O que mudou na área do meio ambiente com a Constitução de 1988

O que mudou na área do meio ambiente com a Constitução de 1988

Além de criar instrumentos de preservação, texto também desenhou responsabilidades com a causa

Por
Mauren Xavier, Flávia Simões* e Carlos Corrêa

As discussões sobre a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais ainda engatinhavam em 1988. Mesmo assim, entre os pioneirismos trazidos pela Constituição, o tema conquistou um capítulo específico. Era a primeira vez que ingressava no documento. “A Constituição Federal foi a base para tudo o que veio depois no campo de políticas públicas, tanto na legislação, como nas atuações do Executivo e do Judiciário e os direitos que passaram a ser observados”, ressalta Suely Vaz Araújo, pesquisadora e ex-presidente do Ibama. 

'A Constituição colocou o tema do meio ambiente de uma maneira avançada, que permanece atual'

O pioneirismo ou a preocupação com o tema veio a partir de um caminho sedimentado na própria Assembleia Nacional Constituinte (ANC), que conseguiu captar uma discussão que crescia no mundo, tanto que a origem do debate ambiental ocorre com o relatório Brundtland, de 1987, da Organização das Nações Unidas (ONU). “Ela colocou o tema do meio ambiente de uma maneira avançada, que permanece atual. Quer dizer, naquela época poucas Constituições tratavam do meio ambiente e praticamente todas as realizadas depois daquele período incorporaram a questão ambiental com maior ou menor intensidade”, relembra o constituinte Fábio Feldmann, primeiro deputado federal a ser eleito vinculado à causa ambiental. O fato de o texto ter permanecido atual, apesar das diversas mudanças no mundo e na sociedade ao longo das mais de três décadas, representa que os constituintes estavam corretos. “Sem essa materialização com a Constituição, não teríamos outras importantes leis que vieram depois. Só é uma pena que a gente não tenha um Código Ambiental para todos os estados em todo o país. Até temos no Rio Grande do Sul, mas em âmbito nacional não tem”, lamenta a professora de direito ambiental e constitucional da PUCRS e advogada Márcia Buhring.

Mesmo um tempo pouco divulgado à época, a biodiversidade foi consagrada na Carta Magna / Crédito: TV Brasil / Divulgação

Mas, afinal, que avanços foram esses? Em linhas gerais, entre eles estavam instrumentos de preservação, mas também de responsabilidades com a causa. Ferramentas como o Estudo de Avaliação Ambiental e o Licenciamento Ambiental estreavam na Constituição. A biodiversidade foi consagrada na Carta Magna, sendo um termo pouco difundido à época, e a própria identificação do bioma como patrimônio nacional, trazendo uma carga maior de proteção.

Inclusive, esse tópico pode ser considerado disruptivo na discussão. É a partir do texto de 1988 que nascem inovações importantes que se referem às responsabilidades e aquem responde pelas infrações. Tanto que será a partir da carta que nascerá a Lei de Crimes Ambientais, em 1998. “A Constituição trouxe dispositivos fortes e essenciais e uma visão que tem ajudado na garantia da proteção do meio ambiente”, reforça Suely. 

'A Constituição trouxe dispositivos fortes e essenciais e uma visão que tem ajudado na garantia da proteção do meio ambiente'

Um exemplo prático é o fortalecimento da atuação do Ministério Público, fruto da Constituição, como relembra Fábio Feldmann. O aumento de responsabilidade é reconhecido e valorizado, mas os desafios estão longe de serem superados. À frente do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do MPE-RS, Ana Maria Moreira Marchesan utiliza-se de uma metáfora para explicar a evolução da legislação pós-Constituição: é uma tapeçaria de Penélope. Na história, Penélope, para ganhar tempo enquanto o marido estava na guerra e não ter que se casar com outro, todo o dia tecia a tela e à noite, secretamente, desfazia o trabalho feito. Nessa linha, cita retrocessos. “Atualmente, a gente vê o momento de desconstrução (das leis)”, cita, exemplificando o Código Florestal, que era uma lei de referência e que, com o passar dos anos, permitiu anistias.

Flexibilzações ao longo dos anos são consideradas preocupantes pelos especialistas, por muitas representarem retrocessos / Crédito: Carls de Souza / AFP

As flexibilizações nas leis são pontos preocupantes e que os efeitos talvez nem sejam sentidos efetivamente pelas gerações atuais. Além disso, recebem respaldos entre os poderes. Ana Maria cita o caso da Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC), iniciado pelo governo baiano, em 2011, e que, diante da ausência de uma reação mais contundente por parte das outras esferas, passou a ser copiado por outros estados e municípios do país. A legislação em questão permite que os empreendedores autodeclarem os possíveis impactos do seu negócio e, na sequência, isso é apenas fiscalizado pelo poder público. “Os retrocessos vieram pelo fluxo contrário, movido por interesses econômicos. Uma desconstrução para flexibilizar o licenciamento ambiental”, pontua.

'O cerne já estava ali presente em 1988, mas as regulamentações tiveram que se dar mais tarde, até porque a sociedade foi se modificando'

Como saldo, apesar das várias medidas provisórias e emendas desde 1988, Márcia Buhring ainda avalia que o texto da Constituição mantém o seu objetivo inicial: “O cerne já estava ali presente em 1988, mas as regulamentações tiveram que se dar mais tarde, até porque a sociedade foi se modificando”. E essas mudanças foram tamanhas que a questão ambiental transcendeu áreas: “As pessoas têm direito a um meio ambiente saudável. Hoje, a principal pauta dos direitos humanos no século 21 é o meio ambiente”, diz Jair Krischke, fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH).

 

* Sob supervisão de Mauren Xavier e Carlos Corrêa

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895