Os 55 anos de um Gigante

Os 55 anos de um Gigante

Palco de algumas das principais conquistas coloradas ao longo dos anos, o Beira-Rio foi inaugurado em 6 de abril de 1969

Beira-Rio

Por
Fabrício Falkowski

O Eucaliptos cumprira o seu papel. Além de ser palco da grande fase do Rolo Compressor, o estádio construído no bairro Menino Deus sediara dois jogos da Copa do Mundo de 1950. Porém, o Grêmio já tinha o seu Olímpico, inaugurado em 1954. O Inter precisava, portanto, dar uma resposta ao rival e, principalmente, construir uma casa que acomodasse a torcida colorada, cada vez maior. Foi então que surgiu a ideia de construir um Gigante sobre as águas do Guaíba: o Beira-Rio, que completa 55 anos neste sábado.

A obra começou em 1959, mas logo ficou claro que ela não ficaria pronta sem ampla participação da torcida. E foi o que aconteceu. Os colorados, desde os mais humildes até os mais abastados, levaram tijolos, sacos de cimento e barras de ferro todos os dias ao canteiro de obras durante anos, ajudando o clube a erguer o estádio. Um grupo de engenheiros e arquitetos, dos mais renomados do Rio Grande do Sul, também se dispôs a ajudar sem cobrar honorários.

A nova casa dos colorados foi finalmente inaugurada em 1969, após imensos sacrifícios do próprio Inter, mas também de um grande número de colorados abnegados de todas as matizes e classes sociais, representando o que seria e já era o próprio clube. Não à toa, o clube fixou nas paredes do colosso de gigante e ferro, que muitas vezes foi motivo de chacota dos gremistas justamente por surgir onde só havia água, uma placa lembrando a participação dos torcedores comuns no processo onde, em metal, lê-se: “Aos colorados de todos os recantos, membros valorosos da inigualável família que construiu este estádio, o agradecimento do Sport Club Internacional”.

O jogo inaugural ocorreu em 6 de abril de 1969, um amistoso entre o Inter e o Benfica, de Portugal, que tinha craques internacionais como Eusébio. O primeiro gol da nova casa foi marcado por Claudiomiro. O craque português empatou, mas Gilson Porto garantiu a vitória por 2 a 1 do Inter. Nos anos seguintes, o Beira-Rio transformou-se em motivo de orgulho para a torcida e em uma fortaleza para o time. O Inter empilhou façanhas e títulos. Foi octacampeão gaúcho, feito até hoje não igualado, tricampeão brasileiro e ganhou duas Libertadores dentro do Beira-Rio.

Reforma dividiu o clube internamente

Desde o início dos anos 2000, o Inter debatia a possibilidade de fazer um novo estádio ou reformar o Beira-Rio. Aos poucos, sempre com poucos recursos, o clube foi fazendo melhorias em vários setores a partir de 2003, principalmente. O projeto Gigante Para Sempre, entretanto, ganhou impulso quando o Brasil venceu a candidatura para sediar a Copa do Mundo de 2014. Porém, um longo trajeto teve de ser percorrido até a conclusão do projeto.

Em primeiro lugar, houve uma divisão entre os dirigentes que queriam estabelecer uma parceria com uma construtora – a Andrade Gutierrez já havia feito uma proposta ao Inter – e os que preferiam tocar a obra com recursos próprios, oriundos, principalmente, do aluguel antecipado de camarotes. O primeiro grupo era liderado pelo então presidente Giovanni Luigi, o segundo pelo então já ex-presidente Vitorio Piffero.

A disputa entre os dois grupos dividiu o clube e desfez amizades. Após longos debates, os conselheiros optaram por estabelecer uma parceria com a AG. A obra, que começou em 2010, ainda durante a gestão Piffero, ficou paralisada por quase dois anos. Foi retomada só em março de 2012, já pela AG. Dois anos mais tarde, o Inter reinaugurou a sua casa em um jogo contra o Peñarol, vencido pelos colorados por 2 a 1, com dois gols de D’Alessandro para o Inter.

No final das contas, o modelo de financiamento da obra cedeu por um prazo de 20 anos (ou seja, até 2034) partes do estádio (principalmente cinco mil cadeiras, camarotes, um estacionamento e as lojas voltadas para a parte de fora do Beira-Rio) para a exploração da empresa criada pela AG. Em troca, ela bancou os R$ 300 milhões necessários à reforma. Até hoje, o acordo é tido como modelar do ponto de vista do clube, calando os antigos críticos da parceria com a construtora.

Hoje, o Beira-Rio é um dos estádios mais modernos do Brasil, além de ser considerado um dos mais bonitos do planeta. E segue sendo um motivo de orgulho para todos os colorados.

