Marca do futebol feminino no Brasil, o Inter se aproxima do maior desafio até aqui no departamento. No início de outubro, as Gurias Coloradas começam a busca da glória eterna. Ou seja, o título inédito da Copa Libertadores.
A caminhada até aqui começou cedo. Em 1983 foi criado o departamento e quatro anos depois, o time gaúcho conquistava o terceiro lugar no Campeonato Brasileiro. A partir daí, se consolidou e passou a colecionar conquistas, como o tetracampeonato gaúcho em cima do seu maior rival, fato que acarretou na convocação de algumas jogadoras para a Seleção Brasileira em 1999 pela primeira vez.
Nos anos 2000, o Inter voltou a ceder atletas para defender a camisa amarela, desta vez para compor a equipe que disputaria os Jogos Olímpicos de Atenas. Passado um tempo e alguns títulos regionais, a pasta foi suspensa e retomada em 2017. Carinhosamente chamadas de Gurias Coloradas desde então, as atletas vem evoluindo e conquistando cada vez mais reconhecimento em território nacional. A base sólida de investimentos contínuos no desenvolvimento do futebol feminino do clube trouxe destaque nos últimos anos, conquistando títulos e revelando talentos.
Um dos maiores aconteceu na final do Brasileirão do ano passado, quando a equipe conseguiu a classificação inédita para a maior competição da América. Depois disso, a Copa Libertadores Feminina se tornou um dos maiores desafios da história esportiva do Inter. O torneio reúne os melhores clubes da América do Sul, além de proporcionar uma plataforma única para as jogadoras demonstrarem o talento e competirem em alto nível.
Liderado pelo novo técnico Lucas Piccinato, que chegou a Porto Alegre há apenas dois meses, as Gurias Coloradas formam um elenco mesclando juventude e experiência. O comandante, de 33 anos, teve seu primeiro trabalho na modalidade no Centro Olímpico, como auxiliar, em 2014. Posteriormente, em 2019, surgiu o maior desafio da carreira: comandar o São Paulo. No tricolor paulista, Piccinato conquistou o título do Brasileirão A-2 logo na primeira temporada como treinador. Também esteve à frente do São Paulo no retorno à Série A-1 e na chegada às semifinais da competição nacional. A carreira do treinador chamou atenção do clube gaúcho, que fez a contratação em julho.
“Eu fico muito feliz pela oportunidade que o Inter tem me dado para chegar aqui nesse momento”, diz Lucas. “Estou chegando com uma expectativa muito boa em um clube gigantesco que tem me dado uma estrutura impressionante para trabalhar. Espero colocar o Internacional na altura que ele merece, na principal competição que vamos disputar nesta temporada”, completa.
A Libertadores feminina é disputada em 17 dias em um único local: na Colômbia. É uma competição de tiro curto, que aumenta ainda mais a tensão nos jogos. O torneio será uma verdadeira prova de fogo para o Inter, que terá pela frente adversários de grande qualidade, incluindo equipes tradicionais da Argentina, Colômbia, Chile e outros países da região. No sorteio, o time está no Grupo D, ao lado de Nacional-URU, América de Cali-COL e Boca Júniors-ARG.
A data de estreia das Gurias é dia 6 de outubro contra o Nacional, no estádio Pascual Guerrero, em Cali. “A expectativa para a disputa está muito grande, nós acabamos caindo num grupo muito forte realmente. Mas, se por um lado nós teremos uma dificuldade maior agora nessa primeira fase também essa dificuldade vai nos preparar para a sequência da competição”, avalia o gerente de futebol feminino do clube, Leonardo Menezes.
Agora, o clube gaúcho busca conquistar o continente e adicionar a taça da Libertadores da América ao extenso currículo de conquistas. “Gostaríamos muito de conseguir coroar todo o empenho e dedicação da comissão técnica, da diretoria e das atletas com esse título inédito”, concluiu Leonardo.
Lucas Piccinato assumiu o clube em julho deste ano. Vindo do São Paulo, o técnico carrega uma bagagem de experiência que pretende exercer na competição | Foto: Fabiano do Amaral
Reforços vindos de longe para a equipe
Com a expectativa para o salto de qualidade exigido na Libertadores da América, o Inter foi atrás de reforços. E alguns deles vieram de longe.
Natural de Mortugaba, interior da Bahia, Soll chega para somar no ataque colorado. Apaixonada por futebol desde pequena, a jogadora e iniciou a carreira de forma amadora com passagem por times baianos pequenos, como Doce Mel, de Jequié, no campeonato estadual em 2021. Naquela temporada, Soll foi vice-artilheira da competição e ajudou a garantir vaga para o Brasileirão A-3.
