Férias anuais remuneradas, salário mínimo, licença-maternidade. Esses são alguns, da extensa lista, dos direitos sociais garantidos aos trabalhadores brasileiros pela Constituição de 1988. Mas a carta-magna que rege o país vai além. Ela não somente garantiu, como também tornou essas prerrogativas irrevogáveis ao instituí-las, ao lado dos outros três artigos que balizam a democracia, como uma cláusula pétrea. A nomenclatura, ainda que juridiquês, tem um significado simples: é um dispositivo constitucional imutável, ou seja, não pode ser alterado ou revogado nem por uma proposta de Emenda à Constituição (PEC). Com isso, a Assembleia Nacional Constituinte assegurou, há 35 anos, que os direitos dos trabalhadores brasileiros perpassam questões governamentais e políticas, consolidando a Constituição de 1988 como uma das únicas – se não a única – do mundo cujo os direitos desse grupo encontram no mais alto nível jurídico.
“O trabalhador é o epicentro da Constituição”, define o ex-procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho, Rafael Pego. É verdade que antes da CF 88 legislações nesse sentido já existiam. A Consolidação das Leis Trabalhistas, a famosa CLT, de 1943, criou um regime de trabalho com uma série de direitos. Mas foi apenas ao colocá-los na Constituição e instituí-los como definitivos que os trabalhadores conquistaram outro nível de proteção. “É o topo da hierarquia dos direitos. Isso é uma forma não só de garantir aos trabalhadores e à sociedade brasileira esses direitos, mas principalmente de estabilizar e garantir para o futuro, para que não sejam alterados de acordo com a situação política ou econômica do momento. Talvez, se fosse só uma lei ordinária, hoje já não estariam mais previstos”, pondera Pego.
A Reforma Trabalhista, de 2017, alterou pontos chave na relação de trabalho patrão-empregado / Crédito: Fabiano do Amaral
Não fosse a insistência de alguns parlamentares, talvez nem tivessem existido. Pelo menos não da forma que conhecemos. Designado pelo Centrão para articular as questões trabalhistas, o deputado constituinte gaúcho Luís Roberto Ponte (MDB) relembra as dinâmicas de negociação como uma dança: dois pra lá, dois pra cá. Enquanto a esquerda lutava, por exemplo, pela estabilidade no emprego após 10 anos de contribuição, setores alinhados com as empresas não gostavam da ideia, mas foram convencidos. Já Ponte, que havia sido eleito como representante do setor da construção civil, não. Até Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, entrou em campo, tentou convencer o deputado, mas ele bateu o pé: não ia votar. No final, ambos os grupos se contentaram com outro meio que não oneraria nem as empresas, nem os trabalhadores, a instituição de uma multa de 40% sobre o arrecadado pelo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) em caso de demissão sem justa causa.
A multa permanece até hoje, embora continue sendo alvo de tentativas para suprimi-la. Mas outras garantias, entretanto, não passaram ilesas das mudanças geracionais e políticas. A Reforma Trabalhista de 2017 não suprimiu – tampouco aumentou – direitos, mas mudou pontos chave nas relações de trabalho. Na ânsia pela modernização, a fim de acompanhar as transformações da sociedade, o texto foi pouco discutido em comparação com a proporção do que estava sendo debatido, afirma o procurador. De forma resumida, a flexibilização das leis e a valorização dos pactos individuais são os pontos mais problemáticos. Este último se torna preocupante, principalmente se levado em consideração que, em relações assimétricas (patrão-empregado), não há igualdade nas negociações. “O que a gente teve de mudanças profundas na legislação trabalhista foi num plano da infraconstitucionalidade. Com a Reforma Trabalhista, com a lei da terceirização, agora a lei do trabalho remoto", aponta Pego. Na defesa da necessidade de adaptações na legislação em função do avanço tecnológico que transformou muito das relações de trabalho, Pego é assertivo ao afirmar que mudaram as características, não o vínculo. Logo, por mais que não se exija um horário fixo ou folha ponto, por exemplo, os controles de produtividade ainda são vigentes. “Existem flexibilidades da vida moderna, como o trabalho remoto, mas isso não necessariamente significa que é um trabalho autônomo. Não existe uma liberdade, existem outras formas de controle”, pondera.
