O trabalho invisível

O trabalho invisível

As tarefas diárias de cuidar de outras pessoas são essenciais para a sobrevivência humana e para o funcionamento da economia

Por
Jessica Hübler

Não é apenas no Dia da Mulher que precisamos refletir sobre desigualdades de gênero, mas a data faz lembrar que ainda há muito caminho pela frente. No caso do mercado de trabalho, há questões que vêm sendo debatidas historicamente, em várias partes do mundo, como a diferença salarial e a ocupação dos postos formais de emprego. Mas também há o trabalho, invisível e desvalorizado, feito dentro das casas. Atividades que ficaram ainda mais pesadas durante a pandemia.

O relatório “Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade”, da Oxfam Brasil, organização que atua mundialmente no combate à desigualdade e à pobreza, ainda com dados anteriores à pandemia, aponta que a desigualdade econômica está fora de controle. Esse grande fosso, conforme o documento, está baseado “em um sistema econômico sexista e falho, que valoriza mais a riqueza de um grupo de poucos privilegiados, na sua maioria homens, do que bilhões de horas dedicadas ao trabalho mais essencial, o do cuidado não remunerado e mal pago, prestado principalmente por mulheres e meninas em todo o mundo”. A pesquisa apresenta um cálculo monetário global do trabalho de cuidado não remunerado prestado por mulheres a partir da faixa etária de 15 anos: 10,8 trilhões de dólares por ano. O valor é três vezes maior do que o estimado para todo o setor de tecnologia do mundo. A diretora executiva da Oxfam Brasil, Katia Maia, explica que o objetivo do estudo foi dar visibilidade a uma situação global que não recebe a devida atenção. “A desvalorização do trabalho do cuidado é tamanha que ele não é nem considerado trabalho, mas sim uma obrigação que faz parte do dia a dia, claro, das mulheres.”

As tarefas diárias de cuidar de outras pessoas, cozinhar, limpar, buscar água e lenha são essenciais para o bem-estar de sociedades, comunidades e para o funcionamento da economia. “A pesada e desigual responsabilidade por esse trabalho de cuidado perpetua as desigualdades de gênero e econômica”, diz a Oxfam Brasil. A organização reforça que governos ao redor do mundo deveriam investir em “sistemas nacionais de cuidado para equacionar a questão da responsabilidade desproporcional assumida pelo trabalho de mulheres e meninas, adotar um sistema de tributação progressiva, com taxas sobre riquezas, e legislar em favor de quem cuida”. O estudo diz que uma tributação adicional de 0,5% sobre a riqueza da parcela 1% mais rica do mundo, por 10 anos, equivaleria aos investimentos necessários para criar 117 milhões de empregos em setores como educação, saúde e assistência a idosos, eliminando déficits na prestação de cuidados.

A professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e coordenadora do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Economia Feminista (Necofem), Daniela Kühn, destaca que o relatório deu muita visibilidade para essa discussão. O debate sobre a atividade de cuidado, que boa parte das vezes não é remunerada, envolve o trabalho doméstico e reprodutivo. Por trabalho reprodutivo entende-se o esforço necessário para a reprodução humana e os cuidados para o sustento da vida, como alimentação, higiene, educação, relações sociais, apoio afetivo, etc. “Esse tema tem emergido como agenda de pesquisa em vários lugares do mundo, inclusive os Objetivos do Milênio trazem a questão da igualdade. Então, isso está em uma agenda política transnacional, em alguma medida, através da Organização das Nações Unidas (ONU)”, frisa. Segundo ela, dentro da economista feminista existem vários grupos, como em toda economia, e alguns olhares distintos. “Mas, essencialmente, temos essa intenção de destacar as diferenças de gênero. Temos algumas pesquisadoras no Brasil que tratam dessas diferenças, diferenças de salário, e, muito recentemente, se fala do uso do tempo e em uma chamada economia do cuidado, ou care economy, que vem sendo amplamente estudada nos Estados Unidos e em alguns países asiáticos.”