Depois do destaque, iniciou a carreira profissional no Athletico Paranaense, onde disputou o Brasileirão A-2, em 2022. Foi de novo vice-goleadora e levou a equipe à conquista inédita da vaga para o Brasileirão A-1. Apesar da breve experiência, Soll aposta que a Libertadores é algo muito diferente do que estava acostumada e admite o frio na barriga com a mudança de patamar.
“Quando eu cheguei, foi um pouco surreal para mim. Estou me adaptando ainda a essa crescente”, conta Soll que destaca a possibilidade de atuar em outras competições. Além da Libertadores, as Gurias Coloradas também irão disputar o Campeonato Gaúcho, que vai servir como preparação para as jogadoras. “Para mim foi algo surreal. Eu sei que hoje tenho que aprender mais coisas do que eu fazia lá atrás”, afirma Soll.
Outro reforço colorado para enfrentar a Libertadores é a jovem Letícia Monteiro, de 21 anos. A meio-campista vem de Juazeiro, na Bahia, por empréstimo do Red Bull Bragantino, até dezembro de 2023. Mais tímida do que a companheira, Letícia conta que o primeiro contato com o esporte foi através do futsal ainda na infância, mas se encontrou realmente no futebol no início deste ano.
“Na verdade, até um ano atrás, eu nem queria ser jogadora de verdade”, confessa. “Aí eu comecei jogando, jogando... e surgiu a oportunidade de um sub-18 pelo Fortaleza. Fiquei um ano lá e do nada eu já estava em São Paulo. Foi tudo muito rápido e eu não sabia a grandeza que isso ia trazer para mim”, recorda. A jogadora ainda soma passagens pelo Mixto, União Desportiva e Auto Esporte. No Red Bull Bragantino, Letícia se tornou um dos pilares ofensivos do time e foi uma das responsáveis pela conquista do Campeonato Brasileiro Feminino A-2.
Longe de casa desde os 14 anos, as atletas têm trajetórias um pouco diferentes. Enquanto Letícia sempre teve todo o apoio da família para investir na carreira esportiva, Soll precisava fugir de casa para conseguir ir aos treinos. “Minha família é um pouco burocrática nesse sentido, porque meu avô era muito rigoroso”, destaca Soll. “Chegou um momento que eu tive que morar com minha tia para ter essa facilidade e continuar desenvolvendo.” Por outro lado, Letícia sempre contou com o apoio familiar, principalmente do pai. “Ele sempre me apoiou. Toda semana a gente ia na feira e ele comprava uma bola de couro, que no outro dia já estava furada”, relembra.
Soll e Letícia vêm do interior da Bahia para somar na equipe. Elas têm passagens por Athletico Paranaense e Red Bull Bragantino | Foto: Fabiano do Amaral
Crescimento mais evidente
Ter mulheres como inspiração no futebol não era algo comum. A maioria das meninas que tinham o sonho de iniciar no esporte enxergavam as referências no futebol masculino. Foi o que aconteceu com Soll e Letícia.
Quando começaram a paixão pelos gramados, o futebol feminino não era transmitido em nenhum lugar. Martha foi o primeiro nome que recebeu reconhecimento mundial e serviu de inspiração para muitas jovens atletas. A Copa do Mundo de 2023 foi o maior exemplo da dimensão que o futebol feminino está conquistando. Foram 32 seleções participando no torneio, além de seleções de menor prestígio chegando longe na disputa pelo título. Lucas Piccinato ingressou no meio esportivo feminino em um ano de Copa do Mundo, em 2011, quando trabalhava no Centro Olímpico. “Não existia um olhar. Quase não se falava de Copa do Mundo feminina naquela época”, relembra.
As mudanças começaram a aparecer realmente na Copa de 2019, quando houve mais visibilidade da competição, com a transmissão das partidas, por exemplo. Isso desencadeou uma grande expectativa para a disputa deste ano, em razão da Seleção Brasileira estar embalada e em um bom processo de renovação. Apesar do desempenho da equipe ter ficado abaixo do esperado, o futebol feminino alcançou um patamar que não tem mais volta.
“A gente está surfando em uma onda muito maior”, destaca Lucas. “A gente vê um campeonato brasileiro sendo transmitido em rede nacional, vemos um público alto nas finais, equipes se estruturando e investindo com intensidade no futebol feminino.” O destaque do Mundial também respingou nas Gurias Coloradas e no aumento da visibilidade dos torneios femininos brasileiros. O futebol feminino chegou no mesmo patamar na masculina em m nível de competitividade, “Estamos querendo trazer esse nível nas alturas para fazer uma grande competição na Colômbia”, encerra Lucas.
* Sob orientação de João Paulo Fontoura