ONU: chegou a "era da ebulição global"

ONU: chegou a "era da ebulição global"

Julho será "certamente o mês mais quente já registrado"

Por
Paula Maia, Veridiana Dalla Vecchia e Alexandre Aguiar*

Após três semanas de ondas de calor em várias partes do mundo, a Organização Meteorológica Mundial (OMM) das Nações Unidas e o observatório europeu Copernicus acreditam ter dados suficientes para anunciar que julho será "certamente o mês mais quente já registrado". Se confirmado, o recorde deste mês quebrará o anterior, estabelecido em julho de 2019. Este calor é provavelmente "sem precedentes" em milhares de anos, disseram ambas as instituições. “A era do aquecimento global acabou, agora é o momento da era da ebulição global”, disse o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres. “A mudança climática está aqui. É assustador. E isso é só o começo”, enfatizou.

“Os extremos climáticos sofridos por milhões de pessoas em julho nada mais são do que a dura realidade da mudança climática e uma prévia do que o futuro nos reserva", destacou o secretário-geral da OMM, Petteri Taalas, nesta quinta-feira.

Os efeitos do aquecimento devido à atividade humana foram concretos nas últimas semanas: incêndios na Grécia e no Canadá, temperaturas extremas no sul da Europa, norte da África, Estados Unidos e parte da China, que também acaba de sofrer os estragos do tufão Doksuri.

Além das medições modernas, os dados paleoclimatológicos, baseados nos anéis de crescimento dos troncos das árvores e núcleos de gelo, permitem apontar que as temperaturas atuais “são inéditas em nossa história, levando em conta os últimos milhares de anos”, disse Carlo Buontempo, diretor do Serviço de Clima da Copernicus. E inclusive “por um período muito mais longo, provavelmente da ordem de 120 mil anos”, acrescentou ele em entrevista coletiva.

Na terça-feira, a rede científica World Weather Attribution (WWA) concluiu que as recentes ondas de calor na Europa e nos Estados Unidos teriam sido “quase impossíveis” sem o efeito das emissões de gases de efeito estufa de origem humana. Em entrevista à AFP em Nairóbi, Jim Skea, eleito quarta-feira presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas, afirmou que é fundamental oferecer à humanidade ferramentas para enfrentar a mudança climática e não apenas “mensagens catastróficas que podem criar um sentimento de terror existencial”. “Temos que insistir que os seres humanos podem escolher e decidir seu próprio futuro”, afirmou o britânico Skea.

O cenário "não é passageiro"

A temperatura do planeta já aumentou 1,2ºC em relação à era pré-industrial. Alguns tentam desenvolver medidas de emergência para que este aumento não ultrapasse os 1,5ºC, no máximo 2ºC, o limite para o ano 2100 estipulado pelo Acordo de Paris de 2015. “Estamos presenciando eventos climáticos extremos, como ondas de calor, chuvas intensas, ressacas, incêndios florestais e quebras de safras. Essas situações têm se tornado mais frequentes e intensas, o que estabelece novos recordes em diferentes aspectos”, declarou ao Correio do Povo o climatologista Carlos Nobre, considerado um dos maiores especialistas no país na área de mudanças ambientais globais.

“Estamos vivendo um planeta que está respondendo ao aquecimento global”, diz o cientista, que preside o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) e é professor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Nobre, que recebeu um Prêmio Nobel compartilhado com a equipe do IPCC e um título de membro estrangeiro da Royal Society, a academia científica mais antiga do mundo, ressalta que é essencial compreender que esse cenário não é passageiro. Segundo ele, o panorama se tornará cada vez mais severo, com eventos rigorosos e extremos, o que torna crucial um planejamento, uma preparação para conviver com a contínua presença de eventos climáticos extremos. 