É no âmbito da economia do cuidado (care economy) que está inserido o trabalho de cuidar. “Dada a estrutura social, há um processo quase de violência em relação a essa impossibilidade de tomada de decisão das mulheres, elas são obrigadas a executar esse trabalho”, afirma. Conforme Daniela, toda essa questão está relacionada à invisibilidade desse tipo de trabalho e da naturalização desses processos. A mulher tem que cuidar dos pais, dos filhos, de tudo o que ocorre dentro de casa. “Isso é algo positivo para o mercado se pensarmos nessa economia mais ortodoxa, pois o que está dentro de casa não é colocado no mercado, portanto, é um trabalho privado que em tese não teria preço, mas, ao mesmo tempo, é fundamental para o processo de reprodução social, pois o homem só sai para trabalhar porque a mulher está cuidando”, ressalta a coordenadora do Necofem. “Isso não é um trabalho que é de graça, isso tem custo, tem tempo de vida dessas mulheres.”

Sobre a realidade do trabalho não remunerado de cuidado, Daniela comenta o exercício de precificação feito pelo relatório da Oxfam. “É muito trabalho que não está contabilizado. Claro que é uma modelagem, isso não existe de fato, mas é interessante pensar que uma parte da riqueza (gerada pela atividade das mulheres) influencia na produção e esse trabalho não é nem contabilizado, mas sim invisibilizado e naturalizado, como se fosse algo compulsório, ‘é assim mesmo e pronto’.”

Segundo Katia, o objetivo principal do relatório foi realmente dar visibilidade a isso, principalmente utilizando os valores estimados para os custos desse trabalho. “Fizemos o esforço de trazer alguns números para poder mostrar que essas tarefas têm importância econômica, pois vivemos em uma sociedade em que o valor humano está muito vinculado à questão econômica e não à humanidade, então fizemos esse esforço de monetizar o trabalho do cuidado”, explica.

A diretora executiva da Oxfam ressalta que não há nada que determine que as mulheres são as responsáveis pelo cuidado, “a não ser a construção patriarcal machista de uma sociedade, uma construção cultural que definiu que as mulheres são as que têm que cuidar, não é algo genético ou biológico. O cuidado deveria ser enxergado como uma responsabilidade dos seres humanos, de todas e todos nós.”

Desigualdades pelo mundo

A estrutura social de grande parte do mundo empurra as mulheres a executarem o trabalho de cuidado dos pais, dos filhos e do que ocorre dentro de casa como se fosse algo natural à mulher. Foto: JoeyPhoto / Shutterstock / CP

Conforme o relatório da Oxfam Brasil, no mundo todo, os homens detêm 50% a mais de riqueza do que as mulheres. Eles também ocupam maior número posições de poder político e econômico: apenas 18% de todos os ministros e 24% de todos os parlamentares do mundo são mulheres e estima-se que elas ocupem apenas 34% de todos os cargos de direção em países para os quais dados estão disponíveis.

No Brasil, um levantamento divulgado quinta-feira pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) também revela dificuldades que as mulheres enfrentam para inserção no mercado de trabalho. Conforme a pesquisa, 54,5% das mulheres com 15 anos ou mais integravam a força de trabalho (composta por todas as pessoas que estão empregadas ou procurando emprego) no Brasil em 2019. Entre os homens, esse percentual foi 73,7%.

Os dados fazem parte da segunda edição do estudo “Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil”. Na faixa etária entre 25 e 49 anos, a presença de crianças com até 3 anos de idade vivendo no domicílio se mostra como fator relevante. O nível de ocupação entre as mulheres que têm filhos dessa idade é de 54,6%, abaixo dos 67,2% daquelas que não têm. A situação é oposta entre os homens. Aqueles que vivem com crianças de até 3 anos registraram nível de ocupação de 89,2%, superior aos 83,4% dos que não têm filhos nessa idade.

