O terroir da Serra do Sudeste

O terroir da Serra do Sudeste

Encruzilhada do Sul diversifica produção agropecuária com inserção de frutas

VInhedo da Casa Valduga em Encruzilhada do SUl

Por
Itamar Pelizzaro

Reconhecida pela qualidade de uma série de produtos premium, a Serra do Sudeste tem aproveitado as características naturais do território gaúcho para concentrar empreendimentos que miram produtos tradicionais e nichos de alto valor. No município de Encruzilhada do Sul, despontam atividades que, até há pouco tempo, eram tidas como pouco prováveis, como a produção de oliveiras e agroindústrias de azeite de oliva premiadas internacionalmente. O terroir local tem sido explorado especialmente por vinícolas. Ainda, a economia local se fortalece com o cultivo de frutíferas, florestas plantadas, commodities como a soja e a pecuária de corte.

O setor vinícola percebeu, há duas décadas, o potencial nas terras de relevo suavemente ondulado do Bioma Pampa, com altitudes medianas, temperaturas médias mais baixas e menor incidência de chuva do que na Serra Gaúcha. A produção de uvas abrange cerca de 30 propriedades, sendo metade delas gerenciadas de forma empresarial. São quase 500 hectares e produção estimada de 3 mil toneladas de frutas. O volume é pequeno se comparado a outros municípios serranos, mas com peculiaridades que atraíram empresas como o Grupo Famiglia Valduga, que passou a cultivar uvas em Encruzilhada do Sul em 2001 e atualmente soma 112 hectares de parreirais, principalmente Chardonnay e Pinot Noir, variedades que compõem espumantes reconhecidos em concursos mundo afora.

“O terroir na Serra do Sudeste favoreceu o plantio da uva, com dias quentes e noites amenas, mas a grande relação, talvez a mais importante do projeto antes das uvas, seja a relação com o povo encruzilhadense”, diz o enólogo e diretor do grupo, Eduardo Valduga. “Temos uma relação de afeto e compromisso em desenvolver a região e, como consequência, o setor vitícola, focando no plantio, treinamento e contratação de equipe à medida que vão passando os anos”, afirma. O município é um dos quatro polos vitivinícolas gaúchos, junto com as regiões da Campanha, Serra e Campos de Cima da Serra.

O potencial da fruticultura se materializa em diferentes culturas, como amora, mirtilo, maçã, romã, pitaya e melancia, gerando renda a empresas e famílias, com produção ambientada pelas condições naturais, com amplitudes térmicas que contribuem para sua qualidade. Uma das lavouras que mais chamam a atenção é a produção de olivas, cujos pomares emolduram a paisagem e cravaram em Encruzilhada do Sul a maior área plantada no RS. Segundo a prefeitura, já são 1,2 mil hectares de oliveiras, distribuídos em dezenas de propriedades, e 12 rótulos de azeite de oliva. O município conta com várias marcas premiadas internacionalmente e dispõe de um lagar (indústria que extrai azeite de oliva) comunitário, instalado na sede da Associação dos Fruticultores de Encruzilhada do Sul (Afrutes).

As árvores que produzem azeitonas estão inseridas em uma tradição florestal diversificada, com cerca de 80 mil hectares de eucaliptos, acácia-negra e pinus, colocando o município no topo do ranking gaúcho, abrigando empresas madeireiras e de móveis, exportando madeira e fornecendo fibras para a celulose. “A Serra do Sudeste tem clima e solo favorável aos cultivos florestais e facilidade logística viária”, atesta o presidente da Associação Gaúcha de Empresas Florestais (Ageflor), Daniel Chies.

Outra espécie arbórea que desfruta as propriedades edafoclimáticas regionais é a noz-pecã, com maior predominância em Cachoeira do Sul, distante 125 quilômetros. Encruzilhada do Sul tem em torno de 400 hectares plantados de nogueiras e produtores motivados pelo aumento do consumo e pela valorização da fruta, o que contribui para a diversificação de renda na propriedade rural. “Nosso município tem, por natureza, uma produção diversificada”, afirma o secretário de Agropecuária de Encruzilhada, Leandro Noronha de Freitas. O secretário destaca que a cadeia de fruticultura está bem organizada, com o funcionamento da Afrutes.

