgem novas figuras nesta engrenagem, como os agentes de saúde e a própria vigilância em saúde. "A atenção à saúde envolve mais do que a doença. O SUS cuida da infestação do escorpião, do PNI (Programa Nacional de Imunização), que é a única coisa que previne uma doença, envolve ainda educação, empatia e ouvir o diferente", complementa o secretário. É ver a doença como o resultado de multifatores e o cidadão de forma individual. "A gente lembra das muitas coisas boas do SUS. E a gente, de certa forma, colocou o SUS à prova durante a pandemia (da Covid-19), não só tratando dos pacientes, mas também na questão da prevenção. E, de certa forma, deu resultado", pontua Eduardo Trindade.

Campanha de vacinação contra a Covid-19 colocou à prova o Sistema Único de Saúde / Crédito: Alina Souza / CP Memória

 

* Sob Supervisão de Mauren Xavier e Carlos Corrêa

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895