Uma dificuldade adicional, segundo o levantamento, para inserção no mercado de trabalho foi observada a partir de um recorte racial. As mulheres pretas ou pardas com crianças de até 3 anos apresentaram os menores níveis de ocupação, inferiores a 50%, enquanto as brancas registraram um percentual de 62,6%.
No Brasil poderíamos falar de uma “feminização da pobreza”, segundo a professor Daniela Kühn. “A mulher fica sozinha com os filhos, o pai não se responsabiliza. Essa mulher muitas vezes não tem condições de inserção no mercado de trabalho ou fica na informalidade, fica muito vulnerável ou mais vulnerável do que os homens nessa condição social”, diz. Se em uma entrevista de emprego, ou mesmo durante a jornada de trabalho, exemplifica Daniela, um homem olha a foto do filho, ele é definido como “um pai dedicado, amoroso, lembrando do filho”. No caso da mulher que observa a foto do filho, as pessoas concluem que “ela está trabalhando, mas está pensando no filho, aquilo está atrapalhando o serviço dela em alguma medida”. A sociedade enxerga de formas diferentes até mesmo o vínculo com os filhos e isso resulta em prejuízos para as mulheres. “Se uma mulher vai a uma entrevista de emprego e o empregador pergunta: ‘Tens filho? E se ele ficar doente, o que tu vais fazer?’. Obviamente a mulher vai responder que precisa cuidar do filho, mas dificilmente as mesmas perguntas são feitas a homens com filhos”, assinala. Ou então, se a mulher não tem filho, mas está em idade reprodutiva, podem julgar a situação e não contratá-la porque “vai querer ter filho, vai sair de licença-maternidade e será um custo para a empresa”. “A sociedade, a estrutura que temos de assalariamento, penaliza muito a mulher”, pontua.

Para que seja possível caminhar em nível global rumo a uma economia mais justa e equilibrada, tanto para homens quanto para mulheres, os desafios são muitos. No Brasil, por exemplo, Daniela comenta que talvez o primeiro passo tenha sido dado alguns anos atrás, quando existiam políticas de titulação de terra para as mulheres e também com o Programa Bolsa Família, que direciona os recursos para a pessoa responsável pelas crianças, que em praticamente todos os casos são as mulheres. “Existe um debate dentro dessas políticas públicas que questiona em que medida isso não reforça o papel da mulher nesse cuidado. Porém, dada a realidade de que é ela quem exerce essas tarefas e não é remunerada, isso seria uma compensação e, em alguma medida, ela conseguiria sobreviver dando atenção aos filhos e realizando aquele trabalho que não é reconhecido nem remunerado, mas pelo menos não precisa ir para o mercado de trabalho informal e se submeter a situação muito precária de trabalho.” Para a professora, a política pública precisa reconhecer esse trabalho e essas diferenças, direcionando os programas para a mulher mesmo.

Da mesma forma, também é possível direcionar os esforços para políticas de saúde pública e de educação pública. “Uma mãe que precisa trabalhar, precisa estar tranquila sabendo onde estão os filhos pequenos, em boas creches, e os filhos maiores em escolas de qualidade, estudando, mas não é o que temos.” Nesse sentido, se a mulher precisa da renda ou simplesmente se essa é a escolha dela, é fundamental que tenha acesso aos serviços públicos de qualidade. “Hoje existem muitas mulheres que gostariam de trabalhar e que de fato não podem, pois têm dois ou três filhos, e como ela vai fazer se não há creche ou escola? Vai pagar alguém? Se não tem acesso ao serviço público, não tem condições de arcar com os custos de instituições privadas de ensino, então ela fica em casa porque não tem salário e voltamos aos cuidados não remunerados e não valorizados”, explica.

Os impactos da pandemia

Quando se junta a questão de gênero com a racial, vê-se que as mulheres negras, especialmente nas comunidades, estão enfrentando o maior desafio na pandemia, muitas vezes não tendo o que dar de comer para seus filhos, mas não podendo sair para trabalhar porque não têm com quem deixar as crianças. Foto: Agarianna76 / Shutterstock / CP

A sobrecarga na rotina das mulheres ficou ainda mais exposta durante a pandemia, não só pelos fatores principais, como perda de renda e desemprego, mas também nas situações em que essas mulheres precisaram sair dos espaços de emprego para trabalhar em casa e também dividir o tempo com as atividades de ensino remoto dos filhos, por exemplo. Aquelas que não perderam o emprego, comenta Daniela, precisam trabalhar e ainda cuidar da casa, dos filhos e acabaram misturando esses ambientes. “O trabalho foi para dentro de casa e isso desgasta muito, até emocionalmente. Não há horas de trabalho definidas, muitas vezes durante a madrugada, enquanto as crianças estão dormindo, aquela mulher está colocando as atividades laborais em dia, portanto, há sobrecarga. Se a jornada da mulher já era dupla ou tripla, agora ficou quantas vezes multiplicada?”, questiona.