A evolução do agro para novas culturas deixa espaço também para culturas tradicionais. A prefeitura aponta que Encruzilhada do Sul é “o novo eldorado dos plantadores de soja no Rio Grande do Sul”, pela extensão de terras agricultáveis e perspectivas de boa produtividade. “Chegamos recentemente a 54 mil hectares de soja”, diz o secretário Freitas. A Emater/RS-Ascar informa que, há 15 anos, o município tinha cerca de 4 mil hectares plantados. O crescimento espelha o avanço da oleaginosa pelos campos do Pampa. A agricultura empresarial tem ainda plantações de arroz, trigo e milho.

A renovação do campo convive com as práticas pecuárias. “Estamos falando em 104 mil cabeças de gado, sendo 60 mil de ovelhas”, detalha Freitas. Encruzilhada do Sul já foi conhecida como Terra da Ovelha e tem a maior produção de lã da região. “Nesta área, o município inaugurou um frigorífico em parceria da prefeitura com sindicatos e indústria local para termos produção e industrialização de carne bovina, ovina e de porco”, revela o secretário.

Com tendência a ampliar a área de fruticultura, tendo plantios de romã e morango, Encruzilhada do Sul espreita novas frentes de renda com o fortalecimento do turismo, setor reconhecido pela geração de empregos e renda e apontado como solução para o desenvolvimento socioeconômico de regiões. “A gente recebeu a grata notícia de empreendimentos em enoturismo e olivoturismo, e a demanda por carne com o terroir de Encruzilhada fez com que a gente olhasse para o turismo como o próximo passo para o futuro desta terra de oportunidades”, finaliza o secretário.

Um projeto de vida chamado romã wonderful

Mateus Chiarini conheceu variedade wonderful nos Estados Unidos | Foto: Mateus Chiarini / Divulgação / CP

Fruta encontrada em pomares norte-americanos e israelenses conquistou o agrônomo Mateus Chiarini quando ainda era estudante, levando-o a estudar a fruta e investir em Encruzilhada do Sul, onde implantou um pomar de 15 hectares

Foi durante uma viagem de intercâmbio de estágio aos Estados Unidos, em 2013, que o então estudante de Agronomia Mateus Chiarini conheceu a romã wonderful. Acostumado a produzir uvas com os pais na Serra Gaúcha, Chiarini ficou encantado com a beleza e o sabor da fruta que veio para mudar seu endereço e, agora, moldar seu futuro.

Depois do estágio no exterior, a romã wonderful novamente cruzou seu caminho durante uma aula de fruticultura, na Universidade de Caxias do Sul (UCS). O professor contou ter visitado pomares em uma viagem de estudos a Israel e mencionou que uma empresa estava trazendo a variedade para o Brasil. A informação “deu um estalo” na mente do estudante. “Vou fazer esse negócio”, pensou.

Chiarini começou a pesquisar e buscar mais informações sobre a romã wonderful, uma pequena planta, de tradição milenar com origem no extremo oriental mediterrânico e Himalaia. A espécie encanta com flores vermelho-alaranjadas e frutos recheados com grandes sementes, de sabor ácido e doce. Ele procurou saber mais sobre possibilidades agronômicas e de negócios. Contatou a empresa israelense e investidores do Paraná que estavam importando material genético para o Brasil. Chiarini tentou entender o negócio em todos os detalhes. Viajou a Israel para conhecer pomares, modelos de produção e produtos que podem ser feitos com a romã. “Descobri o tamanho e o potencial do mercado. É uma das frutas com maior apelo à saúde, muito rica em antioxidantes. Aproveita-se toda a fruta”, conta. Em contato com produtores paranaenses, Chiarini buscou ampliar conhecimentos. “Eu estava obcecado pelo negócio”, recorda.

Ele conseguiu as primeiras mudas para implantar o pomar na terra natal, Flores da Cunha. “Fiz a primeira safra, mas, conversando com o pessoal de Israel, falaram que era para ir para Encruzilhada do Sul, que tem melhor condição de clima, com dias quentes e noites frias, e a planta gosta muito do tipo de solo que tem lá”, explica.

Chiarini começou a pesquisar sobre o município da Serra do Sudeste. Em 2018, adversidades climáticas conspiraram para sua transferência. “Naquele ano deu uma geada severa e acabou matando o pomar em Flores da Cunha”, lembra. Impulsionado pelas circunstâncias, Chiarini adquiriu um lote de 12 hectares. “Hoje são 15 hectares, sendo 7,5 hectares em produção e 7,5 hectares que vão produzir em 2024”, diz.

O começo foi desafiador em Encruzilhada do Sul. Além de condições novas de solo e clima, Chiarini enfrentou dois anos de estiagem e calor, com difícil manejo da água, que em outra temporada caiu em excesso, causando perdas de flores e frutos.