O climatologista ressalta que esses eventos são amplamente previsíveis, o que facilita a tomada de decisões e o planejamento de políticas públicas para aumentar a resiliência da população. Nobre cita as mais de 60 mil mortes, ocorridas na Europa durante o verão de 2022, quando ondas de calor bateram recordes, para declarar a necessidade de implementação de medidas de adaptação com ações coordenadas, tanto em nível global quanto local, para proteger a população e os ecossistemas vulneráveis diante dessa nova realidade climática.

O professor ainda lembra que o Brasil também tem enfrentado eventos climáticos significativos, com recordes de chuvas intensas no sul da Bahia a partir de dezembro de 2021, além de três anos consecutivos de secas, na mesma região, associadas ao fenômeno La Niña desde 2020. Nobre ressalta que atualmente o El Niño contribuirá para as temperaturas mais elevadas. 

Os alertas relacionados às mudanças climáticas fazem parte da política mundial há décadas. Ainda assim, a temperatura segue em aumento, bem como a emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. Os compromissos e preocupações evidenciados em conferências e encontros entre autoridades mundial frequentemente terminam em fracasso ou em discursos dificilmente implementados.

Sem resultados no G20

A reunião dos ministros de Energia do G20, realizada na Índia, no dia 22, terminou sem um plano de ação para a redução progressiva do uso de combustíveis fósseis como petróleo, gás e carvão. A declaração final do encontro das principais potências industrializadas e emergentes sequer mencionou o carvão. 

Um dos grandes responsáveis pelo efeito estufa, este combustível fóssil, no entanto, é uma das principais fontes de energia em muitas economias emergentes, como a Índia, o país mais populoso do mundo, e a China, a segunda maior economia do mundo. Em maio, os líderes do G7 das economias mais avançadas resolveram, em Hiroshima, no Japão, “acelerar a redução gradual” da utilização destas fontes de energia.

A produção de combustíveis fósseis deveria reduzir todo ano “em cerca de 6%, para alcançar uma redução global do nosso uso de 40% até 2030", segundo Catherine Abreu, da ONG Destination Zero. No entanto, na quinta-feira, a Agência Internacional de Energia (AIE) indicou que o consumo mundial de carvão atingiu um "máximo histórico" em 2022 e pode voltar a atingir um nível recorde este ano.

Cooperação China-EUA

O combate as mudanças climáticas requer uma “nova definição de cooperação” entre China e Estados Unidos, disse no dia 18, em Pequim, o enviado da Casa Branca para o clima, John Kerry. O representante americano se reuniu com a principal autoridade da política externa chinesa, Wang Yi, em visita para retomar os contatos diplomáticos entre os dois países mais poluentes do planeta. “O clima, vocês sabem, é um problema mundial, não é um problema bilateral. É uma ameaça para a humanidade”, disse Kerry no Grande Palácio do Povo. Em resposta, Wang, chefe da diplomacia no Partido Comunista chinês, destacou: “A cooperação sobre mudança climática avança entre China e Estados Unidos e, para isto, necessitamos do apoio conjunto dos povos dos dois países”.

As negociações sobre políticas climáticas entre os dois grandes poluentes foram paralisadas ano passado, depois que Nancy Pelosi, então presidente da Câmara de Representantes dos Estados Unidos, irritou Pequim com sua visita à ilha de Taiwan, que a China considera parte de seu território.

Segundo a rede estatal chinesa CCTV, Kerry teve ainda reunião de quatro horas com seu homólogo Xie Zhenhua. Os dois países “devem tomar medidas urgentes em várias frentes, especialmente nos desafios da poluição por carvão e metano”, tuitou Kerry após as reuniões.

Finanças climáticas 

Em junho, líderes de todo o mundo defenderam, em Paris, uma transformação do sistema financeiro que permita aos países em desenvolvimento evitar o dilema de custear a luta contra a pobreza ou as mudanças climáticas. Os países em desenvolvimento consideram difícil obter acesso a financiamentos do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. Eles criticam as nações ricas por alegarem que não têm recursos para ajudar no combate às mudanças climáticas e à pobreza ao mesmo tempo que apoiam a Ucrânia na guerra e resgatam bancos americanos.

*Com informações da Agência AFP

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895