Um dos primeiros passos para reverter o contexto atual, segundo a professora, é tornar visível e valorizado o trabalho do cuidado. “Isso precisa ter relação com o estado, com os governos. A própria conversa dentro da sociedade precisa ser feita, porque há um histórico, não só no Brasil, mas também em outros países”, destaca. A caminhada deve ser por meio da implementação de políticas públicas, “quase um empurrão nesse processo”, mas também com um trabalho “delicado e mais longo” de conscientização e mudança da própria estrutura social. “No sentido de reconhecer esse trabalho como um trabalho fundamental para a geração de todas as outras coisas que temos, de todas as outras riquezas, que é o de cuidar das pessoas”, ressalta.

Conforme a diretora executiva da Oxfam Brasil, Katia Maia, a pandemia mostrou ainda mais a importância e a necessidade dos cuidados. “E essa sobrecarga do cuidado, em um momento de crise sanitária e saúde pública como estamos vivendo hoje, recai fortemente sobre as mulheres”, assinala. Segundo ela, os índices que estão sendo divulgados em função das consequências econômicas e sociais da pandemia no Brasil e no mundo demonstram que as mais afetadas são as mulheres. “Porque elas têm que ficar em casa para cuidar, elas têm que diminuir horas de trabalho, cuidar de quem tá doente em casa. A pandemia dá certa visibilidade sobre a importância do papel da mulher, mas ainda assim há uma invisibilidade dessa relevância, como se fosse dado que essa função é das mulheres”, diz.

Além disso, Katia também ressalta a importância do recorte racial com relação às consequências da pandemia. “Quando a pandemia escancara as desigualdades, ela escancara fortemente a partir da questão de gênero, tanto pelo lado do cuidado, como pelo fato de o trabalho da mulher ser menos valorizado do que o do homem, mas também há a questão racial”, ressalta. Quando se junta a questão de gênero com a racial, a situação é ainda mais complicada. “Porque são as mulheres negras, especialmente nas comunidades, que estão enfrentando o maior desafio, de não ter o que dar para comer para seus filhos, não ter como ir trabalhar porque não tem com quem deixar os filhos, então, esse momento doloroso que estamos vivendo está sendo um momento com um custo muito grande para as mulheres e para as mulheres negras em especial”, destaca.

Apesar de todas as adversidades, Katia reforça que as mulheres são muito fortes. “O que as mulheres enfrentam para a sustentação de uma família, para conseguir garantir a sobrevivência, a energia dessas mulheres e as diferentes formas de luta, acho que isso é algo que a gente precisa trazer à tona”, comenta. Katia ainda complementa que é preciso falar sobre isso não para dizer “então está bom, não precisamos fazer nada”, mas sim para tornar visível a potência que são as mulheres. “E a potência de transformação que as mulheres têm, da capacidade de enfrentar as crises e como é injusto a gente ter uma sociedade em que mais da metade da população é formada por mulheres com tanta potência e essa metade da população ser absolutamente ignorada”, pontua.

A força da mulher, afirma Katia, começa com o cuidado que está relacionado principalmente à sobrevivência da espécie humana. “Ou seja, se não tiver o cuidado, como conseguimos sobreviver como seres humanos?”, questiona. “As mulheres estão conseguindo sobreviver e dar sobrevivência para suas famílias, elas estão conseguindo tudo isso apesar de não terem os espaços políticos como os demais, não fazerem parte do grande poder econômico, não serem representadas, ou seja, apesar de toda a discriminação que é feita de diferentes ângulos, essas mulheres ainda conseguem sobreviver”, assinala a diretora executiva.

A professora Daniela Kühn ainda reforça que é preciso continuar. “A vida das mulheres é lutar e abrir os seus espaços, estamos fazendo isso desde sempre e continuaremos fazendo. É preciso buscar o reconhecimento e a valorização desses trabalhos e de todos os outros, que são fundamentais.”

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895