Apesar dos revezes iniciais, a romã wonderful se adaptou bem às condições locais, com algumas particularidades sendo harmonizadas e ajustadas. “Neste período inicial ainda estamos entendendo e aprendendo para conseguir otimizar e aumentar a produtividade”, afirma.

Romã wonderful | Foto: Paulo Santos / Divulgação / CP

A produção da fruta demora de três a quatro anos, variando de acordo com manejo, conhecimento do comportamento da espécie e tratos culturais. “É uma planta bem técnica. Tem a questão de nutrição equilibrada. Utilizo fertirrigação com sistema de irrigação por gotejamento, adubação semanal e mensal, de acordo com estágio da planta, tratamento fúngico e manejo integrado de pragas. É tudo muito bem planejado e organizado para ter o melhor fruto possível”, descreve. A produtividade por hectare gira em torno de 15 toneladas, na fase adulta da planta, entre o quinto e sexto ano.

Chiarini fez da romã wonderful seu projeto de vida, pelo desafio do cultivo e pela boa aceitação da fruta no mercado. O agrônomo prestava consultorias, mas deixou a atividade para ter o foco todo na fruta e na expansão da produção, com importação de material genético de Israel para plantar em solo gaúcho. Ele empreendeu e criou a Granato Brasil, empresa que nasceu para comercializar romãs e frutas finas da região. “Às vezes falo que estou pagando o preço, porque é algo novo no Brasil”, afirma.

Trufa inédita abastece nicho gastronômico

Marcelo Sulzbacher foi o descobridor da trufa Sapucay | Foto: Divulgação / Marcelo Brum / CP

Fungo comestível encontrado ao redor de raízes da nogueira pecã foi descoberto pelo pesquisador Marcelo Sulzbacher,em 2016,e deu origem à empresa Simbiose Tartufo, que comercializa o produto e mudas para replicação

Uma pesquisa acadêmica em meio a pomares de noz-pecã em Cachoeira do Sul levou Marcelo Sulzbacher a descobrir, após meses de escavações ao redor de árvores, uma nova variedade de trufas, posteriormente batizada de Sapucay. As trufas são fungos comestíveis e, até a descoberta de Sulzbacher, em 2016, sua presença em terras brasileiras era inédita. O achado colocou o hoje pesquisador e especialista no estudo de fungos comestíveis na rota do empreendedorismo. Ele criou uma empresa que fornece cursos voltados à produção de trufas e gastronomia e mudas trufadas - as raízes são inoculadas com trufas.

Sulzbacher participava de uma pesquisa de um projeto de pós-doutorado do Departamento de Solos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) quando encontrou as primeiras trufas, após meses de buscas. Acredita-se que os fungos comestíveis chegaram ao Brasil nas raízes de mudas de nogueiras e outras espécies norte-americanas e europeias.

Depois de identificar a primeira trufa brasileira e intensificar a procura pelo sul do Brasil, Sulzbacher localizou outros produtores que também haviam encontrado a iguaria. A nova realidade impulsionou a criação da empresa Simbiose Tartufo, em parceria com Marcio Frantz, de Santa Cruz do Sul.

A Simbiose Tartufo oferece mudas trufadas ao mercado, criadas artesanalmente em um processo de inoculação. “A gente coloca parte da trufa em contato com as raízes da planta e ela fica se desenvolvendo”, explica Sulzbacher. Com formação em ciências biológicas, mestrado em solos e doutorado em biologia de fungos, o empreendedor também atua em workshops, cursos com a temática de cogumelos comestíveis silvestres e consultoria para a condução de pomares.

A descoberta da trufa Sapucay movimentou caçadores de fungos pelo país. Conforme o pesquisador, há outras espécies sendo descobertas na Serra da Mantiqueira, em São Paulo, como a Bianchetto, de origem italiana, também bem adaptada à Região Sul. “A Sapucay é uma das que estão mais aclimatadas e desenvolvidas para o Sul, região serrana de Santa Catarina e tem registro no Paraná”, diz Sulzbacher.

Trufa Sapucay colhida no Rio Grande do Sul | Foto: Divulgação / Marcelo Brum / CP

A trufa tem colheita anual, de outubro a março. Os empreendedores gaúchos comercializam mais de 50 quilos anualmente, para pessoas físicas e restaurantes. É um produto para poucos. O quilo de trufa custa mais de R$ 20 mil. “É um produto nichado, bastante diferente, de custo alto, e utilizado por pessoas que já sabem trabalhar com trufas, geralmente chefs”, explica.
Na venda de mudas trufadas, a Simbiose Tartufo oferece consultoria para o desenvolvimento de pomares, o que exige paciência e perseverança. “A trufa começa a se desenvolver depois de um período de cinco a seis anos. É um trabalho técnico que exige dedicação e conhecimento do proprietário. Muito disso é relacionado à agricultura orgânica, porque a trufa é um organismo, então não pode entrar com muito pesticida, herbicida na área, porque vai afetar o fungo”, ensina Sulzbacher.