Se os direitos trabalhistas alcançaram um status máximo na estrutura jurídica, o Direito do Trabalho também ganhou uma “nova roupagem”. Balizado no dever de ampliar a fiscalização sobre as condições de trabalho e o equilíbrio da relação entre empregadores e empregados, instituições como o Ministério Público do Trabalho, que já existiam, foram reestruturadas para o que conhecemos hoje, cujo objetivo é defender o ordenamento jurídico, o regime democrático, os direitos e interesses sociais.
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O tripé mais importante da seguridade social
Ao assegurar garantias aos trabalhadores, a Constituição de 1988 também tratou de se certificar que o colaborador tenha amparo financeiro do Estado quando afastado da sua principal fonte de renda, seja por saúde ou aposentadoria. A seguridade social é outro mecanismo que conferiu à carta magna brasileira o status de “Constituição Cidadã”. O sistema foi estruturado sob três pilares – saúde, previdência e assistência social – e possuiu um orçamento próprio, já previsto em lei. “É a única vez que a Constituição faz isso, dar os meios para que finalidades sejam atendidas. E não faltou dinheiro, porque ela criou várias fontes novas de custeio para a seguridade social”, salienta Wagner Balera, diretor dos cursos de graduação e pós-graduação de Direito Previdenciário da PUC-SP.
Entretanto, paira sobre a previdência, há anos, um estigma difícil de ser revertido, de que o caixa está quebrado. A afirmação não é totalmente errada, existe, de fato, um déficit no orçamento da seguridade social, mas é necessário um olhar atento aos motivos. Com um sistema de financiamento tripartite que conta com a contribuição do empregador, do empregado e da União, um dos entes têm deixado de pagar a conta: o Estado brasileiro. Caro, o sistema de previdência que rege o funcionalismo, dos mais baixos aos mais altos salários e benefícios, é o mesmo para os trabalhadores de empresas privadas – com a exceção de que a União não contribui da forma que deveria. “(O governo) Inventou mecanismos para não pagar, o primeiro é a conta única. É um truque. Todo dinheiro que a previdência, a seguridade social, arrecada, vai para uma conta única do Tesouro Nacional. O Estado manipula o direito da seguridade ao seu bel prazer. Se a Constituição criou dois orçamentos, são dois caixas separados, obrigatoriamente, para não misturar o dinheiro. A União recolhe à vista e paga a prazo”, afirmou o professor.
Texto de 1988 assegura ao trabalhador amparo financeiro quando afastado da sua fonte de renda / Crédito: Mauro Schaefer
Mudanças para alterar essa estrutura já foram propostas. A primeira grande Reforma da Previdência, que começou a ser discutida em 1995, tinha como objetivo alterar pontos que diminuiriam as assimetrias entre o regime geral e os próprios. A medida, entretanto, não foi executada na sua plenitude. O motivo, segundo Balera, foi a criação de uma série de regras de transição. “A emenda 20 já nasceu com defeito de fabricação”, classifica o professor, que complementa: “(A reforma) Reduziu direitos sociais de todo mundo, mas manteve intacto o grupo de elite dos servidores. As outras (reformas) vieram na mesma linha, não mudaram o propósito de reduzir as assimetrias.”
Além disso, a previdência em sua essência é baseada em um sistema de governo difícil de manter em pé e cujo declínio começou antes mesmo da Constituição, que é o Estado do bem estar social, onde o poder público é o principal provedor de tudo. Para ficar de pé – e funcionando plenamente – exige-se uma demanda alta de recursos financeiros constantes, que devem aumentar gradativamente.
* Sob supervisão de Mauren Xavier e Carlos Corrêa