Curiosidades sobre o antigo e o novo Beira-Rio

  • O verdadeiro nome do Beira-Rio é “Estádio José Pinheiro Borba”, homenagem ao principal idealizador de sua construção. Porém, ele não viu o estádio concluído, já que faleceu em abril de 1965. No ano seguinte, foi inaugurado seu busto em bronze no pátio do Beira-Rio em frente ao portão 1 em homenagem a Borba, que foi o primeiro presidente da comissão de obras do estádio.
  • A capacidade inicial, projetada, do Beira-Rio era para 109.392 pessoas, incluindo as 10 mil que ficariam de pé na popular (conhecida como Coréia). O setor, inclusive, seria maior, mas a ideia de ter uma pista atlética ao redor do gramado prevaleceu na época.
  • O Beira-Rio foi inaugurado em 1969 equipado com o primeiro placar eletrônico em estádios brasileiros. Ele tinha 10,5 x 5 metros e ficava instalado sob duas marquises com a frente virada para o estádio e as costas para onde fica hoje a estátua de Fernandão.
  • O projeto inicial previa a cobertura de toda a arquibancada superior. Porém, apenas a metade do lado do Guaíba, além do “boné da maior torcida do Rio Grande”, no lado da avenida Padre Cacique, foi finalizada. Já naquela época, os colorados falavam que a ideia era construir um terceiro andar de arquibancadas no lado sem marquise, projeto nunca mais cogitado.
  • Quando o Beira-Rio foi inaugurado, possuía a mais moderna e eficiente iluminação dos estádios brasileiros com 400 lux de intensidade (o Maracanã tinha apenas 180 lux). A luz vinha de 72 lâmpadas de mercúrio importadas da Holanda fixadas em seis pilares de concreto que se erguiam das arquibancadas superiores.
  • O maior público registrado no estádio foi em 17 de junho de 1972, quando 106.554 pessoas assistiram ao empate entre as seleções gaúcha e brasileira. Porém, no jogo de inauguração, em 1969, é possível que mais gente tenha estado no Gigante. O público oficial foi de 86,4 mil expectadores, mas pelo menos um portão, o 7, foi arrombado pela torcida eufórica que queria acompanhar a festa. Hoje, a capacidade oficial do estádio é 50.848 pessoas.
  • Até hoje, o maior goleador do Beira-Rio é Valdomiro, que jogou no Inter entre 1968 e 1980, marcando 97 gols no estádio colorado.
Lúcio Regner, último engenheiro vivo da equipe que projetou o estádio Beira-Rio | Foto: Camila Cunha

Engenheiro Lúcio Regner: um dos personagens que fazem parte da história

Lúcio Regner, último engenheiro vivo da equipe que projetou o estádio Beira-Rio | Foto: Camila Cunha

O engenheiro Lúcio Regner é um dos 23 colorados que assinam a construção do Beira-Rio, o único ainda vivo. Engenheiro inicialmente ligado ao automobilismo (ele liderou a construção do autódromo de Tarumã, em Viamão, até deixar a obra perto da inauguração por considerar impróprias mudanças impostas a ele no projeto inicial), ele foi convidado a participar da comissão de obras. Disse que aceitava com orgulho a incumbência, desde que não recebesse um centavo em troca.

Ao longo dos anos seguintes, foi todos os dias ao Beira-Rio. Chegava perto das 7h e saia quando o sol já afundara no Guaíba. Às vezes, por falta de tempo para ir e voltar de casa, o grupo almoçava um churrasco improvisado, no meio do canteiro de obras. Dono de uma memória privilegiada, Regner lembra de muitos episódios que mais parecem obra de ficção.

“Na véspera do jogo inaugural contra o Benfica, eu estava há 48 horas sem dormir devido aos preparativos. Peguei a estrada para buscar a minha esposa na praia, já que ela ajudaria na organização da festa e na Alvorada Colorada. Já perto do destino, dormi com os olhos abertos. O fusca bateu contra um monte de terra, mas consegui chegar a tempo. Deu tudo certo, mas não morri porque não era a minha hora”, lembra.

Regner, após a construção do Beira-Rio ocupou diversos cargos no clube e na Fundação de Educação e Cultura do Sport Club Internacional, a Feci. Teve participação nos destinos do clube, principalmente nas duas décadas após a construção do estádio. Até hoje guarda, além de memórias, documentos e fotos da época que participou daquela verdadeira epopeia que foi erguer um gigante das águas. Ele respondeu a algumas indagações do Correio do Povo.

Como o senhor ajudou na construção do Beira-Rio?

Eu tinha saído do projeto do Autódromo de Tarumã. Em 1962, fui convidado para participar. Eles perguntaram se eu queria salário. E eu disse: ‘Eu sei que isso aqui é 24 horas por dia, mas estou à disposição para tocar a obra, mas não aceito salário. Fui admitido e passei a trabalhar. Antes, tive que passar todas as obras que eu tocava para outros colegas. Para me sustentar naquele período, já que trabalhava de graça para o clube, eu vendi, escondido dos meus familiares, um terreno herdei em Canoas.

Como era o dia a dia?

Não era fácil nem chegar no Beira-Rio, porque só havia a avenida Padre Cacique. O bonde chegava no Menino Deus. Mas conseguimos fazer uma obra fantástica, muito além do que havia na época. Quando foi inaugurado, o nosso estádio era o mais moderno e um dos mais bonitos do mundo.

A história das doações é mais folclore ou era real?

Real. Todos os dias, as pessoas levavam tijolos e outros materiais ao Beira-Rio. Se a gente tivesse mau caráter e usado a fé dos colorados para fundar uma nova religião, vermelha e colorada, o clube estava rico. Porque a paixão era muito grande. As pessoas chegavam de carroça e deixavam aqui na frente. Além disso, muitos funcionários da obra pediram para descontar o “dízimo”. Imagina um cara que trabalha na obra e nem ganha tanto assim pedir para descontar 10% dos seus rendimentos para ajudar na obra! Só sendo muito colorado mesmo.

Lúcio Regner, último engenheiro vivo da equipe que projetou o estádio Beira-Rio | Foto: Camila Cunha
Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895