Incentivos fiscais impulsionaram atividades

Benefícios concedidos ainda na década de 1970 trouxeram para Encruzilhada do Sul os primeiros empreendedores na área de fruticultura, em especial as vinícolas que começaram a se instalar a partir de 1990

Os primeiros experimentos com fruticultura em Encruzilhada do Sul ocorreram na década de 1970, período em que havia incentivos fiscais do governo federal para implantação de florestas plantadas. Na época, conforme o técnico agrícola Marco Antônio Moraes dos Santos, extensionista da Emater/RS-Ascar, algumas pessoas perceberam o potencial local e implantaram pequenos pomares de maçã e, depois, pêssego, mas sem evolução das culturas. No fim dos anos 1990, estudiosos como o professor Idalêncio Angheben voltaram os olhos para a região e identificaram o potencial de solo e clima para a viticultura, o que atraiu empresas como Chandon, Casa Valduga e Lídio Carraro, entre outras, a implantarem seus vinhedos no município.

“Os resultados logo vieram, porque eram pessoas com conhecimento na atividade e tecnologia. Do ano 2000 para cá, a fruticultura veio num crescente em Encruzilhada do Sul”, conta Santos. Os empreendedores da uva e de outras culturas aproveitam condições naturais favoráveis, com inverno bem caracterizado que propicia dormência adequada às plantas. “Temos um somatório de 400 a 450 horas de frio por ano, que é importante para a fruticultura, com temperaturas abaixo de 7 C° ”, destaca o extensionista da Emater. As amplitudes térmicas, dias mais quentes e noites frias, também favorecem o desenvolvimento dos cultivos. “Isso é muito importante na fruticultura, porque faz com que nossas frutas tenham concentração de açúcares, o que vai dar mais sabor às frutas de consumo in natura e, nas uvas, mais qualidade”, diz Santos.

Esse conjunto de fatores também é acrescido pelo equilíbrio dos solos, que são bem drenados e de razoável fertilidade natural. “O produtor consegue adequar a fertilidade conforme precisa. Na Serra, por exemplo, temos solos com excesso de matéria orgânica, fósforo e potássio, o que não é bom para a maioria das culturas”, descreve Santos. Outro agente importante é a mão humana, que diversificou a produção, atualmente composta por pomares de oliveiras, noz-pecã, amora, mirtilos, romã e outras espécies.

O processamento da uva colhida no município ainda é feito na Serra Gaúcha, mas já há iniciativas locais para a abertura de novas cantinas. “Em breve teremos vinhos e espumantes processados aqui, em empreendimentos importantes e bem planejados e, quem dera, Encruzilhada do Sul será uma nova rota turística”, projeta o extensionista. “Isso ainda está em construção, falta muito para estarmos preparados com infraestrutura urbana e logística, mas, com certeza, isso vai dar bons frutos”, completa.

Mostra de azeites

A qualidade e exclusividade de alguns produtos motivaram empreendedores da região a organizar a 1ª Mostra de Azeites & Vinhos da Serra do Sudeste. O evento será na quinta-feira, 18 de abril, em Santa Cruz do Sul, e oferecerá degustação de mais de 60 rótulos de azeites de oliva, vinhos e espumantes de 16 empresas expositoras, com destaque ainda para trufas e outros produtos.

“O objetivo é justamente apresentar a qualidade e o potencial da produção de uvas e olivas na Serra do Sudeste, buscando a dianteira de qualidade em produção. Mais do que isso, queremos mostrar que nesta mesma região há características muito diferentes entre si, sem perder o fator qualidade”, define o advogado Diogo Durigon, sócio da vinícola Pedras da Quinta, um dos promotores do evento. A ideia dos organizadores é fazer outras edições, de forma itinerante pelo Estado.

A organização destaca que a Serra do Sudeste tem atraído investidores pela aptidão agrícola gerada por solos profundos e arenosos, altitudes elevadas, invernos rigorosos, amplitude térmica notável ao longo do ano, insolação generosa e áreas de cultivo significativas. Mais informações sobre a mostra podem ser obtidas pelo WhatsApp (51) 99912-1112.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895